Eu usava um par de brincos cor-de-rosa com o símbolo de Vênus. “O brinco dela me abalou”, confessou Wania Corredo logo no início da entrevista, e fui parar em seu Instagram. Trocamos uma ideia ou outra sobre os movimentos de mulheres fotógrafas brasileiras na noite anterior, enquanto tomávamos alguns chopes, após assistirmos a uma palestra do fotojornalista Custódio Coimbra durante o JF Foto 17, evento de fotografia que acontece em Juiz de Fora até 10 de dezembro. No dia seguinte, seria a vez delas. Wania Corredo, junto à fotógrafa Stela Martins, veio falar sobre o “Fotógrafas Brasileiras”, rede puxada por ela em novembro de 2016, movida por profissionais da imagem que aqui residem ou que estão fazendo trabalho fora do país. Um espaço de ocupação e resistência de profissionais que, juntas, estão pesquisando, propondo ações e disseminando dados importantíssimos para mudarmos a história que sempre colocou a mulher em posição desprivilegiada. E olha que nem queremos privilégio, só equiparidade.
Confesso que não havia nada pautado para entrevistar Wania. Me encontro agora debulhando palavra por palavra daquele depoimento, sempre nas entrelinhas do pessoal e profissional, afinal ela é uma só. Wania Corredo, fotógrafa documental, mãe, feminista, esposa, amiga, intensa e inquieta, tudo ao mesmo tempo. Essas são apenas enumerações reducionistas. O que me despertou a vontade súbita de escrever “Wania Corredo” foi sua empolgação pela vida e por seus projetos e ideais. “Nunca tive hiperatividade, mas eu gosto de viver! Eu tenho uma energia, gosto de fazer coisas!” Ela mesma foi quem disse que estava com bastante fome; a comida havia chegado, mas não parava para comer. Falava, gesticulava, queria combinar, propor, lançar questões, com uma fala de quem come a vida em dentadas precisas e bem posicionadas. “Wania, amanhã como está seu dia? Quero entrevistá-la!” Propus num relance.
Ligo agora uma playlist com músicas saudosas do Rio de Janeiro para entrar sambando de fininho nesse lugar que diz sobre ela não tanto quanto ela diz do Rio em suas fotografias. Em pelo menos 25 anos como fotojornalista, Wania nunca fotografou, profissionalmente, outra cidade que não fosse o Rio de Janeiro. Cuida da sua vida se arriscando solarmente. Não é o risco que a excita, e, sim, a coragem de registrar documentalmente um recorte de sua cidade. É filha única de uma família italiana ligada às artes plásticas, com pai ourives e uma mãe dona de casa que ascendeu em Wania o poderio da mulher independente.
Consciente de sua potência e segura de si, porém sempre doce com as pessoas. É de amizades calorosas – não à toa fomos interpeladas duas vezes para que ganhasse abraços apertados. Gosta de gente e é casada há décadas com seu primeiro namorado. Seu jeito moleca e comunicativo sempre esteve junto dela. Lá sobe Wania, até hoje, no telhado de seu prédio no Bairro Flamengo para soltar pipa. “Eu sou uma solitária hoje em dia, não tem mais pipa no céu.”
Wania queria estudar moda
Quando entrou na faculdade, matriculou-se em publicidade, mas foi pulando de curso em curso, bebendo um pouco do que sentia sede em descobrir sobre o mundo. Antes mesmo dessa época, já desenhava e carregava a vontade de estudar moda em alguma linha solta da sua roupa, sempre bem pensada. Ela gosta. Veste camisa de seda verde com um colar de peça elegante, uma calça ou saia preta midi, amarrada na lateral (perdão a falta de jargão apropriado), e sandálias rasteiras de couro com uma tornozeleira robusta, deixando à mostra apenas algumas folhas que atravessam sua pele tatuada.
