Antes tudo era um. Em letras garrafais, a inscrição recebia os espectadores que adentravam no projeto intitulado por sua criadora Sofia Borges como “A infinita história das coisas ou o fim da tragédia do um”. Tal qual uma instalação, o projeto expositivo da artista de 35 anos, nascida em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, sobrepunha às paredes texturas de cimento ou polêmicas cortinas. Os trabalhos, de veteranos e iniciantes, nomes aclamados internacionalmente e outros conhecidos apenas pelos visitantes do Museu das Imagens do Inconsciente criado pela psiquiatra Nise da Silveira, ligavam-se por claros pontos de contato e, num trajeto estabelecido pela artista-curadora, iam se alterando. Segundo Sofia, tratava-se de uma tragédia distribuída no espaço-tempo, na qual fundiu questões alquímicas e metafísicas. Também incorporou a noção de que a linguagem é trágica, do sociólogo francês Roland Barthes, e tomou, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche o conceito de fatalidade.
“Dentro do meu próprio trabalho, existe uma espécie de cosmogonia na qual uso elementos para criar outra coisa, ancorada na relação da alquimia com os processos psíquicos. O (psiquiatra suíço Carl Gustav) Jung usa da alquimia para entender esses processos, e a Nise (da Silveira, psiquiatra brasileira) aplica isso no Museu das Imagens do Inconsciente. Na minha curadoria selvagem, aquilo é uma tragédia, e as duas personagens são o consciente e o inconsciente de cada um que percorresse a mostra. O que eu queria é que houvesse um embate entre consciente e inconsciente, tentando transformar isso na experiência da curadoria. Se houve essa perda da racionalidade, esse trânsito entre razão e emoção, matéria e metafísica, embates entre elementos do consciente e do inconsciente, tive sucesso em minha proposta”, comenta, em entrevista à Tribuna, a artista considerada um dos principais nomes da cena contemporânea nacional, reconhecida dentro e fora do país por um fazer, sobretudo, complexo. Como diz a frase que afixou na mostra coletiva que integrou a Bienal, seu foco está no “brilho do invisível”.
Tribuna – Em uma análise de sua exposição, o crítico Luiz Camillo Osorio questiona se em sua proposta a curadoria funciona como poética ou se de fato exerce tanto a função da artista quanto a da curadora, separadamente. Ao reunir as obras, elaborar um discurso e pensar o espaço expositivo estava você criando uma grande obra?
Sofia Borges – Esse foi o maior desafio de resiliência. Quando o Gabriel (Pérez-Barreiro, curado da 33ª Bienal) me pediu para estar no papel de artista-curadora, minha maior resiliência foi honrar esse pedido sem abrir mão da minha obra e não me tornar curadora, e sim uma artista-curadora, porque os elementos com que iria trabalhar extrapolavam minha atuação artística, mas a intenção e a constituição da exposição era da ordem da minha prática artística. Não foi um exercício simples, nem óbvio. Foi muito desafiador, não só para mim quanto para a instituição, que precisou entender como lidar com essa inversão (do artista assumir o lugar do curador) e como as decisões de ordem prática para fazer uma curadoria não poderiam superar as decisões de ordem poética. Foi um imenso exercício poético, com desafios improváveis. O que ancorou a possibilidade de isso ter virado uma obra é que desde o começo eu sabia qual era a natureza dessa obra que eu gostaria de constituir. Era quase uma ordem metafísica que eu queria instaurar na Bienal. Os caminhos em cada microescolha para constituir a macro-obra foram inimagináveis. Não sabia o tamanho dos dilemas que iria enfrentar para transformar o lugar intuitivo em arquitetura, curadoria, escolha de obras e discurso. Consegui instaurar, na curadoria, a minha obra.
Há um complexo pensamento por trás de suas escolhas. Em que se baseou?
Baseei a curadoria da Bienal, antes de ser arquitetônica e com um desenho da exposição, em qualidades conceituais. Fundei essas intenções em conceitos alquímicos, no mito guarani e na ideia de tragédia. Era sobre essa tríade que a exposição se estruturava conceitualmente. E dentro do alquímico há a transmutação, o fogo alquímico. A deriva do sentido que saía de uma obra, com uma determinada forma e cor, era justamente essa transmutação, que vai para além da matéria. Do jeito que estava ali, era essencialmente matérico. E o veludo ajudava, a proximidade ajudava, a semelhança ajudava.
“Baseei a curadoria da Bienal, antes de ser arquitetônica e com um desenho da exposição, em qualidades conceituais. Fundei essas intenções em conceitos alquímicos, no mito guarani e na ideia de tragédia”
Como foi a tensão entre decisões práticas e poéticas?
A Bienal é um contexto histórico, político-social, físico, arquitetônico, artístico, temporal e orçamentário. Essa era a matéria para eu manipular. Dentro disso, tive que adequar todas as minhas intenções. No começo tive as ideias mais loucas, que eu realmente queria fazer, mas que não se sustentavam. Tive muitos aspectos que não se realizaram por uma limitação das regras de segurança de um espaço por onde passam centenas, milhares de pessoas ao mesmo tempo.
