Alguns adereços estão numa sala ao canto, e as estruturas em ferro de dois tripés estão guardadas numa lateral do grande espaço cimentado e com telhado de zinco. São os únicos indicativos de que trata-se de uma quadra de uma escola de samba. Os troféus, os títulos e as fotografias continuam guardados numa sala fechada a chave e repleta de mofo, um dos poucos lugares que não passaram pela grande reforma que a Real Grandeza viveu nos últimos meses. Exigência do Corpo de Bombeiros, um novo portão, de emergência, foi aberto na quadra, agora com lotação definida em 1.297 pessoas. O piso do palco foi reconstruído, os camarotes ganharam guarda-corpo mais alto e toda a iluminação foi refeita, com luzes de emergência. Todos os banheiros foram revitalizados e foi construído um específico para deficientes físicos. Financiada por um empresário da cidade, amigo do presidente da agremiação, Luiz Carlos Masson, a empreitada garantiu ao espaço o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB), até então restrito a apenas duas quadras de escolas de samba das 14 juiz-foranas. Além da Turunas do Riachuelo e da Unidos do Ladeira, a Real Grandeza também conquistou o documento exigido para a realização de eventos públicos.
O primeiro show no grande terreno na esquina da Avenida Brasil com a Rua Carlos Oto aconteceu no dia 29 de dezembro. “Foi muito bom, a casa estava cheia”, avalia Fernando Luiz Baldioti, diretor de comunicação da Real Grandeza. Para a inauguração a escola conseguiu o alvará provisório de 60 dias, que garante, ainda, um segundo show, no próximo dia 25. Após uma avaliação dos dois grandes eventos será possível a emissão do documento definitivo. Toda pintada, a quadra ainda aguarda melhorias no camarim, no banheiro dos camarotes e a troca das telhas. A nova cobertura, no entanto, está prevista no acordo entre a escola e a Money Produções, responsável pelos dois primeiros eventos da quadra. Ao invés de pagar aluguel pelo espaço, a produtora fará o serviço. “Essas telhas têm mais de 40 anos. Eu era chefe de ala e a gente fez rifa para colocá-la”, lembra Baldioti, dono de uma trajetória que se iniciou como componente de ala e chegou a presidente da agremiação. Também já foi vice-presidente, secretário, gerente do bar, relações públicas e, atualmente, além de diretor, é conselheiro.
Dez vezes campeã do carnaval de Juiz de Fora, incluindo o campeonato da última edição dos desfiles, em 2017, a escola passou mais de quatro anos com a quadra interditada. “Estamos sentidos. A expectativa é que agora a situação melhore. Agora precisamos gerar eventos para pagar água, luz e concluir o que precisamos fazer”, aponta Baldioti, diante de mais de uma dezena de troféus. Um dos mais antigos é o de segundo lugar em 1982, e o maior é o de campeão em 1995. Há uma longa história por trás de cada um deles, garante o diretor de comunicação. Como há, também, por trás de todas as outras escolas da cidade, maior parte delas combalida pelas interdições e, por consequência, a debandada das comunidades. “Temos que passar por uma reformulação, tanto das escolas de samba, quanto da Liga (Independente das Escolas de Samba de Juiz de Fora). A situação financeira do município e do país não é boa, então, temos que arrumar outra forma de fazer os desfiles”, comenta a presidente da instituição que representa oito agremiações locais, Sonia Beatriz de Oliveira, para em seguida anunciar: “Este ano, infelizmente, não teremos desfiles.”
R$ 100 mil para projeto de reestruturação
Segundo garante Sonia, as agremiações locais trabalham “para fazer as regularizações de acordo com os pedidos do Corpo de Bombeiros e com as leis municipais vigentes”. Também se esforçam para retomar a legitimidade e a relevância em suas comunidades. “Isso aconteceu como em qualquer segmento. Se você tem um grande time de futebol e ele para de disputar campeonatos, as torcidas vão diminuir. Hoje trabalhamos para reconquistar essas pessoas, trazê-las de volta para as quadras e resgatar esse carnaval que nós sempre tivemos. Agora precisamos ter uma nova mentalidade. Essa mudança não é só para o carnaval. É geral. O que não mudou acabou ficando para trás. Cada comunidade, num trabalho de formiguinha, precisa atuar. O que é mais urgente são as documentações e o retorno da comunidade. Houve um abandono dos que gostavam, as quadras ficaram vazias e isso precisa ser revertido. Nossa prioridade hoje é fazer essa reestruturação e mostrar que Juiz de Fora tem escolas de sambas. Estamos vivos e em 2021 voltaremos com toda a força”, defende a presidente da Liesjuf.
“Há uma conversa acontecendo desde o segundo semestre de 2019 com a Liga”, indica o diretor geral da Funalfa, Zezinho Mancini. “Alguns movimentos novos aconteceram, como a cisão da Liga e a criação da Aliança, e tudo isso teve que ser conversado e compreendido para definirmos a melhor estratégia a desenvolver”, acrescenta ele, referindo-se à Aliança Carnavalesca Regional, entidade que representa seis das 14 escolas da cidade. “Um ponto positivo é que os dois grupos têm um discurso semelhante, e no qual a Prefeitura também acredita, de que precisamos trabalhar com a base das escolas de samba. O plano é tratar 2020 como um ano em que a gente reinicia o processo de reestruturação das escolas para que, aí, consigamos, talvez em 2021, retomar os desfiles ou algo que equivalha a isso”, sugere Mancini. Atualmente, um plano de trabalho está sendo traçado com a Liga e calcula-se um repasse de R$ 100 mil que pode servir a eventos para arrecadação de valor maior, investimento em projetos de revitalização das quadras ou formação de gestores.
