“As verdadeiras obras de arte ignoram qualquer discurso que as desvirtue e são suficientemente eloquentes para desautorizar interpretações oportunistas.” A frase escrita por Waltercio Caldas foi usada para apresentar sua exposição “Os aparecimentos”, uma das coletivas presentes na 33ª Bienal de São Paulo em sua configuração original, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Reflexo do percurso de um artista cuja produção nunca se dissociou da história da arte, a frase resume tanto a obra de Caldas quanto seu esforço em reunir 20 artistas, dentre eles Goeldi, Cabelo, Tunga e Victor Hugo, numa mesma mostra cuja tônica é a natureza das formas. Considerado um dos mais expressivos nomes da arte contemporânea, testemunha (e por vezes sujeito) das principais transformações ocorridas a partir da segunda metade do século XX na arte brasileira, o dono de múltiplas linguagens transpôs para o cubo branco, no papel de curador, sua própria poética, que se interessa mais pela investigação do que pelas respostas prontas e objetivas.
No recorte trazido a Juiz de Fora, o carioca Waltercio Caldas apresenta obras como “Ojos de Zurbarán”, de 2017, referência – ou seria releitura?! – do pintor barroco Francisco de Zurbarán, espanhol de tons sombrios. Ainda que deslocados do lugar inicial para onde foram pensados no contexto da última edição da Bienal de São Paulo, os trabalhos de Caldas funcionam na Itinerância como chaves para a discussão sobre um fazer que transita entre as dimensões do gráfico e do conceitual. Em entrevista à Tribuna, o artista que já se apresentou no francês Centre Georges Pompidou, no holandês Stedelijk Museum e no aclamado The Museum of Modern Art, o MoMA, de Nova York, afirma acompanhar a complexidade do mundo, atento aos ponteiros do relógio e na absoluta certeza de que “todo artista foi ou é, de alguma maneira, contemporâneo.”
Tribuna – A curadoria, geralmente, é uma consequência do trabalho do artista. Como foi para você selecionar trabalhos seus e de outros artistas?
Waltercio Caldas – Na realidade eu não precisaria ser curador para exercer aquela função para a qual ele me solicitou. Bastaria que eu fizesse uma relação entre fazer e pensar. Se eu puder exercer três atividades – do artista que faz, do artista que pensa a respeito do que faz e do que pensa a respeito dessa relação entre o que faz e o que seleciona preferências – eu não preciso ser curador. Foi nesse sentido que me orientei, criando uma seleção que fosse absolutamente relacionada aos meus interesses e à forma como vejo que deva ser uma seleção de obras de arte para apresentar questões e, não necessariamente, representar algo.
É correto dizer que nessa mostra seu trabalho encontrou um lugar confortável?
A palavra confortável é muito branda para a espécie de tensão que existia entre as obras. A ideia era que as obras estivessem, ao mesmo tempo, relacionadas e no limite. Nessa possibilidade relacional estabelecida por elas acho que procurei forçar um certo conflito. Costumo dizer que a zona de conforto da arte é o conflito. Procurei preservar as semelhanças e as diferenças entre as obras. Nesse sentido pensei não só na relação que elas pudessem ter, como também na qualidade de informação que a diferença entre elas pudesse trazer para o espectador.
Você afirma que definiu uma curadoria modal e não uma curadoria tonal, estabelecida por tons. Como isso se estabelece?
Quando se cria uma relação que não é exatamente de semelhança. Acontece quando se estabelece uma possibilidade de relação ao invés de usar as que existem, formando novos pontos de contato a partir de novas situações, sem utilizar as semelhanças que costumam orientar as curadorias tradicionais. O que fiz foi mostrar coisas muito diferentes das minhas, mas de forma com que essa diferença para tratar as questões fosse, também, esclarecedora.
Sua obra é frequentemente apontada como equilibrada ao não privilegiar a forma em detrimento do discurso e vice-versa. Para você, são equivalentes? Ou há pesos diferentes?
O que acaba sendo equilibrado é o fato de eu sempre ter considerado que nunca fiz uma ideia ou um conceito, mas sempre fiz um objeto. O fato de eu acabar achando que no fundo no fundo o que acaba restando é um objeto, e não uma intenção, um conceito, uma vontade. Esse objeto começa a se relacionar com os outros objetos que acabei fazendo. Essa continuidade de atitudes que cada um dos objetos demonstra é que forma essa questão. É por isso que eu não seria capaz de trabalhar em arte sem a forma, nem poderia privilegiar o conteúdo à medida que sei que o que resulta é um objeto.
“O que acaba sendo equilibrado é o fato de eu sempre ter considerado que nunca fiz uma ideia ou um conceito, mas sempre fiz um objeto. O fato de eu acabar achando que no fundo no fundo o que acaba restando é um objeto, e não uma intenção, um conceito, uma vontade”
Também não se filiou a uma corrente específica. Qual o legado do passado em seu trabalho?
