O monstrengo finalmente tornou-se um monstrengo. Não era e nunca foi. O tempo, no entanto, e o recorrente descaso do Poder Público, tratou de transformar o Marco do Centenário no adjetivo usado pelo jornal “Correio da Mata” em sua edição de 17 de maio de 1950 para desqualificar o monumento inaugurado 14 dias depois na Praça da República, no Bairro Poço Rico, diante do Cemitério Municipal. “Quando os operários terminaram o trabalho, muitos não compreenderam a dimensão abstrata da obra, sem as paredes monumentais de costume”, assinalava a publicação sobre o estranhamento que a obra causou à época de sua criação. Resistente, o projeto de Arthur Arcuri ultrapassou meio século de história combalido pelo desprezo e, agora, aproxima-se de seus 70 anos vitimado por um incêndio ocorrido no último dia 1º de julho que danificou parte considerável do painel desenhado por Di Cavalcanti. Reconhecido pela história e protegido por legislações federal e municipal, o monumento preserva consigo a contradição: como ser tão importante e tão negligenciado?
Na última semana, integrantes do Coletivo Agrupa – que assina projetos de mosaico como o novo painel da Praça Cívica da UFJF -, em parceria com a Divisão de Patrimônio Cultural (Dipac), reproduziram trechos do desenho do Marco do Centenário e recolheram pastilhas caídas e outras pendentes. “Fizemos uma limpeza geral, pegamos peneiras para separar as pastilhas. Salvamos muitas. Foi um trabalho emergencial de recuperar o que estava nos restos do incêndio. Agora esse material está na Dipac”, conta Valéria Faria, pró-reitora de Cultura da UFJF e integrante do grupo. Segundo Fabrício Fernandes, historiador da divisão, o Iphan já foi comunicado oficialmente dos danos ao bem tombado pelo instituto e espera-se para as próximas semanas o isolamento do monumento, permitindo, assim, iniciar o trabalho de estudo para a recuperação da obra. “O que temos feito nos últimos dias é estudar editais nos quais possamos inscrever o Marco. Tendo o projeto, conseguimos pensar em possibilidades, caminhos para solucionar. Existem formas de fomento gerais e específicas na área de patrimônio”, sugere Fernandes.
Datam de antes da década de 1990 os primeiros registros sobre o abandono do monumento. E seus principais defensores, em todos os momentos, sempre foram artistas, intelectuais e acadêmicos, como os que assinaram um manifesto em 1996 exigindo a restauração da obra. Originado no Instituto de Artes e Design da UFJF, o coletivo que agora auxiliou emergencialmente o Marco do Centenário conta com a mesma formação. Seriam esses os únicos a lutar pelo monumento? Marcos Olender, professor do Departamento de História da UFJF e autor do livro “Ornamento, ponto e nó: da urdidura pantaleônica às tramas arquitetônicas de Raphael Arcuri”, discorda. “Existe uma parte da população, principalmente de certa elite intelectual, econômica e social, que não via o Marco como uma boa proposta de estética urbana naquele momento. Mas o que acontece em relação a ele hoje, no meu entender, talvez tenha a ver com a localização dele e com a falta de um tratamento melhor daquele espaço público, que não é muito densamente povoado. De um lado temos um cemitério e, de outro, algumas poucas edificações e um comércio. Ao mesmo tempo, quem mora ali tem uma relação afetiva com o monumento.”
Onde está o patrimônio modernista?
A estranheza identificada por parte da sociedade em 1951, diante da construção e da inauguração do Marco do Centenário, se deve justamente ao que singulariza o monumento na paisagem e na história. Com sua apenas aparente simplicidade, trata-se de um exemplar modernista. “O painel, que representa o ‘progresso’ na cidade ao indicar três homens puxando uma voluta, possui forte influência do cubismo experimentado por Di Cavalcanti em uma viagem à Europa. Esse mural também é pioneiro por se tratar da primeira obra abstrata em pastilha vitrificada criada para um monumento em praça pública no Brasil”, destaca o arquiteto e pesquisador Fabrício Teixeira Viana, referindo-se à pastilha em Vidrotil, que, segundo Valéria Faria, não são facilmente encontradas atualmente. “As cores são lindíssimas, tem o amarelo lima-da-pérsia, um azul ultramar”, observa.
“Nas minhas pesquisas, só achei dois projetos de monumento do (Arthur) Arcuri. Um, ele fez para a Argentina e não foi realizado; e o Marco do Centenário, que é, provavelmente, o único projeto concebido e construído dele”, pontua Marcos Olender, para em seguida contar sobre a realização da obra. Arcuri chamaria outro artista, Paulo Werneck, para criar o painel da obra. No Rio de Janeiro, foi convidado a visitar o escritório de Oscar Niemeyer, que queria lhe apresentar um artista que precisava trabalhar. Chegando ao local encontrou Di Cavalcanti, que não conhecia, mas admirava. “Arthur, é esse o artista que eu queria te apresentar”, disse Niemeyer ao avistar os dois conversando. De acordo com Olender, o Marco do Centenário envolve, ainda, Lucio Costa, que deu sua contribuição ao sugerir a curvatura da obra. O poeta Carlos Drummond de Andrade, por sua vez, defendeu publicamente o monumento. “Estudando o Marco é possível contar não só a história do modernismo na cidade, mas a história do modernismo no país. Já havia quase três décadas de modernismo, mas ainda certa resistência”, pontua o professor e pesquisador.
