No futuro, será possível conectar eletrodomésticos, objetos pessoais, vestimentas e até mesmo automóveis à rede mundial de computadores. Tudo feito a um simples toque ou mesmo por sensores. Já é tecnicamente possível, na verdade, embora tal nível de conectividade não esteja disponível para a maior parte das pessoas. No presente, lives e reuniões virtuais instauraram a onipresença da internet que, já com a implantação do 5G no país, promete oferecer o que pesquisadores estudam há quase três décadas sob o nome de “internet das coisas”. Enquanto a pandemia contribuiu para a o avanço das experiências de transmissão virtual, é possível que num momento seguinte, após a retomada plena das atividades presenciais, coexistam apresentações físicas e on-line. Para isso, no entanto, é preciso que equipamentos culturais, agora fechados, ofereçam conexões eficientes. A realidade, no entanto, remete mais ao passado do que ao presente e ao futuro. Em Juiz de Fora, nenhum espaço dispõe de link dedicado, modalidade superior à caseira banda larga e na qual existe a garantia da totalidade da banda, possibilitando a estabilidade ideal para transmissões virtuais e compartilhamento com um grande número de pessoas.
No maior teatro da cidade, o Cine-Theatro Central, o wi-fi funciona plenamente no escritório, que fica no segundo andar do prédio, logo atrás do balcão nobre. Como a distância até o palco é grande, o sinal não chega até lá. “A velocidade é baixa, e a conexão, instável. Para fazer uma transmissão ao vivo não dá para confiar”, reconhece o diretor do local, Luiz Cláudio Ribeiro, o Cacáudio. Com esse temor, os artistas do Movimento Artístico Evolucionário (Mare) optaram por gravar seu primeiro programa, “O Cabaret dos Seres da Ribalta”, que estreou na última terça (8), ao invés de exibirem ao vivo, direto do palco do Central. “A gente até conseguiria fazer a transmissão. Mas a qualidade da internet que temos em casa não se mostra suficiente. A que temos não foi pensada para transmissão de arte e cultura. Tanto que as lives profissionais contratam o que chamam de internet dedicada, capaz de transmitir uma quantidade de dados acima da média”, observa o ator e diretor Rodrigo Mangal, integrante do Mare.
“Estamos longe de atingir o ideal, por questões estruturais”, admite Luiz Fernando Priamo, gerente de espaços da Funalfa. “Não é que não tenhamos conexão com internet nos espaços, mas elas são restritas ao serviço administrativo. Elas não têm a função de atender o usuário. Não há internet liberada em todos os equipamentos. Elas funcionam bem para o que a gente precisa, como trâmites de documentos, ou mesmo receber material de editais. O único espaço que tem uma estrutura pronta para receber demandas mais específicas é o Teatro Paschoal Carlos Magno. Como é um prédio mais novo, ele já foi pensado (na parte de tubulação) de uma maneira a ramificar a rede e tê-la distribuída em todo o espaço”, pontua o gestor, chamando atenção para o período em que a maioria dos prédios dos equipamentos culturais locais foi construída, quando ainda não havia demanda por internet.
O país com sinal fraco
Como um retrato do país, a realidade dos equipamentos culturais de Juiz de Fora replica-se Brasil afora. De acordo com a “Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos equipamentos culturais brasileiros”, realizada em 2018 e divulgada ano passado, apenas 46% das bibliotecas do país possuem wi-fi, enquanto entre os cinemas o percentual sobe para 81%. Em contrapartida, apenas 29% dos cinemas oferecem wi-fi para o público, ao passo que entre as bibliotecas o percentual é de 38%. Arquivos, bens tombados, museus, pontos de cultura e teatro oscilam numa mesma faixa, sem ultrapassar 48% dos equipamentos a disponibilizar acesso à internet para os usuários. Em todos os tipos de equipamentos pesquisados, predomina a faixa de velocidade de até 10 Mbps, insuficiente para utilizações mais sofisticadas, como transmissões ao vivo ou mesmo compartilhamento extensivo. Agrava o cenário quando constatado que 10% dos museus e teatros do país sequer possuem computador próprio.