Faço parte de uma geração que nos anos 1970 acho que ficou muito exaurida com a quantidade de “ismos” que apareciam constantemente. Por outro lado, foi uma geração que foi influenciada por muita coisa ao mesmo tempo. Gosto sempre de lembrar que na época do concretismo o surrealismo tinha aparecido no Brasil, o neo-figurativismo, o minimalismo, a arte povera, o construtivismo. Isso me fez considerar que eu não poderia simplesmente adotar um “ismo”, mas reconhecer a complexidade dessa quantidade de “ismos” e pensar a respeito disso. O meu trabalho e o de alguns artistas da minha geração de alguma forma consideram essa questão. Nós não simplesmente criamos um “ismo” em substituição ao anterior, mas enfrentamos, pela primeira vez, uma complexidade muito grande de muitos aspectos da arte contemporânea que chegaram todos ao mesmo tempo na década de 1970.
E como você e sua produção chegam aos dias de hoje?
Chego continuando na minha tentativa de entender a complexidade que se apresenta cada vez mais. Costumo dizer que tivemos que compreender o mundo de uma forma muito radical nos anos 1970, tivemos que compreender o mundo nos anos 1980, nos anos 1990, nos anos 2000, e esse mundo atual não é diferente. A complexidade está cada vez maior e exige dos artistas cada vez mais uma consciência muito clara do que seja uma linguagem que deva ser utilizada sem necessariamente subjugar as ideologias.
“A complexidade está cada vez maior e exige dos artistas cada vez mais uma consciência muito clara do que seja uma linguagem que deva ser utilizada sem necessariamente subjugar as ideologias”
As bienais realmente ajudam a pensar esse presente? Como enxerga o papel delas no atual cenário?
Hoje no mundo existem mais ou menos umas 60 bienais. Elas viraram exposições muito grandes, defendendo alguns princípios e termos, tentando entender o que significaria uma tendência. Acho essa palavra (tendência) horrorosa quando associada à arte, porque a única tendência da arte é ir para a frente. Ela minimiza questões. As bienais continuam com essa intenção de mostrar um espírito, um princípio, uma tendência. O que foi importante na bienal do Gabriel (Pérez-Barreiro) foi exatamente pensar a respeito desse beco sem saída no qual a contemporaneidade se encontra, na medida em que até o próprio termo contemporâneo não é suficiente para dar conta da complexidade da situação. Todo artista foi ou é, de alguma maneira, contemporâneo. Não conheço nenhum artista que não tenha sido contemporâneo. Esse termo é vago e enganador. O que significa um artista ser contemporâneo? Um artista que está tentando entender a sua época? Então é isso e ponto.
Consegue identificar um nome que dê conta da produção atual?
Uma vez escrevi, num pequeno livro que fiz sobre pensamentos, que o curadorismo tinha sido o último “ismo” do século. É disso que estamos falando. Hoje em dia é fundamental para o artista adotar uma atitude radical em relação ao objeto de arte e não mais em relação à defesa do que seria arte. Muitas coisas, embora tratadas como arte, na realidade são estratégias culturais e ideológicas. O artista precisa defender radicalmente a questão da arte contra uma ideia vaga e pouco rigorosa do que seja a cultura.
“Muitas coisas, embora tratadas como arte, na realidade são estratégias culturais e ideológicas. O artista precisa defender radicalmente a questão da arte contra uma ideia vaga e pouco rigorosa do que seja a cultura”
Nesse panorama, o que falta à leitura da arte contemporânea hoje?
Nunca tivemos um momento em que as bienais tivessem sido tão visitadas. Essa última bienal teve um milhão de pessoas. A questão não é o número, mas que não necessariamente isso significa uma clareza das propostas feitas pelos artistas. Eu, por exemplo, não gosto nada quando entro numa exposição e percebo que existe uma necessidade de o curador ou do artista tentar esclarecer certos fatos para o público, buscando facilitar a compreensão. Francamente, acho que não se aprende tanto com a arte quanto sendo um espectador perplexo dentro de uma obra que o obriga a pensar em seu próprio mundo outra vez. Pouco importa que o artista seja claro no que quer dizer. Se o público vai ou não entender é uma questão que não compete ao artista.
LEIA MAIS
Acesse a entrevista Sofia Borges, artista visual que também integra mostra em JF
Saiba mais sobre a 33ª Bienal de São Paulo em Juiz de Fora
33ª BIENAL DE SÃO PAULO
Visitação de terça a sexta, das 9h às 18h, sábados, domingos e feriados, das 13h às 18h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790 – Centro). Até 8 de setembro