“Eu sabia que eu tinha uma ligação com a arte e não sabia qual era. Desenhava muito. Achava que seria artista plástica.” Inquietação batia nos desenhos e pinturas que sempre levavam tempo para ser finalizados. Já na faculdade descobriu o clique – um dos primeiros pontos de virada. A fotografia tinha a luz, a cor, o que queria contar, “tudo em um clique, como eu, imediatamente”. A perspicácia para encontrar a foto certa, sendo sensitiva e rápida, estando pronta para fotografar 24 horas por dia, foi adquirindo ao ser lançada no hardnews. “Eu não sou uma teórica, eu não tenho paciência. Eu sou uma fotógrafa de ação.” Wania Corredo fareja o instante a ser fotografado.
Era um mundo todo novo
Nunca havia pisado em uma redação de jornal. Viu uma fotojornalista toda equipada saindo de “O Dia” em direção ao Maracanã, prendeu o ar como quando sabe que fez A foto. “Caramba, eu acho que eu me descobri!”. Impulsiva, pegou o telefone em sua casa e ligou para o jornal no início dos anos 1990.
Sua primeira foto como fotojornalista diz muito sobre ela e sua história. Estava tendo um tiroteio na favela do Andaraí, jovens mortos, nunca tinha visto um cadáver. Foi parar lá. Após tomar uma porrada no nariz, com uma lente grande angular registrando tudo em um hospital, em meio a um tiroteio, sai do caos abalada, entrega as fotos e não sabe se vai voltar. Tinha 23 anos na época. Não só é convidada por Eurico Dantas, que se tornou um querido amigo, pai e mestre, como, chegando à redação, foi pega de surpresa com sua foto sendo elogiada. “Que fotão! É de uma fotógrafa chamada Wania Corredo”, ao que respondeu “Oi? Sou eu!”, incrédula. “Minha vida é embarcada por esses momentos. Primeira vez, primeira pauta, primeiro momento punk rock total, primeiro dia e primeira página.”
“Sou mulher de front”
“Se você me der uma missão ou se eu achar que eu vou fazer, vou igual a uma locomotiva.” Altamente competitiva e generosa ao mesmo tempo. Não se dá ao direito de recuar e fragilizar, é uma trajetória mirada para a frente, sempre. “Me empurra, me bate, que eu vou te empurrar, te bater, e vou seguir.” O que ela viveu nos contrastes à flor do concreto do Rio não a permite se entregar ao drama ou à frescura. “Pelo que já vi na minha vida, eu não me dou o direito de fragilizar. Minha carreira é marcada, infelizmente, por assistir a muita dor, miséria, fome e morte. Em respeito às histórias que eu contei. Eu sou forte sim, eu não recuo não, eu sou mulher de front”.
Wania é doce, agradeceu-me ao copo de água dizendo “obrigada, amor”, mas sempre foi garota resistente. É suave, mas gosta do combate, e não arreda não. Sua filha, hoje com 14 anos, nasceu no ano em que mais ganhou reconhecimento em suas coleções de prêmios – o Esso ela recebeu grávida de oito meses e meio. “Conforme minha barriga foi crescendo, eu fui ganhando prêmios.” Provável, segundo ela, que seja a única a mulher no mundo que tenha registrado o disparo de uma execução em ambiente urbano, à luz do dia. As fotos no Bairro Benfica, no Rio, nos remetem ao momento do disparo da bala e do obturador na foto de Robert Capa. “O som foi uma mistura de sensações – instinto, velocidade, eu fico pela janela pendurada e faço uma sequência de três fotos”.
Com o peito ainda cheio de leite, voltou de licença e realizou seu trabalho intitulado “Garimpo da fome”, que lhe rendeu o Prêmio Rei da Espanha. Um período em que seus dias eram divididos entre carinhos e amamentação e os registros do rescaldo de um incêndio que denunciava a miséria e a fome. Se tornou a jornalista mulher mais premiada do Brasil, até se encontrar em um momento que precisava de respirar.
Nesse momento, pisou mais leve, escolheu o devagar para poder divagar, lhe interessa permanecer com tempo nos arredores que fotografa. Se ausentou momentaneamente do universo dramático que a engolia e a preenchia cotidianamente. “Precisava me refazer como fotógrafa, mulher, mãe, como tudo.” É fotojornalista independente ligada ao documental e, em 2018, propôs a si mesma iniciar um trabalho fora do Rio, começando a costurar para si uma nova possibilidade de caminho.