Entre o amor e a política, resta uma semelhança: a paixão, a qual todos estão sujeitos. “Somos todos iguais esta noite”, diz o compositor que sabe, como poucos, criar hinos românticos e também cânticos de guerra a favor das liberdades. Com centenas de composições criadas ao longo de quase meio século de carreira, Ivan Lins ajudou a escrever a MPB que hoje é tida como sinônimo de seu próprio nome. Seja ao piano, instrumento que toca desde a juventude, seja na voz de cantoras como Elis Regina, com “Madalena”, e Simone, com “Começar de novo”, Ivan adentrou o “Novo tempo”, com a certeza de que “Desesperar, jamais”. Em entrevista à Tribuna, por telefone, o artista que se apresenta nesta sexta, às 20h, no Cine-Theatro Central, com ingressos já esgotados, ao lado de Toquinho e MPB-4, mantém-se consciente de que a luta iniciada na década de 1970 ainda é pertinente. Com um discurso politizado bastante incisivo, ainda defende que “Depende de nós”. Rijo, porém terno. “A vida pode ser maravilhosa”, parece dizer o cantor de 71 anos, ao se referir a uma produção que em nada tornou-se datada e continua a se tornar tema de novelas e vidas. O vigor, segundo ele, deve-se a uma geração forte em princípios artísticos e sociais. Profissionais que, mesmo quando o silêncio era regra, conseguiram gritar “Abre alas para a minha bandeira”.
Tribuna – Quando pensa em seus quase 50 anos de estrada, o que lhe vem à mente?
Ivan Lins – Passou muito rápido. E não consigo medir o tempo. É difícil sentir o peso do tempo, porque continuo produzindo muito. O presente é intenso.
Em algum momento projetou sua carreira?
Sempre foi acontecendo. Não sou de fazer previsões. Posso ter projetos para o futuro, mas deixo aparecerem com o andar da carruagem. Deixo o vento me levar.
Nessa trajetória, sua produção acabou se tornando sinônimo da MPB. O que ela representa para você?
É a grande fonte de criação que tenho. O Brasil é um país que, na medida em que vai conhecendo, é maior do que se possa imaginar. É grande já no mapa, mas quando toma contato com a cultura, percebe que são muitas as manifestações. Para quem cria, o país é uma fonte riquíssima. Apesar de eu ser carioca, comecei com a bossa nova, que vinha do jazz. Mais tarde é que tomei contato com o samba, que fez parte da minha juventude e que reconheço como a grande linguagem da cidade do Rio de Janeiro. Sou um radar, estou sempre alerta. Tudo o que acontece e consigo captar com meus ouvidos interessa-me e coloco no meu molho. Faço uma misturada danada e, quando processo, sai uma música do Ivan Lins, com meus valores mais íntimos, com minha infância, minha juventude, com tudo o que vivi.
Toquinho, MPB-4 e você representam uma geração bastante marcante para a cultura brasileira. O que favoreceu o surgimento de vocês?
O Toquinho é um artista precoce. Ele é um ano mais novo que eu, mas apareceu nos anos 1960. Eu só fui aparecer para o público nos anos 1970. Os meninos do MPB-4 apareceram na mesma época que o Toquinho, mas nossa música está mais ligada ao enfrentamento da ditadura. É um trabalho contestativo, chamado de subversivo e tudo o mais que os militares puderam falar. O espetáculo que fazemos juntos leva uma música de um período que foi longo. Nos dias de hoje, existe um público viúvo desse tipo de música, e mesmo em relação às músicas daquela época, que já não toca na rádio e não aparece na televisão. Pela internet ainda é possível encontrar, mas a maioria desse público, dos 60 anos para cima, não frequenta a internet como os jovens de hoje.
Essas músicas com tons políticos ainda se mantêm atuais. “Aos nossos filhos”, sua parceria com Vitor Martins, será, inclusive, tema da supersérie “Os dias eram assim”, que a Globo estreia em abril. Percebe a contemporaneidade dessas canções?