Paisagem da Juiz de Fora do século XX, o modernismo continua a sofrer resistências. No presente, por não gozar de reconhecimento e, consequentemente, proteção. “Acredito que o Marco do Centenário não cause estranheza por ser um bem tombado ou patrimônio cultural, mas sim pelo desconhecimento da maioria com relação a esses títulos de valorização cultural e aos motivos (históricos, estéticos) que o distinguem de tantas outras produções artísticas”, teoriza Fabrício Viana. “O modernismo foi um movimento de muita relevância na história da arte e arquitetura brasileiras e deve ser reconhecido como tal, seguindo exemplos de outras cidades que veem em seus monumentos modernistas marcos na paisagem e na história de suas cidades, como o Masp é em São Paulo, o MAC em Niterói, o MON em Curitiba… isso sem falar das inúmeras produções modernistas de Brasília. Esses lugares são reconhecidos como patrimônios culturais nacionais mediante inúmeras medidas de valorização tomadas pelas políticas públicas locais. Esses bons exemplos devem ser seguidos.”
Obras recentes
De acordo com Fabrício Fernandes, historiador da Divisão de Patrimônio Cultural da Funalfa, nos primeiros levantamentos para tombamentos na cidade, feitos na década de 1990, esses imóveis não foram sinalizados como relevantes por serem muito recentes. Dos mais de 190 bens tombados de Juiz de Fora, menos de 10% são imóveis ou obras modernistas. “Hoje temos patrimônios modernistas de Juiz de Fora em processo de tombamento, como casas no Bom Pastor, o Museu de Arte Murilo Mendes, o Forum Benjamin Colucci”, aponta Fernandes. E acrescenta: “Não vejo as pessoas identificando o patrimônio moderno de Juiz de Fora da mesma forma como identificam outros, de outras fases. Vejo certa dificuldade. A idade dos imóveis – e por considerarem que não são atribuídos a grandes nomes da arquitetura – faz com que as pessoas não enxerguem o patrimônio moderno como veem os monumentos ecléticos, que são mais rebuscados.”
Para Olender, várias obras de Arthur Arcuri deveriam ser tombadas na cidade. “De outros também, como o próprio sobrinho dele, o Hugo Arcuri, que tem obras fantásticas na cidade, como o Lactário São José (na Rua Espírito Santo). O Bairro Bom Pastor tem uma incidência de edificações modernistas e está se perdendo pela pressão imobiliária. O que acontece em Juiz de Fora é que ainda não temos uma política púbica de patrimônio. Por mais que seja preciso reconhecer que houve um desenvolvimento no setor dentro da Prefeitura e que o Dipac ainda tenha um grupo de técnicos, eles não têm o apoio que precisariam ter para efetivar seu trabalho”, critica o professor, chamando atenção para a falta de fiscalização que desarticula as ações de preservação do patrimônio e para a importância de outras regiões que deveriam ser protegidas, como São Mateus e Benfica. “Não critico a ação do Comppac (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural), apesar de ele ter perdido muito com uma composição tão estranha ao patrimônio, e do Dipac, porque o que temos hoje se deve às ações deles.”
Olhar o Marco envolve enxergar a praça
Certamente, o tombamento do Marco do Centenário, ainda que não tenha lhe assegurado uma existência nas condições ideais, deu-lhe a garantia da sobrevivência. Prova disso são as muitas intervenções que o bem sofreu, a última delas em 2014. “O Marco já teve vários projetos. O último deles se encontrava no estágio de aprovação do projeto de requalificação da praça perante o Iphan. Já estava 99,9% pronto. Eles já tinham até apreciado e já tínhamos aprovado o projeto de restauração do monumento. O projeto foi dividido em duas escalas (monumento e praça), justamente porque o Iphan entende que, se a gente restaurar só o Marco sem uma requalificação do espaço, ele iria voltar a ser parte de uma área não ocupada”, observa Fabrício Fernandes, apontando para uma demanda que ultrapassa o próprio monumento e retoma a discussão acerca da revitalização e requalificação das praças públicas na cidade. É justamente sobre essa ótica que Marcos Olender visualiza a deterioração do monumento. “Teve uma época que foi feita uma campanha para cercar o Marco. Fui terminantemente contra, porque o problema não é que ele esteja desprotegido sem grades, mas porque aquela área não é utilizada, não é bem iluminada, não é uma área de frequência de pessoas, não é uma praça. Se aquele lugar for tratado como uma praça, boa parte da segurança do Marco está resolvida”, diz, sugerindo a reativação do espelho d’água.
Erguida em traçados clássicos, com referência à arquitetura eclética predominante na cidade quando de sua inauguração, em 1940, a Praça da República mudou de cara ao longo dos anos e perdeu o prestígio, defende Fabrício Teixeira Viana. Em sua dissertação de mestrado, “Monumentos, esculturas e espaço público: A imaginária urbana em Juiz de Fora (1906-2016)”, o arquiteto e pesquisador aponta para o fenômeno como a principal justificativa do abandono monumental do Marco do Centenário. “A simplificação do seu traçado associada a diversos fatores de ordem urbana, política e social, como a abertura da Avenida Independência (atualmente Avenida Itamar Franco), em 1970, além da paulatina transformação da área, antes predominantemente residencial, e agora entendida como lugar de passagem entre centro e bairros da Zona Leste, tiveram peso no processo de ‘esquecimento’ desse espaço por parte dos agentes políticos e cidadãos da cidade”, explica, finalizando: “Associado a esses fatores, acredito que a falta de uma política de educação patrimonial ou outra medida similar de incentivo à cultura que desse luz à importância que o marco tem para a história do modernismo em Juiz de Fora (e também no Brasil) não permitiu que aflorasse um sentimento maior de pertencimento da população.”