“Sempre soube que se alguém não quer se machucar não deve jogar bola.” Para o tricolor Clodesmidt Riani, escolher entrar em jogo exige responsabilidade, noção que nunca abandonou. Da juventude à maturidade, lutou bravamente pelo que defendeu. Sua última grande batalha se deu há menos de três meses, quando enfrentou a Covid-19, e dela, uma vez mais, saiu vencedor. Nesta quinta-feira (15), Riani completa um século de vida, história escrita publicamente, na defesa do trabalhador e, também, no carinho por Juiz de Fora, cidade que acolheu e pela qual foi acolhido aos 6 anos, em 1926. A família era grande, 17 irmãos a que a escassez da pequena Rio Casca forçou despedida. Após dias difíceis, o pai de Clodesmidt, Orlando, empregou-se numa tecelagem na Avenida dos Andradas. Filho de italianos que imigraram para o Brasil e estabeleceram-se em fazendas de Minas Gerais, Orlando, de tão querido, tornou-se presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Fiação e Tecelagem de Juiz de Fora. Estava ali uma das raízes do filho, que conheceu o trabalho ainda muito cedo, vendendo nas ruas os doces feitos pela mãe, Maria. Depois passou a açougueiro, tecelão e, por fim, funcionário da Companhia Mineira de Eletricidade, aos 16.
Considerado um dos juiz-foranos mais influentes na política do século XX, Riani chega aos 100 anos totalmente recuperado da infecção pelo coronavírus. Independente, vive no mesmo apartamento no Centro da cidade há mais de três décadas, hoje na companhia de uma das filhas e de uma equipe de profissionais da saúde. Há dois anos tornou-se mais recluso, por conta da fragilidade própria da idade avançada. Por isso mesmo, os oito filhos (eram dez, mas dois já faleceram), 20 netos e 25 bisnetos não se reunirão para celebrar o aniversário do patriarca. “A pandemia atrapalhou tudo. Só vai ter um café com alguns dos filhos. Nem consideramos que será comemorado. Queremos que o ano do centenário seja de comemorações”, defende o oitavo filho, Orlandismidt Riani, lamentando a alteração no calendário de celebrações, que previa sessões solenes no Senado, na Assembleia de Minas e na Câmara Municipal, atos que espera serem reagendados.
A voz dos trabalhadores diante do mundo
Líder nato e hábil articulador, Clodesmidt Riani acabou representando o Sindicato dos Carris Urbanos de Juiz de Fora e chegou a Belo Horizonte para ocupar uma vaga no Conselho Deliberativo da Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Serviços Públicos do Estado de Minas Gerais, a Capesp. Já neste momento, em diálogo com o então governador Juscelino Kubitschek, consegue o repasse que garantiu a construção de centenas de casas populares nos bairros JK e Costa Carvalho, além da abertura de lotes no Santa Terezinha. Riani defendia causas e levantava demandas. Ainda como funcionário da Companhia Mineira de Eletricidade, da qual se aposentou em 1983, três anos após a empresa ser absorvida pela Cemig, o sindicalista ocupou novos espaços, em novas entidades e chegou à Federação dos Urbanitários de Leste e Sul do Brasil, negociando diretamente com o ministro do Trabalho de Getúlio Vargas o aumento do salário mínimo. Em 1954, Riani, aos 34, era membro da Comissão de Salário Mínimo do Estado de Minas Gerais. As mesas de negociações tornaram-se rotina na vida do homem de pequena estatura e farta capacidade de argumentação. Naquele ano, com um terço dos votos do eleitorado local, foi eleito, pelo PTB, deputado estadual, cargo para o qual retornou em 1959, após ser eleito primeiro suplente do partido na eleição de 1958.
Antes, porém, fez uma de suas mais marcantes viagens. Era junho de 1958, quando Riani subiu num avião rumo a Genebra, na Suíça. Compunha, nomeado pelo então presidente JK, a comitiva brasileira para a 42ª Conferência Internacional do Trabalho. No evento, um dos mais importantes do mundo na área, era assessor técnico do Governo, indicado pelas federações e sindicatos dos trabalhadores de Minas Gerais. Aos olhos de todo o globo, Riani era a voz brasileira dos trabalhadores. “Pronto, Clodesmidt Riani estava indo para a Europa, sem conhecimento, sem falar uma palavra em inglês, sem roupa direito, sem nada, essa que é a verdade”, lembrou ele em 2009, em entrevista para o projeto Diálogos Abertos, da Pró-Reitoria de Cultura da UFJF, testemunho transcrito no segundo volume do livro homônimo. Até aquele momento, Riani havia completado apenas o primário. Da segunda vez que viajou à Suíça, para a 46ª Conferência Internacional do Trabalho, Riani acompanhou o presidente João Goulart em almoço com o então presidente dos Estados Unidos, John Kennedy. E jantou com o governador de Nova York, Nelson Rockfeller.