“Com esse valor poderemos fazer eventos, para chamar a comunidade e aumentar o fluxo de caixa. Como o Município não tem como bancar o carnaval, as escolas precisarão fazer a sua parte. Com essa verba poderemos trabalhar para multiplicar e fazer os desfiles no próximo ano”, aponta Sonia, que apaixonou-se pelo carnaval frequentando a Unidos do Ladeira, hoje integrante da Aliança. “Continuo apaixonada pela escola”, diz. “Sou mais administradora do que carnavalesca. A Aliança é uma dissidência livre. No Rio de Janeiro existe mais de uma associação de escolas de samba e isso só vem a somar. As formas são parecidas de pensar. O presidente da Aliança é meu vizinho. Não tenho dificuldades com isso. Pelo contrário, acho que só tem a acrescentar”, garante.
Construção coletiva é única via
A proposta da Funalfa para a retomada dos desfiles assemelha-se ao projeto defendido em 2017 pelo então superintendente da fundação Romulo Veiga, hoje secretário de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Agropecuária da PJF, que previa a criação de um fundo para a realização de eventos e a consequente recuperação das quadras. “Essa proposta perdeu por 12 votos a 1 na Liga. A ampla maioria prefere continuar com a política de rateio. Não acredito que isso seja política pública e acho que ter essa visão é continuar marchando para o fim dos desfiles”, lamentou Veiga para a Tribuna em uma entrevista de dezembro daquele ano. Hoje, no entanto, o caminho parece ser o único. Fernando Luiz Baldioti, diretor de comunicação da Real Grandeza, tem recebido solicitações de escolas amigas para realizar seus eventos na quadra reformada com a finalidade de arrecadarem fundos para revitalização.
“Vamos, em breve, entrar em contato com a Prefeitura para colocar a quadra à disposição do Município para desenvolver projetos sociais. O espaço pertence à Prefeitura. Toda essa área é em regime de comodato. A gente tem que preservar e respeitar a vizinhança”, reconhece Baldioti. Para Zezinho Mancini, o trabalho coletivo é a solução para o cenário de desalento. “Isso está sendo uma ladainha nossa, de falar sobre coletividade e união. Não só no carnaval, mas em todas as áreas da cultura. Há um entendimento dessa gestão de que se não for por essa via, de tentar com que todos se reergam juntos, cada um colaborando a sua maneira, as ações acabam pulverizadas e se perdem”, pontua o diretor geral da Funalfa.
‘Quem faz o carnaval é a cidade’
Num passado não tão distante, a Prefeitura desembolsava aproximadamente R$ 2 milhões com os desfiles de carnaval. Enquanto as escolas do Grupo A recebiam R$ 65 mil e as do Grupo B obtinham R$ 35 mil, a estrutura da Passarela do Samba custava aos cofres públicos cerca de R$ 800 mil. Insuficiente para uma produção altamente luxuosa e profissional, a verba, no entanto, representava quase 20% de todo o orçamento gasto em ações culturais na cidade. No terceiro ano consecutivo sem desfiles, o modelo tornou-se inviável para um município de contas apertadas. “Era uma fatia relativamente grande diante do orçamento anual para um evento que é importante e tem uma capilaridade enorme na cidade, mas o investimento acabava tendo um fim muito curto, não acontecia ao longo do ano”, avalia Zezinho Mancini, pontuando que mesmo uma redução da infraestrutura precisaria ser minuciosamente analisada.
Cogitado ano passado, o retorno dos desfiles na Avenida Rio Branco, sem grandes estruturas, não ofereceria o devido conforto e segurança para o público, garante o diretor geral da Funalfa. “Há uma tentativa permanente de conseguir patrocínio. Entendemos que os empresários precisam compreender a importância de investir em cultura”, aponta o gestor, certo de que também é importante investir nas outras faces da folia. “Minas Gerais, com Belo Horizonte e as cidades históricas, tem uma tradição dos desfiles de blocos. Juiz de Fora seguiu essa toada, temos um carnaval muito rico com os blocos e eventos em praças. Isso é muito democrático e interessante”, comenta Mancini. Ano passado, a Funalfa investiu apenas em banheiros públicos e logística para os blocos, mas para 2020 a fundação prevê um aporte de verbas.
Publicado nesta sexta (10), o edital de apoio receberá as demandas para o período da programação oficial definida entre os dias 7 e 25 de fevereiro. “Vamos aguardar a demanda para entender o que temos condição de cumprir”, afirma. “Compreendemos que o dever da Prefeitura e dos órgãos públicos é ordenar a cidade, dar a infraestrutura necessária para que as coisas ocorram da melhor forma possível”, indica Mancini, citando o bloco Meu Concreto Tá Armado, que em 2019 teve sua concentração impedida na praça do Bairro São Mateus, onde já era tradicional. “Quem faz o carnaval é a cidade”, garante.