Site icon Tribuna de Minas

Controversas à parte, um artista coerente

kamil-retrata-a-bandeira-brasileira-com-uma-faixa-vermelha-a-escorrer-sobre-a-tela

PUBLICIDADE

Marcus Kamil nos anos 1980 no canteiro central da Rio Branco

PUBLICIDADE

Olhar distante para olhar inteiro. O tempo serviu como binóculo para vislumbrar uma paisagem sempre impregnada pelos ruídos do gesto polêmico. Passados 17 anos de sua morte, aos 45, Marcus Kamil renasce pintor. A postura iconoclasta, de alguma maneira, sombreava seu próprio trabalho. “Quando comecei a pesquisa, há dois anos, fui conversar com as pessoas, e todas contavam várias histórias da personalidade dele. Mas a produção dele é maior do que o mito em Juiz de Fora. Por isso decidimos resgatar o trabalho, para que a personalidade não se tornasse maior do que a obra”, comenta a prima em segundo grau Jeana Kamil, que assina a organização do livro “Marcus Kamil – A arte singular e um artista controverso” (Funalfa Edições, 156 páginas).

Impresso com o requinte dos bons catálogos de arte, com projeto gráfico e acabamento refinados, o livro evidencia uma proposta artística, à primeira vista, caótica. Basta um mergulho para descobrir a coerência do artista. “A produção dele era extensa. Descobri que o cara é um gênio das artes plásticas, com potencial mundial”, entusiasma-se o diretor e autor de teatro, galerista de sucesso nas décadas de 1980 e 1990, Alexei Waichenberg, curador da publicação e da exposição que apresenta quadros inéditos de Kamil, sua derradeira fase.

PUBLICIDADE

“Ele é um tachista singular”, aponta Alexei, referindo-se à técnica comum na América do Norte dos anos 1970 e 1980. “Ele tem uma obra toda justificada. Começa com o figurativo, nos anos 1980, e, então, vai desfigurando com a pegada da Tarsila (do Amaral), até chegar ao extrato de sua obra. E artista bom é aquele que extratifica sua obra. O Marquinhos explodiu em manchas”, completa o curador, destacando a fase final como a linguagem que o pintor buscou ao longo de sua trajetória.

Marcus Kamil nos anos 1980 no canteiro central da Rio Branco

O fim subverteu o início

Iniciado na pintura com expoentes da Associação de Belas Artes Antônio Parreiras e frequentador da Galeria de Arte Celina, da família Bracher, Kamil conheceu a maior escola da cidade para dela abrir mão. “Ele abstraiu o que aprendeu para ser original”, defende o também artista visual Adauto Venturi, produtor e pesquisador do trabalho. “Ele bebia muito nos mineiros, no Bracher, no Ruy Merheb. A partir de 1990 alcançou um estilo muito próprio. É no abstrato que ele atinge telas maiores, preenchendo o espaço com muita segurança. É uma obra vibrante e explosiva, que extasia o espectador”, observa Jeana, cujo pai, o arquiteto Jean Kamil, conviveu com Marcus, chegando, os dois, a dividir o mesmo apartamento.

PUBLICIDADE

“Meu pai tinha medo de que a obra do Marquinhos se perdesse. O tempo passou, e há um tempo isso começou a fervilhar na minha cabeça. Conversei com a Marcinha, irmã dele, e também era desejo dela esse resgate. Começamos a amadurecer até que apareceu o edital e fomos aprovados. A obra dele estava muito espalhada, mas tínhamos obras dentro de casa, e foi assim que a pesquisa começou. Procuramos quadros pela cidade e daí conseguimos catalogar quase tudo. No livro estão 60 trabalhos, mas existem mais de cem catalogadas”, conta Jeana.

Ao longo da pesquisa, Alexei e Jeana identificaram uma assinatura diferente para cada década pintada por Kamil. Logo nos primeiros quadros, aparece uma escrita na qual o M se funde ao K, dá voltas e, finalmente, proporciona a leitura do “mil” de seu nome. Na década seguinte, assina MKamil, mas apenas o M e o K estão legíveis. Em 1990, assume apenas Kamil, numa grafia clara. O artista atualizava-se à medida em que fazia suas telas renascerem, diferentes, porém, com a mesma paleta expansiva que o acompanhou ao longo das três décadas produtivas.

PUBLICIDADE

Fôlego aos anos 1990

Curiosamente, a pintura de Marcus Kamil, que se inicia muito alinhada a paisagens e naturezas mortas, se desenvolve pela síntese dos elementos e cenas. O retrato do interior de uma casa resulta, passado o tempo, num emaranhado de formas circulares, maiores e menores, de diferentes, porém quentes, cores. Numa tela de 1998, o artista evidencia seu percurso: pinta um trecho de uma cozinha, com fruteira e montanhas avistadas da janela, mas com a cortina já revertida no mesmo abstrato que ocupa o vaso das plantas.

“Nos anos 1990, entramos num modo ‘stand by’, e foi uma década perdida. Mas a obra do Marquinhos demonstra outra coisa. É muito bom gritar essa produção, que para mim pode e promete estar nos grandes museus do mundo”, garante o curador Alexei, que, diante do lançamento do livro, já recebeu o contato de outros colecionadores, que possuem a obra de Kamil e dão ainda mais pistas da vastidão da produção de um homem, sobretudo, político, seja na rua, seja no ateliê.

“Ele afrontava. Essa era sua maneira política de representar na arte”, aponta Adauto Venturi, definindo o artista como um “impetuoso”. “O Marquinhos era, para mim, a maior referência de transgressão. Quebrou muitas barreiras. Era um cara muito ligado em moda, sons, música, superpolitizado. Tinha momentos explosivos e, inclusive, viveu seu fim tomando medicação, mas era interessantíssimo. Superconectado. A capa (do livro) com a bandeira do Brasil é muito atual, fala com todo mundo”, comenta Jeana Kamil.

De fato. A referida capa retrata a bandeira sem as estrelas e, no lugar de “Ordem e progresso”, pintou uma faixa vermelha a escorrer sobre a tela. O gesto se identificava com o personagem clicado por Humberto Nicoline nos anos 1980 trajando uma curta tanga, sem camisa e de punhos cerrados no canteiro central da Rio Branco. O quadro da bandeira representa o artista que posou para as lentes do editor de fotografia da Tribuna, Roberto Fulgêncio, nu, com um quadro a tampar-lhe o sexo. A capa diz de um homem tal e qual sua obra.

“Ele é compreendido pelas pessoas ilustradas, mais evoluídas no reconhecimento da arte, mas também pelas pessoas mais primitivas. Ele não fica no meio, portanto, não é medíocre”, reverencia Alexei. “Perdemos Marcus na sua melhor fase, quando tem o extrato de sua produção, como o Volpi teve com suas bandeirinhas”, diz Jeana, para logo finalizar, sintetizando o que o livro brada: “A personalidade dele está nas telas.”

MARCUS KAMIL

‘A arte singular de um artista controverso’

De segunda a sexta, das 8h às 20h, e aos sábados, das 9h ao meio-dia. Até 11 de setembro

Espaço Reitoria

(Campus da UFJF)

Exit mobile version