“Aos nossos filhos” é uma das músicas mais representativas de nossa resistência e, também, fala muito da esperança com os tempos futuros, dos quais os nossos filhos vão falar, nos apresentando um mundo melhor do que o que a gente teve. Por isso a gente pede perdão, na música, dizendo que está difícil dar carinho, mas espera que eles contem como serão os tempos melhores. Até hoje vivemos isso. O Brasil ainda é um país que está sob uma ditadura estética, uma ditadura financeira. Caminhamos para uma ditadura capitalista extremamente perigosa, porque a extrema direita é capitalista e fundamentalista, o que se compara com o fundamentalismo religioso. Esse tipo de capitalismo é que deixou o planeta dessa forma, com milhões de famintos. A extrema direita quer acabar com o êxodo das nações pobres. Então, todas as mensagens que falavam da ditadura militar – de uma extrema direita que censurava a imprensa, a arte e tudo mais – fazem sentido hoje. Temos uma imprensa livre, mas não temos um política financeira equilibrada e livre. Nas mídias abertas não temos liberdade para que todos os gêneros musicais tenham oportunidade. As (minhas) letras se adaptam à realidade que vivemos hoje. A violência dos militares hoje corresponde à violência urbana. Quando eu canto “Cartomante”, por exemplo, cai como uma luva.
“O amor é o meu país”, que te lançou, foi interpretada erroneamente durante anos. Nem tudo era só política, não é mesmo?
Essa música não era política. Era uma declaração de amor e foi confundida, na época, por causa da palavra “país”. Eu falava de uma relação muito íntima. Essa música só não ganhou o 5º Festival da Canção, em 1970, porque teve um jornalista que deu zero para ela no júri oficial, por ter achado a música patriótica. Ele nem se deu o trabalho de ler a letra. Naquela época, o status quo do Brasil estava amordaçado, e as pessoas, então, entraram em desespero e começaram a fazer um patrulhamento completamente desgovernado, atingindo pessoas que não tinham nada a ver com a história, cometendo gafes pavorosas.
E quando escreveu suas canções mais políticas, pensava em não datá-las?
Até hoje canto coisas que têm tudo a ver com o hoje. Vou cantar aí em Juiz de Fora “Formigueiro”, de 1978. “Pra começo de conversa, tão com grana e pouca pressa/ Nego quebra a dentadura, mas não larga a rapadura/ Nego mama e se arruma, se vicia e se acostuma/ E hoje em dia está difícil de acabar com esse ofício” (canta). Toco hoje e todo mundo adora, bate palma, canta junto. As pessoas se divertem, mas dá vontade de chorar.
Quando diz que há um público viúvo das músicas que sua geração faz, está dizendo, também, da cultura que vivemos hoje…
Sou muito crítico em relação ao que está acontecendo com a cultura e a arte brasileiras. Tudo por causa de uma política de educação e cultura, de quatro décadas para cá, que segue ladeira abaixo. Estamos chegando a um nível nunca antes atingido. A educação do país é muito fraca. (Profissionais) saem das universidades completamente despreparados para a realidade dos ofícios que escolhem. Evidentemente que existem exceções. Se levar em consideração as eleições no país, de dois em dois anos as promessas de investimentos em educação são feitas por cerca de 90% dos políticos. Prometem e piora, prometem e piora. Estamos sendo enganados há muitos anos. A política brasileira é de uma mediocridade fantástica. Sempre foram medíocres e vêm sendo há quatro, cinco décadas.
Costuma acompanhar as exceções dessa cultura que segue ladeira abaixo?
Tem uma geração a qual não tenho muito acesso porque está na internet e sou horroroso na internet. Tem muita gente boa aparecendo e fazendo música de qualidade, mas estão restritos a lugares pequenos. Alguns já possuem público bastante bom. O grande público, porém, não tem acesso a isso, e é aí que está o perigo, porque cada vez mais, as classes baixas têm menos ofertas de qualidade.
Qual seu lugar na música brasileira hoje?
Como apareci num período muito favorável para a arte brasileira, sou de uma geração privilegiada. Tocávamos em programas de televisão, estações de rádio. Depois das décadas de 1960, 1970 e 1980, continuamos porque conquistamos um nome que as pessoas não esquecem, principalmente porque nos mantivemos em atividade. Sinto-me inserido na música popular brasileira culta, como diz o Carlinhos Lira, porque faço parte desse time. Graças a Deus, nasci numa época em que tive a oportunidade de conhecer grandes compositores e estar convivendo com eles todos. Tenho a influência de vários compositores brasileiros, e isso me fez muito bem. Música é troca. Fazemos música ouvindo o que está no ar. E ainda consigo sobreviver de música exatamente pelo fato de que tive o privilégio de ter ao meu lado uma mídia muito poderosa.
Toquinho, Ivan Lins e MPB4
Nesta sexta-feira, 17, às 21h30, no Cine-Theatro Central. 3215-1400. Ingressos esgotados