Entre 1960 e 1964, Riani contribuiu diretamente para a implementação da Lei Orgânica da Previdência Social, pela garantia do 13º salário e do salário família, pelo estatuto do trabalhador rural, pelo direito de greve, pela reforma agrária, pela regulamentação da aposentadoria especial para trabalhos penosos, perigosos e periculosos, dentre outras conquistas. Também olhou por Juiz de Fora e, numa audiência com João Goulart, pediu uma significativa quantia para a construção do prédio do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários em Juiz de Fora, hoje o PAM-Marechal. “Muita gente não sabe o que ele fez pela cidade”, lamenta o filho Orlandismidt. “As duas avenidas Brasil, ele ajudou a fazer. Enquanto o Jango foi presidente, meu pai o trouxe por quatro vezes. A Avenida Independência, foi ele, com o João Goulart, quem fez. Chapéu D’Uvas, também. Juiz de Fora não tinha agência do INSS e tudo se resolvia em Belo Horizonte. Por isso eles fizeram o que hoje chamam de PAM-Marechal. Ele conseguiu trazer um canal de televisão para a cidade, a TV Industrial. Ele quem trouxe o CTU. A cidade não tinha uma escola estadual, e hoje tem o Sebastião Patrus de Souza”, enumera, orgulhoso.
Tempos sombrios
Presidente de duas referenciais entidades de defesa do trabalhador, a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias (CNTI) e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), ativo deputado estadual e liderança de históricas greves, Clodesmidt estava no foco dos militares quando se deu o golpe militar de 1964. Não foi preso. Apresentou-se por iniciativa própria. Mesmo tendo a opção de exilar-se, escolheu permanecer no país. Regressando de viagem do Rio de Janeiro, onde recebeu a notícia, Riani saiu de casa ainda de madrugada, passou na Igreja da Glória, onde o pai o levava à missa, e em seguida se dirigiu para o batalhão. Foi preso, espancado e permaneceu enclausurado até 1971. “Fui órfão de pai vivo”, diz Orlandismidt, que tinha 11 anos quando viu o pai sair de casa, e estava no Exército quando assistiu a seu regresso. A família visitava, geralmente aos domingos e às quartas-feiras. O filho mais velho ficou noivo no 2º Batalhão, durante uma visita ao pai. A filha mais velha entrou vestida de noiva no quartel e depois seguiu para a Igreja da Glória, com a maquiagem borrada de tanto chorar. Orlandismidt, o oitavo filho, se recorda de visitar o pai na cadeia de Ilha Grande, onde a mãe nunca pisou. No último ano e meio, Riani e a mulher, Norma, com quem se casou em 1941, só conversavam por cartas. Quando ele saiu, ligou da casa de uma irmã no Rio de Janeiro para Norma. A esposa desmaiou do outro lado da linha.
Em liberdade, Riani voltou para a sala de aula. Fez um supletivo e, aos 63 anos formou-se em direito. O homem que por décadas lutava pelos direitos dos trabalhadores, tornava-se, então, advogado, um legítimo defensor. E foi o orador da turma. Também retornou à política, em 1982, elegendo-se uma vez mais deputado estadual. Na eleição de 1986 não conseguiu a reeleição. Hoje, contudo, mantém o título. “Meu pai é deputado ainda. Ele é vitalício. Recebe como tal e tem o plano de saúde da Assembleia. Não foi ele quem pediu, foram os deputados que reconheceram o mérito”, conta o filho, citando o gesto de revisão pela cassação de seu mandato pelo regime militar. Já aposentado pela Cemig, passou a se dedicar aos trabalhos sociais – no Filgueiras e na Sopa dos Pobres, onde descascava legumes – e viveu o reconhecimento Brasil afora, com homenagens, medalhas e placas que preserva numa sala do prédio onde mora.
“O caso dele era o sindicato e não a política”, aponta o filho Orlandismidt, reconhecendo a ausência do pai no cotidiano da casa, fato que Riani nunca negou e sempre fez questão de destacar para valorizar o trabalho da esposa, falecida em 1992. “Ele foi totalmente ausente. Dizia que estava cuidando dos milhares de filhos dos trabalhadores. E realmente foi assim. Minha mãe é que ficava em casa e comandava o lar e os filhos. Quando ele se apresentou e foi preso, minha mãe ficou com os dez filhos, o mais velho com 21 e o mais novo com 3. Com 14 anos precisei ir trabalhar para ajudar no sustento da casa, mas nunca faltou nada para nós e nunca deixamos de estudar”, pontua Orlandismidt, que, questionado sobre o temperamento do pai em casa, responde: “Era mais rígido. Como ficava muito tempo fora de casa, às vezes de 15 em 15 dias, sempre trazia bala, colocava a gente no colo, como se quisesse compensar o período que estava fora. Mas lembro dele ser muito rígido, cobrando caráter e justiça.” Riani, o centenário que sabe que se alguém não quer se machucar não deve jogar bola, sabe também que ser justo é dever de quem está dentro ou fora do jogo.