RODA-VIVA
Um carro atravessa o pátio aos golpes,
corpos adoecem o sótão, outros tecem na grade,
traficam-se poemas num país onde o sol
oculta os cadáveres.
Alguém abre túneis ao sul e ao norte,
sem esperança suas mãos esculpem a pélvis.
Na terra de ninguém (tua cabeça), a coragem
atrás dos óculos. Devastam o arco-íris ao gosto
de quem fabrica mortos.
Há um sinal na testa de quem não contesta.
Os atentos estão mudos.
Um mesmo sol alenta o riso contra as sombras
do passado: o futuro. A MEMÓRIA traça o rastro
a que tudo se reduz, vertigem: o azul turva o fogo
de quando éramos humanos.
Carnaval, não importa o país que habitas,
a matéria escura sob o peito rege como um vigia
o mundo. Os vagões torcidos na gare
recordam a oxidação que desfila em tuas fibras.
Não há, em meio à alegria, uma célula
atenta à própria morte, mas e a consciência, essa
agulha que deseja, às vezes, o fundo da caixa?
Mascarados têm humor, o rosto sob a máscara,
nem sempre — a euforia pesa,
a explosão de Ítaca espalhou corpos por todos
os lugares — e mesmo assim a banda toca.
O país que adoece seus felinos não merece figurar
no mapa: nascidos para conter o sopro que passa,
a vida os impede de aceitar o que a torna breve.
É sobre seixos, galáxias, orcas que se trata quando
um rosto se desmascara e obtém algum poder.
Por que não aprender deles o que crava
em nós o alvo dos seres findos? Polvos pulsam,
apesar das grades e seus nomes saqueados,
têm menos sede — se movimentam sob as barbas.
Um país que adoece mata suas árvores não merece
senão afogar-se em seus coldres: o que esperar de
quem tropeça nos calcanhares?
Os vagões no país oxidado arrastam o monstro
pela gare escura — quem pode
embarca a qualquer hora, mas não há viagem
onde um homem justo não se demora no velório
dos seus sonhos. Carnaval — os gêmeos fogem
à estrela da manhã. Onde quer que habites,
o mundo não é a nave que os tiranos lubrificam
em dias nacionais. Sábado — o carnaval — o sol —
os arlequins são corpos — grávidos explosivos.
(Do capítulo “Inéditos”)
***
PERITOS
Haverá cortes entre os que se ocupam em fazer
cálculos e previsões.
Nem o mais pessimista imaginaria a espessura
do assombro.
Calcularam, previram segundo a margem
humana,
mas faliram tragados pela fúria
inumerável.
(Do capítulo “Casa-Múndi”)
***
LEITURA
Santos demais
ouro de menos
gado nenhum.
A ausência de verba deles
alimenta os verbos
discendi.
O paraíso não os teve
frutos medidos
em poesia e carne.
Os avôs embarcados
sua economia de palavras.
Pelo silêncio escrevem
a biografia melhor.
(Do capítulo “Esse corpo”)
Poesia + (Antologia 1985-2019), de Edimilson de Almeida Pereira
384 páginas
Editora 34
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