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‘O som e a sílaba’, de Miguel Falabella, em cartaz nesta sexta-feira no Central

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Alessandra Maestrini se diverte no palco com sua personagem, Sarah, que tem Síndrome de Asperger (Foto: Pedro Jardim de Mattos/Divulgação)

Um dia, lá pelos idos de 2010, quando Miguel Falabella fazia preparação vocal para o musical “A gaiola das loucas” com Mirna Ribeiro, uma das maiores referências do ramo, o artista chegou mais cedo para a sessão. No palco, Mirna trabalhava com a atriz e cantora Alessandra Maestrini, imortalizada para muitos por seus trabalhos humorísticos na TV, como a hilária Bozena, do humorístico “Toma lá, da cá” (criação de Falabella). Durante aquela aula com Mirna, Maestrini cantava ópera, e Falabella, adiantado, ficou encantado, como relembra a própria atriz. “Ele me disse: ‘Tá doida? Você acha que se eu tivesse uma voz dessas eu ia estar fazendo palhaçada na televisão? Eu ia estar cantando na Europa!'”, diz ela, entre risos. “Mas eu sou palhacinha também, gosto de explorar caminhos diferentes da arte: o humor, o canto (lírico ou não), atuar em várias possibilidades. Mas foi daí que surgiu o germe de “O som e a sílaba”, ele disse que ia escrever especialmente pra mim e pra Mirna um trabalho em que eu cantasse ópera, e cá estamos nós três. E eu gostava de fazer ópera e nem sabia (risos)”.

Em meio a tanta intolerância, preconceito e manifestações de violência dos polarizados dias atuais, a voz tão conhecida e suave de Alessandra me conta ao telefone sobre uma das chaves para que possamos caminhar rumo a tempos melhores, falando sobre a peça. “No meu processo de criação (de personagens), eu aprendo por meio do movimento, do contato, da emoção, sou sinestésica. Procuro estabelecer uma conexão com o outro, entender de que ponto de vista ele entende o mundo”, diz ela. O espetáculo, que além de escrito também tem direção de Falabella, está há um ano na estrada e chega a Juiz de Fora nesta sexta-feira (14).

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O processo de criação baseado na empatia adotado pela atriz torna-se ainda mais importante quando se pensa na temática da peça e na particularidade de sua personagem, Sarah, que tem Síndrome de Asperger, condição psiquiátrica do transtorno do espectro do autismo. No enredo, a personagem, que tem aptidão e talento para a música, encontra-se, depois da morte dos pais, com a personagem de Mirna, Leonor Delis, uma professora de canto fechada a novas relações, estrela musical decadente em crise profissional e pessoal. “Entre muitas coisas, é uma obra sobre sororidade. A Sarah transforma completamente a vida da Leonor, que é uma ex-diva da ópera e se vê em vias de encarar um ostracismo. Depois do encontro, ela vê a vida sob outra perspectiva, porque, até pelo Asperger, a Sarah não vê as coisas como boas ou ruins, elas simplesmente são. E isso é libertador para Leonor, que, por sua vez, apresenta um mundo de possibilidades para Sarah, que sempre viveu escondida na casa do irmão”, conta Maestrini. “E essa relação entre mulheres fica demarcada até na escolha musical, uma das músicas-tema do espetáculo é o ‘Dueto das flores’, da ópera ‘Lakmé’, uma obra feminista”, ressalta.

Alessandra Maestrini contracena com Mirna Ribeiro, a fechada professora de canto Leonor Delis (Foto: Priscila-Prade)

‘Tudo em casa’

Para Alessandra, trabalhar com Mirna e Falabella, dois profissionais com quem já tinha uma história, fez deste espetáculo uma construção coletiva. “A gente já conhece a linguagem um do outro, sabe como caminhar quando um pede algum ajuste, é um jogo muito fluido, uma coisa muito bonita de grupo. E fizemos algo interessante e muito proveitoso, a Mirna me preparou vocalmente e eu a preparei como atriz, o que traz uma química e uma parceria muito forte para a cena.” Apesar de ser veterana em musicais, “O som e a sílaba” é a primeira ópera de Alessandra, o que exigiu da atriz e cantora preparativos específicos. “Tive que ser mais regrada com meus horários. O canto lírico exerce uma pressão tão grande sobre o diafragma que comecei a ter refluxo, algo que nunca tive. Então só posso cantar três horas depois que comi ou fiz exercícios físicos. Até porque o refluxo inflama as cordas vocais, ‘engrossando’ meu timbre, que é leve e cristalino, pré-requisitos para o lírico.”