“A adoção das tecnologias de informação e comunicação por instituições culturais pode promover um maior alcance das atividades e dos ativos que elas têm, colaborando, em última instância, com a ampliação do acesso à cultura. Pode contribuir, ainda, com a oferta de conexão à rede para a população, além de auxiliar na gestão e no funcionamento das próprias instituições”, defende Alexandre F. Barbosa, diretor do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), responsável pelo amplo e complexo estudo, que aponta para a potência da cultura como ativo do desenvolvimento socioeconômico do país. Para isso, defende Barbosa em sua análise da pesquisa, é necessário que a tecnologia seja aliada do setor cultural, o que está, inclusive, preconizado em documentos como o Plano Nacional de Cultura (PNC). Segundo o PNC, até este ano os conteúdos em domínio público no Brasil deveriam ser disponibilizados no ambiente virtual, e os acervos das bibliotecas públicas e de 70% dos museus e arquivos deveriam estar disponíveis para consulta virtual. Pelo menos em Juiz de Fora, todavia, a diretriz é desejo, apenas.
O wi-fi oferecido pelo município na Praça Antônio Carlos acaba por contemplar parte da Biblioteca Municipal, mas o acervo da instituição ainda não está on-line. O ideal, aponta Luiz Fernando Priamo, seria oferecer uma rede capaz de gerar interatividade com o público nos próprios equipamentos. “Hoje há uma dificuldade (para fazer isso), embora tenhamos ferramentas disponíveis através das nossas redes sociais e de alguns produtos como exposições virtuais. As pessoas que estão nos equipamentos não têm um produto a mais para consumir ali, então, entendemos que ofertar uma internet in loco pode possibilitar, por exemplo, um audioguia para uma exposição”, sugere o gerente de espaços da Funalfa, pontuando que o trabalho para a ampliação das redes mobiliza diferentes setores da Prefeitura, num reflexo típico da burocracia própria do serviço público. O mesmo impasse acomete o Cine-Theatro Central. “Existe uma perspectiva de melhora, há algumas alternativas, mas a rede é da Universidade. Não temos autonomia para decidir. Ele entra no sistema para os equipamentos externos”, explica o diretor Cacáudio, assegurando a existência de um debate acerca do assunto para melhorar a internet nos equipamentos do Centro. “Precisamos avançar na discussão a esse respeito para tomar uma decisão promissora e a médio prazo.”
Questão de gestão
Cruzando dados de diferentes pesquisas acerca do uso da internet no país, o economista João Leiva e o jornalista Ricardo Meirelles, da consultoria JLeiva Cultura & Esporte, dissecam, num estudo da Pesquisa TIC Cultura, como o perfil do usuário de internet no Brasil se assemelha ao do frequentador de atividades culturais no país: indivíduos escolarizados, jovens e pertencentes ao topo da pirâmide socioeconômica. A atividade on-line, portanto, não afeta a off-line, mas alimenta-a, já que informações sobre equipamentos culturais muitas vezes são buscados no ambiente virtual. Ainda que não seja suficiente para corrigir as distorções no acesso à cultura no Brasil, a conectividade se mostra, segundo os pesquisadores, uma importante e crescente fonte de fomento para as atividades presenciais.
Para o músico e produtor Luqui di Falco, a presença digital dos espaços culturais da cidade, com interações e posturas comerciais mais agressivas, eram bem menos relevantes antes da pandemia do que estão sendo agora e serão no futuro. “A nova demanda existe e vai requerer muito sacrifício, porque não era praticada antes. Acredito que a transmissão ao vivo e simultânea dos eventos veio para ficar. Vamos viver um cenário de escolhas e preferências mais nítidas. Há uma tendência no mercado que todas as produções vendam o produto físico e o digital. Quem sabe, num mundo ideal, pratiquemos o ingresso físico com um preço e o ingresso virtual com outro? Seria uma nova possibilidade. O digital não tem limite, qualquer pessoa pode assistir, de qualquer lugar, o que tornaria muito amplo o impacto dos artistas e dos eventos. Esse é um cenário ideal”, avalia ele, alertando que é preciso, primeiro, criar uma audiência on-line e uma relação com ela, compreendendo suas preferências.
