O simples gesto de desgarrar uma banana do resto da penca faz brotar nela máculas. As manchas pretas, que pouco a pouco resultam em fruta podre, indicam a profanação de uma natureza. Ainda que não houvesse um homem a destroçar o cacho, a banana, naturalmente, despencaria do lugar onde brotou. Transgredir, portanto, é gesto próprio dos seres vivos. “Eucarístico”, primeira exposição individual do artista visual Matheus de Simone, reforça a lógica ao enumerar atos que conjugam sexo, religião e infância sem deixar que tais questões resultem em pudor. Financiada pela Lei Murilo Mendes, a mostra que inaugura nesta sexta, 17, às 16h, no Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF, conta com curadoria de Henrique Grimaldi.
Violado por uma sociedade crescentemente conservadora, o artista responde. Diz do fôlego que existe, mesmo diante dos aviltamentos de cada dia. Como as bananas expostas, que mesmo “encapadas” com preservativos, insistem em seguir seu ciclo de vida, ainda que o rumo seja a completa degradação. À instalação Matheus dá o nome de “Fôlego”.
“Há uma constante tensão entre os dois materiais, a fruta e a camisinha, como numa respiração”, pontua o artista, referindo-se ao ato de inspirar e expirar. “É como se (a banana) quisesse respirar, mas é constantemente abafada. Esse abafamento, que em outros trabalhos representa a moral cristã, acaba apodrecendo a sexualidade”, completa ele, que retoma um símbolo vulgar no senso comum e também uma forma sofisticada para a história das artes. As bananas de “Fôlego” remetem à serigrafia de Andy Warhol para a capa do primeiro álbum do Velvet Underground, à obra de Paulo Nazareth e, ainda, a uma ideia de brasilidade.
Estudante do último período da graduação em artes visuais, Matheus carrega consigo tanto a bagagem discursiva e conceitual dos pesquisadores, quanto o ímpeto e a coragem próprios dos jovens. Da soma de características cada vez mais raras no mercado das artes, o carioca radicado em Juiz de Fora faz brotar uma obra que, na mesma medida em que sensibiliza, indigna, já que em seus subtextos está sua revolta por todo o silenciamento que lhe é imposto. “Hoje compro uma briga. Falar de sexualidade numa cidade que tem uma religião muito forte em sua cultura faz com que eu tenha que encarar as consequências disso. Seria muita ingenuidade minha achar que todos vão lidar com o assunto de forma natural”, diz, apontando para a sequência de vídeos nos quais se utiliza de balas de iogurte para falar de sexualidade.
Em nove minutos e 36 segundos, Matheus, diante de uma câmera, lambe uma escultura fálica – moldada no órgão de um namorado – até que ela se desfaça. “Tomai todos e comei”, nomeou o artista. Já “Cosme e Damião” apresenta o artista chupando balas que em seguida lhe servem para esculpir outro objeto fálico. “Valentim”, por sua vez, mostra o artista beijando uma máscara que reproduz seu próprio rosto e é derretida à medida em que ampliam-se os movimentos e a saliva. Em sua sensibilidade, o artista retrata a força da sexualidade, esteja ela reprimida pela infância, esteja ela oprimida pela religião. “São performances muitos frontais, nas quais encaro a câmera. Acho que vem de uma energia, de uma atitude motora, de uma agressividade, da tentativa de desabafar, de me colocar como artista e como ser sexual frente aos meus problemas familiares, que convergem com as questões sexuais e religiosas.”
Segundo Matheus, são trabalhos que falam de afeto, acima de tudo. “Falam de uma sexualidade implicada no outro, em como se deram minhas relações sexuais. Existe todo um pano de fundo que é sofrido. É um prazer exigente, no sentido da energia que vou despendendo para fazer os trabalhos. A preocupação que existe é de não ser meramente agressivo”, aponta. Ser vulgar? “Acho que passa por uma vulgaridade no sentido de ser destituído de mistério. Mas existe algo além, que é o meu sofrimento e o sofrimento do outro em enxergar o asco, a bala que foge do prazer habitual.”
‘Foi-se o tempo do artista boêmio’
Coerente, a exposição “Eucarístico” apresenta Matheus de Simone, pela primeira vez visto individualmente, como um autor às voltas com os discursos acerca do que é íntimo. Se em algum momento a produção do jovem artista de 22 anos parece indicar duas temáticas principais – sexualidade versus religiosidade e a relação com o litoral -, a mostra atual mostra a complexidade vocabular do artista. “Está tudo interligado. O litoral está muito relacionado à família, ao pertencimento e à afetividade. Isso também surge nos meus trabalhos mais ligados ao sexual”, analisa, indicando outros trabalhos que também integram a exposição e suavizam pontos ora mais explícito, como o castelo/igreja/fortaleza, no qual Matheus cria uma escultura de um templo feita com caramelos e posta sob uma incidente iluminação que irá, ao longo da mostra, dissolver a criação. Ou o vídeo no qual uma pessoa, num ambiente semelhante a uma pista de dança, mostra na língua uma pastilha em formato fálico sendo desfeita com a saliva.
Original, a produção do artista não se faz em caminho solitário, mas bebe da fonte de artistas como Márcia X, importante nome expoente do Parque Lage na década de 1980, Priscilla de Paula, Letícia Bertagna e Afonso Rodrigues, os três últimos seus professores. “Foi-se o tempo do artista boêmio, longe da universidade. Hoje os artistas acabam, senão inseridos completamente, ao menos atravessando o ambiente acadêmico, que é um lugar de pesquisa, de diálogos. Não sei como era antigamente, mas observo que, aos poucos, a academia vai sendo tomada por artistas”, comenta Matheus, cujo projeto mais definido é o que envolve os estudos. “Quero criar uma interlocução. Não tenho a pretensão de ser representado por uma galeria de arte, pelo menos não acho que isso vai vir tão cedo. Mas se isso vier, que venha de uma forma em que eu não me distancie da sensibilidade que me move. Artisticamente quero produzir, apenas isso.”
EUCARÍSTICO
Abertura nesta sexta-feira, 17, às 16h, no Instituto de Artes e Design da UFJF (Campus). Visitação
de segunda a sexta, das 9h às 17h.
Até 14 de abril.