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Humor que comove

Segundo Alessandra, desde a concepção do projeto, houve uma preocupação em tratar do espectro do autismo de forma realista, profunda, mas sem que se perdesse o humor. “O Miguel tem um olhar muito bem-humorado sobre a vida e foi extremamente honroso ao tratar do Asperger, um tema pelo qual ele já estava apaixonado há tempos. É um espetáculo que não ‘ri de’, mas ‘ri com’, o que faz uma sutil, mas enorme diferença, sobretudo quando tratamos de um tema ainda tão estigmatizado. É certamente um espetáculo de entretenimento, mas muito amoroso e empático. Quem vai esperando uma peça pesada, porque é uma ópera e trata de um tema denso, surpreende-se com as gargalhadas que dá. E quem vai esperando a Bozena em cena se diverte, mas se admira com a profundidade do espetáculo, e se toca pela temática, pela abordagem, pela história. Têm falado muito que é uma dramédia, e eu concordo, ela fala, para todo mundo, sobre ir atrás dos sonhos, persistir… mesmo quando nos sentimos subjugados em nossas potencialidades”, diz ela, que também produz o espetáculo.

Para construir Sarah, a atriz estudou, leu artigos, assistiu a filmes e séries e procurou entender o universo das pessoas com Asperger. Mas, segundo a artista, foi primordial a convivência com a cineasta Julia Balducci, que tem a síndrome, para entender o universo de sua personagem. “Cheguei a ela por meio de uma amiga fonoaudióloga. Conversei com ela e os pais, almoçamos só nós duas, li o texto todinho com ela e fiz questão de perguntar se ela se sentia incomodada com algum trecho, se se sentia representada pelo que estávamos propondo no espetáculo, se havia algo a mais que ela gostaria de acrescentar que a gente não tivesse abordado, ao mesmo passo que pude sentir suas reações, entender um pouquinho de sua percepção do mundo, me conectar com ela mesmo… E ela só me disse, depois que lemos tudo: ‘Bota pra quebrar que vai ser fantástico!”

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“Quem vai esperando uma peça pesada, porque é uma ópera e trata de um tema denso, surpreende-se com as gargalhadas que dá. E quem vai esperando a Bozena em cena se diverte, mas se admira com a profundidade do espetáculo e se toca pela temática, pela abordagem, pela história”
Alessandra Maestrini
Atriz

Representatividade

Alessandra explica que a Sarah da ficção e a cineasta possuem vários traços em comum, fundamentais para como a personagem foi elaborada. “O espectro do autismo ainda é visto de forma muito estereotipada. Pessoas com Asperger não raramente possuem traços de genialidade, como é o caso da Julia e da Sarah. De mais a mais, são pessoas altamente funcionais, mas com uma hipersensibilidade a tudo: sons, texturas, expressões, cores, movimentos. Muitas vezes, estas pessoas são interpretadas como antissociais, mas é exatamente o oposto: por sentirem, perceberem demais, o que para nós é um estímulo normal, para elas é excessivo, é demais. Há uma passagem interessante no texto em que a Sarah se depara com uma feira livre e diz que é seu maior pesadelo. Imagine, uma feira, com todos aqueles estímulos! Para nós, é banal, e no texto ela diz que a deixa exausta em três minutos”, ilustra Alessandra.

A atriz relata que o espetáculo tem sido muito bem acolhido pela comunidade autista e por quem convive com pessoas que se enquadram no espectro, bem como os típicos (designação de quem não possui qualquer traço do autismo). “O que mais ouço, depois de uma sessão, são frases como: ‘vi minha filha em você’, ‘agora eu entendi meu sobrinho’, ‘agora sei como chegar a meu aluno’, ‘eu não sabia que uma pessoa com autismo podia ser assim’ e variações mil de frases como estas, de pais e mães, professores, parentes, amigos, pessoas típicas. E o mais significativo para mim é o fato de as pessoas que estão no espectro quererem me abraçar, se reconhecerem de uma forma honrada, delicada, divertida por essa obra.”

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“O som e a sílaba”
Espetáculo com Alessandra Maestrini e Mirna Ribeiro. Direção: Miguel Falabella. Nesta sexta-feira (14), às 21h, no Cine-Theatro Central

 

 

 

 

 

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