O dedo corria a ponta da folha, passava uma, duas, três páginas e não encontrava. Noah Mancini folheava, folheava, folheava. Nas revistas e nos livros que tinha em casa não se via representado. “Os grandes homens das revistas de história, os grandes quadros só reproduzem imagens de pessoas brancas. A história parece ter sido feita por elas. O que não é verdade, mas a nossa cultura imagética é branca”, pontua o jovem artista de 22 anos, que retornou à coleção de revistas como a “Bravo!”, publicações de moda e séries da Biblioteca Nacional para produzir as imagens da exposição “A fake make up da miscigenação”, em cartaz na Galeria Heitor de Alencar do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas.
Em colagens e aquarelas, Noah está presente, seja pelo gesto, seja pela representatividade que passou a buscar quando se apercebeu de uma invisibilidade silenciosa. “Eu não tinha muita noção disso, embora eu já colecionasse há algum tempo as revistas de onde saíram as imagens. Quando comecei a frequentar alguns coletivos negros, fui criando uma reflexão sobre a minha posição na sociedade, fui vendo que minhas referências eram muito brancas. E eu não queria me livrar delas, porque elas tocam minha subjetividade, mas queria, então, me apropriar disso, criando minhas próprias imagens de referência, para poder consumir com mais identidade.”
Noah reuniu retratos e fotografias de um hegemônico corpo branco e, mantendo as formas, pintou corpos negros. “Tentei criar outro imaginário cultural. Fui criando outras formas com figuras negras, como uma construção de outra história”, comenta. Estão ali a pose de moda, a mulher empoderada, a rainha em seu vestido suntuoso e até Carmen Miranda no mítico retrato segurando um refrigerante. Cenas das quais o artista retira o contexto e registra pintando a pele, ora com tons mais claros, ora mais escuros, recorrendo, portanto, ao debate acerca do colorismo que tanto perseguiu a própria vivência.
“Tenho a pele mais clara e durante minha infância e adolescência frequentei espaços brancos. Meus amigos, em sua maioria, eram brancos. O embranquecimento veio também do meu contexto sócio-econômico. E vivi das vantagens e dos privilégios de poder circular por espaços sem olhares estranhos”, narra ele, que apesar de sempre ter sido identificado como negro, não problematizava a questão. “Quando é para me diferenciar, para me excluir, é explícito que sou negro. Mas quando sou eu me colocando, me afirmando, me empoderando, os discursos são para me embranquecer, dizendo ‘Não! Você não é tão assim! É moreno claro!’. Eu sou negro.”
Quais são as raízes da invisibilidade?
Decalcadas de revistas, as aquarelas mantêm o formato original. São diminutas, e não apenas para remeter ao lugar inicial, mas também, e sobretudo, para suscitar a aproximação do espectador. É preciso se colocar diante da questão. Sem dissimulações. É urgente encarar. As pequenas dimensões, ainda, remetem a um tratamento público, que tende a reduzir o problema a fim de não gerar enfrentamento. Em contraste com as molduras agigantadas, com grandes marcas, o assunto parece saltar, reafirmando-se como protagonista. Na observação atenta que “A fake make up da miscigenação” exige, também saltam aos olhos aquarelas como “A favorita”, que exibe uma mulher num vultuoso vestido vermelho e com o rosto sem preenchimento. Apenas traços como o nariz, boca e olhos denunciam tratar-se de uma pele negra. Algo não está completo. E essa incompletude, segundo Noah Mancini, faz referência a um debate profundo, fundador: “A própria desigualdade social é sempre algo que precisa ainda existir, está por acontecer, é algo que não chega a ser concluída, não é plena.”
Em todas as cenas o corpo negro é político, defende o jovem artista. “Algumas aquarelas eu fiz com a intenção de dissimular o corpo negro e apreciar o belo, como se fosse algo corriqueiro, de qualquer lugar. Ao mesmo tempo fazendo essa crítica de um corpo que é decoração e também presença”, pontua ele, que nas colagens digitais, anteriores às aquarelas, trabalha a inserção de corpos negros sem os estereótipos nossos de todo dia. Para isso, ele escaneia as revistas e cria camadas de sobreposição, formando imagens belas e orgânicas, nas quais a presença negra é um esforço de naturalidade. O que interessa a ele é a discussão sobre os lugares possíveis de ocupação. Porque impor limites invisíveis?, parece perguntar em seu trabalho.
Aluno do bacharelado interdisciplinar em Artes e Design, Noah soma à questão racial o debate de gênero. Suas personagens não são femininas gratuitamente. “Sou homossexual, e a minha identificação não é com a performatividade masculina. Essa diferenciação que se dá com a cor também se dá com minha orientação. Porque sou afeminado, as pessoas já me impõem o que vou fazer ou não”, aponta.
Prestes a concluir o primeiro ciclo de sua graduação, Noah pretende aprofundar-se em cinema, mas mantendo os interesses em moda e artes visuais latentes na exposição de estreia. Artista multimídia, defende conceitos, o que também se mostra potente na escolha pelas aquarelas. “Gosto da maleabilidade da tinta. Se errou, dá para consertar. A tinta é bem fluida. Os traços e as cores vão pegando, e a pintura vai se fazendo com o tempo. A pintura é mais livre, e a própria tinta vai criando um pouco de vida no papel, saindo da margem e apontando coisas para mim”, explica, acrescentando que os tons se sobrepõem e fazem surgir outros. É bem assim que funciona o conjunto de trabalhos: Noah não se coloca como único a dominar o assunto, mas como sujeito que desperta o debate, como voz presente. “Está sendo interessante expor em um lugar geograficamente central. É um aprendizado empírico, no qual fui criando soluções à medida que as coisas iam acontecendo. A exposição, e não só pelas obras, me deu a oportunidade de solucionar uma perspectiva, uma poética negra, de buscar formas e estratégias de vida.”
A FAKE MAKE UP DA MISCIGENAÇÃO
Visitação de segunda a sábado, das 9h às 21h, e aos domingos, das 10h às 18h, até 31 de julho, na Galeria Heitor de Alencar, no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (Avenida Getúlio Vargas 200 – Centro)