Ao aproximar trabalhos de artistas renomados e descobertos nas oficinas da psiquiatra Nise da Silveira, pontuando-lhes as semelhanças, fazia uma defesa sobre a potência da criação?
Acho que minha obra nunca tenta narrar o próprio conteúdo. Tenho muito interesse no conteúdo, mas no sentido de como uma estrutura psíquica pode ser deflagrada num trabalho. Daí tanto faz se o artista está internado ou se estudou em São Paulo, se é a Sarah Lucas de Londres, ou se é Tunga ou se sou eu e meus colegas de minha geração. A prática é a mesma. Foi uma honra entrar em contato com essa prática dentro das circunstâncias das obras no Museu de Imagens do Inconsciente, mas eu não queria narrar, dizendo que a exposição é sobre algo. Eu queria que a própria mostra permitisse o acesso a esse processo psíquico.
Um dos elementos mais polêmicos dessa última edição da Bienal, as cortinas que usou em seu espaço remetiam a espetáculo?
A função das cortinas era instaurar o trágico, que, para mim, era a matéria em si, a existência das coisas e a relação da matéria com o significado. Esta é a grande tragédia que desemboca na linguagem: todas as palavras e nenhum nome. Há um lugar que a linguagem nunca vai atingir. Nem a própria existência dá conta da existência: isso é trágico. Na primeira curadoria que fiz – e só fiz uma antes da Bienal, totalmente como artista – identifiquei que havia coisas que eu não conseguiria investigar só com meus recursos artísticos. Eu precisaria de filósofos, escritores, músicos, dançarinos, para constituir melhor as questões. Um dos elementos que chamei de objetos de preposição foi uma cortina, tal qual a da Bienal. A cortina divide o espaço de representação do espaço de realidade. Tudo que passa pela cortina adquire uma densidade de representação distinta da realidade. Se um gato passa pela cortina, o gato entra no espaço da representação.
“Há um lugar que a linguagem nunca vai atingir. Nem a própria existência dá conta da existência: isso é trágico”
Na itinerância da 30ª Bienal, você também apresentou trabalhos fotográficos em Juiz de Fora. Qual é a sua relação com a fotografia?
Meu trabalho se dá muito na experiência da imagem, mas os propósitos estão numa reflexão a respeito do metafísico, da matéria, do significado e da representação. Nesse sentido, ele é muito elástico, porque essas são questões fundamentais e fundadoras da própria constituição do objeto da arte. Por mais que eu trabalhe com imagem, nunca me considerei exatamente uma fotógrafa, tanto que é muito fácil, para mim, migrar de linguagem.
O Jacopo Visconti (atual curador da Bienal) pontua que a arte tem um papel propositivo e reflexivo. Seu trabalho responde a isso?
Meu trabalho é um lugar onde isso é muito palpável por conta de a natureza do meu pensamento vir do campo das ideias e ficar muito nesse lugar antes de se transformar em obra de arte. Acho que transito bem trazendo esse campo das ideias para o discurso. Mas isso nunca deixou de ser assim e não é novidade em todas as circunstâncias da existência do conhecimento. A ciência é isso (propositiva e reflexiva), a religião é isso, a filosofia é isso, as artes são isso, nunca vamos nos afastar da questão primordial de que as coisas são outras coisas que são outras coisas, sempre tentando atingir o inatingível, que é a existência e o significado que estão além. Existir é dar sentido à existência.
E o que é essa arte contemporânea? Consegue defini-la?
Não sou a arte contemporânea (risos). Se tenho algo a dizer é o seguinte: toda ação é política, toda fala é política, todo gesto é político. Existe, às vezes, uma ansiedade de que a obra de arte se preste a não ser só política, o que ela é por natureza, mas que ela se preste a ser política do ponto de vista da narrativa, do cartaz, de que vá falar uma verdade por trás. Sou alguém que pesquisa a não-narrativa, o vazio, a não-matéria. E digo que, independentemente de ela ser narrativa ou não, a arte faz seu ato político quando dá a possibilidade da existência da humanidade, da vida e da poesia. Isso é uma das grandes ameaças que estamos sofrendo. Vemos a instrumentalização do humano. Há um perigo de que a imagem vire a existência. Brincamos com isso nas mídias sociais, mas isso permeia todo o resto. Viramos objeto de consumo de nós mesmos. A sociedade de consumo não está só no objeto que consumimos, estamos degradando a própria essência humana ao se afastar dela. A prática da arte e da poesia na vida é fundamental porque é reconciliadora, é a possibilidade da cura desse vazio.
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33ª BIENAL DE SÃO PAULO
Visitação de terça a sexta, das 9h às 18h, sábados, domingos e feriados, das 13h às 18h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790 – Centro). Até 8 de setembro