Não pertenceram a operários as casas agigantadas, com muitos e grandes cômodos, ricas em detalhes nas fachadas, no Bairro Poço Rico, segundo Carlos Alberto Pavam, um dos 140 moradores notificados no processo de tombamento do que seria um conjunto paisagístico urbano. Durante sua fala na audiência pública que aconteceu na Câmara Municipal na tarde desta terça (13), Pavam reivindicou para as casas da subida da Rua Antônio Dias e para o conjunto da Rua Dona Mariana Evangelista (perpendicular à primeira) o mesmo tratamento que têm recebido as 50 casas na área entre as ruas Pinto de Moura e Espírito Santo, e entre as ruas da Bahia e a Dr. Vilaça. Enquanto algumas permanecem, ainda que sem sinal algum do passado, outras deram lugar a descomunais torres de prédios em construção. Para o morador, os maiores interessados na memória do bairro são os próprios moradores, alijados de um processo que, a observar o debate no Legislativo, tornou-se imbróglio de ânimos exaltados e gestos agressivos.
“Não acredito em política pública que não envolva a comunidade”, sugere Pavam. “Achar que podem preservar aquela área sem comunicar a gente é um absurdo”, acrescenta o homem, pontuando as muitas famílias cujas gerações seguidamente apostaram num bairro que crescentemente deteriorou-se. “O trabalho deveria ter sido feito de maneira justa. É muito fácil para os autores do processo dizer que as casas são históricas sem comprovar. A impugnação, portanto, não tem valor algum, porque não há do que se defender quando não existem provas. Que processo democrático é esse?!”, questiona Luis Augusto Picorelli, advogado que assina o pedido coletivo refutando a ação preservacionista.
Cobrando o envolvimento da comunidade ainda no despertar do processo, outro morador, Paulo César Arcuri indaga: “Sou descendente do Pantaleone Arcuri, e minha família não tem interesse no tombamento. Isso é bastante sintomático, não é mesmo?!” Filha do engenheiro e arquiteto Arthur Arcuri e neta de Pantaleone, Alice Arcuri se diz adoecida diante da situação que a colocou como vilã no lugar onde mora. “Pessoas com as quais convivo há muitos anos acharam o pior de mim, que eu havia feito o pedido”, emociona-se, pontuando uma opinião que, certamente, seria a mesma do pai. “Se a cidade fez a opção pela especulação imobiliária não tem como discutir tombamento. Está feito”, defende, referindo-se à autorização para a edificação de um prédio de 11 pavimentos na região.
De acordo com o engenheiro civil Eduardo Lucas, o impasse envolvendo o Poço Rico é o estopim na questão urbanística de Juiz de Fora. “Tudo isso é a gota d’água de uma cidade que fez um Plano Diretor para inglês ver e não cumpriu nada. O que acontece aqui é reflexo do que não foi feito em 30 anos”, comenta. “Não defendo a verticalização, mas o preenchimento dos espaços urbanos vazios e a coerência paisagística. Estamos assistindo à falta de uma legislação robusta. Pode estar sendo aberta a porta da especulação no Poço Rico”, acrescenta.
Para Ricardo Capra Pereira, era necessário que houvesse um estudo de impacto. “Esse processo é de muita irresponsabilidade com os 140 moradores do bairro”, pontua. “Vivemos em um país democrático, onde se tem direito ao amplo diálogo, mas quando nós fomos ouvidos?”, faz coro Alexandre Reis da Silva, presidente da Sociedade Pró-Melhoramentos do Poço Rico. Advogado da associação que defende os moradores do bairro, José Rufino de Souza Júnior defende a ausência do princípio de prudência no processo. “Como se apresenta um pedido de tombamento sem o mínimo de conteúdo técnico? Essas instituições (que assinaram) estão sujeitas a penalizações. Estou diante de uma arbitrariedade”, comenta o profissional. “Nosso Comppac parece mais um carimbador maluco”, critica.
Para nascer a verdadeira preservação
Citados em diferentes momentos, bens tombados decadentes assumiram o protagonismo de discursos prontos a denunciar a ineficácia do tombamento como artifício da preservação. Do Palacete dos Fellet (esquina da Avenida Itamar Franco com Rua Batista de Oliveira), preservado pelo município, ao Marco do Centenário (na Praça da República), conservado segundo legislação federal, o tombamento foi colocado em xeque. “O Marco do Centenário é o exemplo maior de como o próprio Poder Público não dá conta de cuidar dos seus próprios bens e agora quer colocar na conta da iniciativa privada algo que nem ele mesmo faz”, critica Alexandre Reis da Silva. Bastante hostilizados por uma plateia cheia, formada predominantemente por moradores do Poço Rico, pesquisadores e defensores do tombamento precisaram, portanto, não apenas defender um gesto como também um mecanismo.
Segundo o professor do departamento de história da UFJF Marcos Olender, um dos que assinou o processo, representando a seção local do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), o revanchismo acaba por dissimular intenções reais. “Tanto as entidades que apresentaram o pedido quanto os moradores querem a mesma coisa, tem carinho pelo bairro”, diz, defendendo o compartilhamento do processo com a comunidade. Diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF, outra entidade que legitimou o processo, Gustavo Abdalla observa a importância de se pensar na cidade mecanismos de defesa do patrimônio como a regulação das áreas de diretrizes especiais (ADEs), realidade bem-sucedida em Belo Horizonte.
Para o superintendente da Funalfa e presidente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac) Rômulo Veiga, a adoção das ADEs em Juiz de Fora daria conta da polêmica que, segundo ele, “torna-se ainda mais complexa porque tange o individual e o coletivo”. Menos restritiva que o tombamento, a concepção de áreas de diretrizes especiais daria conta de preservar o Poço Rico impulsionando sua revitalização.
Pela revogação imediata
Como a resumir os enfrentamentos, o vereador Júlio Obama Jr. (PHS) – um dos poucos vereadores a presenciar a plenária – defende a imediata revogação do processo de tombamento. Ana do Padre Frederico (PMDB) e Vagner de Oliveira (PSC) concordam. “Se isso é uma luta, os moradores já ganharam. A sociedade precisa caminhar para o debate”, afirma. “O Comppac não pode ser representante de si mesmo. O diálogo é sempre possível, e a revogação também”, defende. Para o vereador Betão (PT), há condições de revitalização do bairro, e a Comissão de Urbanismo da Câmara Municipal deve intervir para garantir o debate no imbróglio. Defensor do patrimônio público, Castellar (PT) pontua que, no tombamento do conjunto, a preservação não pode ser feita à revelia dos envolvidos.
Proponente da audiência, o parlamentar Dr. Adriano Miranda (PHS) sugere que existam alternativas à preservação do bairro. “Não sou contra o conceito, mas sou contra o abuso, o desrespeito, a tirania e, sobretudo, contra a covardia”, comenta. “Se o Poder Público tem o poder de interferir, também pode dar qualidade de vida mínima para esses moradores. O Poço Rico está abandonado. Chega de conversa fiada, de historinha, de romantismo do tombamento. Precisamos é de estrutura”, argumentou o vereador, que apresentou um vídeo feito pelo morador Ricardo Capra, ao longo de 15 minutos, apresentando a estação de esgoto, o viaduto, a cracolândia, a mendicância, o trânsito pesado e o lote para a construção do prédio com 80 apartamentos. Pressionado, o secretário de Governo José Sóter de Figueirôa Neto compromete-se a ampliar a discussão, indicando uma possível reversão do quadro. “Há uma diretriz de governo que é o diálogo. Nada vai ser decidido sem ouvir a sociedade. Vamos discutir esse assunto até a exaustão”, garante.