Publicado no XVII Encontro Nacional da Anpur (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional), o estudo dos pesquisadores da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia Eduardo Paes Barreto Davel e Fabiana Pimentel Santos assinala a questão como um dos principais desafios da gestão de equipamentos culturais. “Os desafios econômicos são os de gestão: a dupla natureza deste tipo de organização, que conjuga uma dimensão artística e uma dimensão predial. Inclui, também, o alto custo de manutenção, atualização tecnológica e contratação de serviços especializados decorrente da especificidade e complexidade das ações desenvolvidas neste tipo de organização cultural”, ressaltam, apontando para a necessidade de que os equipamentos qualifiquem as práticas de sociabilidade vigentes e fortaleçam processos de construção da cidadania.
Ainda sem previsão de reabertura, a casa de shows Cultural Bar segue a pandemia oferecendo seu espaço para ensaios e gravações, além de transmissões ao vivo, considerando a incapacidade da conexão no local. Também, aproveita para afinar o discurso, exercício fundamental nesses tempos, conforme aponta Luqui di Falco, um de seus sócios. “Temos a urgência de trabalhar, mas acreditamos na empatia de fazer as coisas aconteceram quando for menos arriscado. O que estamos oferecendo, neste momento, é respeito às exigências”, observa o gestor, também fundador da Criadoria, plataforma on-line para cursos nos quais profissionais experientes compartilham seus saberes. “O mundo digital é uma nova possibilidade, com novas profissões. Mais que nunca, os grandes profissionais terão outra atuação, na sua área principal e também como professores, repassando seu conteúdo no mundo digital”, sugere Luqui.
É prioridade? Será viável?
“A produção cultural não é a mesma coisa que a produção de conteúdo on-line. Ter de misturar as duas coisas é um desafio”, reconhece Luiz Fernando Primo. “A pandemia nos alertou para a necessidade de ter contato com o público”, diz, citando que a crise alterou significativamente o volume de atividades que os espaços administrados pela Funalfa produziram com a finalidade de gerar interatividade. “Foi no intuito de nos mantermos relevantes para as pessoas”, observa o gestor. A rotina interna, conta, também sofreu mudanças, e as reuniões presenciais deram lugar a encontros virtuais, muitos deles pautados pela criação de protocolos de uso na retomada. Segundo Priamo, cerca de 90% dos fluxos internos estão informatizados neste momento, mas alguns processos ainda exigem documentos em papel, como o trâmite da reforma do telhado do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas. “Um objetivo meu é trabalhar cada vez mais com menos papel”, observa.
Para o ator e diretor Rodrigo Mangal, o momento contribuiu para que os artistas desenvolvessem uma linguagem própria na internet. “É na dificuldade que a gente cresce e melhora. Eu me vi obrigado a lidar com ferramentas tecnológicas que normalmente não usaria em meu trabalho”, explica, ainda em dúvida se tais demandas se manterão no futuro. “A dificuldade de se manter é que envolve um aparato técnico que não é simples nem barato. Só com a pandemia para justificar esse movimento. Elas estão surgindo por conta do contexto. Mudando o contexto, elas vão permanecer? Acho que a tendência é que permaneçam pouco, até porque a arte é muito melhor presencial”, comenta, para em seguida fazer outra provocação: “Esse é um dos gargalos do setor, mas não sei se é o grande gargalo. Produzir o quê? Não basta ter a ferramenta, é preciso saber usá-la.” Cacáudio, diretor do Cine-Theatro Central, compartilha da inquietação e destaca que a conectividade no maior teatro da cidade pode ser mais interessante para a classe do que para o próprio local.
“É um teatro de 90 anos, tombado pelo patrimônio. Fundamental é ele estar aberto para atender os espetáculos e a população. Mas se eu pensar no Central como um espaço público, ligado à Universidade, acho que é um compromisso da instituição tentar atender a demanda da classe artística da melhor maneira possível. No contexto como o que estamos hoje, acho importante que isso aconteça. É possível que proponhamos outras formas de ocupação virtual do espaço. É possível, mas não a principal missão”, defende Cacáudio, afirmando ter identificado uma demanda local por “lives” produzidas no espaço. Segundo ele, está sendo idealizado um edital específico com a intenção de conseguir um parceiro para instalar equipamentos para transmissões ao vivo no Central. “É possível que, para determinados segmentos, isso seja uma proposta interessante. Uma companhia de teatro daqui, por exemplo. Se a gente disponibiliza um show musical ou teatro, estará no mundo, mas não vejo isso como sendo o objetivo principal do Central, e sim como uma alternativa possível”, pondera.