Em toda a América Latina, o número de igrejas evangélicas e fiéis cresce exponencialmente. O Brasil contabiliza atualmente 27.987.318 de evangélicos e 194.490 igrejas espalhadas pelo país, de acordo com o levantamento mais recente, o Censo de 2010. Pioneira no país, a Igreja Universal, do Bispo Edir Macedo, possui 14 mil pastores, 10 mil templos, 320 bispos e uma presença em 95 países. Cenário que se espalha por todo o continente, a onipresença das igrejas evangélicas está nas orações, nos governos e nos meios de comunicação. É o poder da fé, o poder na fé e o poder com a fé. Enquanto os números dão conta da magnitude da questão, faltam narrativas que acessem a subjetividade envolvida. “Fé e fúria” se dedica a isso. O novo documentário de Marcos Pimentel, cineasta juiz-forano radicado há anos em Belo Horizonte, não se distancia da contemplação como marca do autor. Exerce-a de maneira distinta. Interessado no humano, Pimentel dá mais um passo em direção à compreensão de uma complexidade que nem sempre cabe nos silêncios. “Tudo reside na complexidade. Quando se trata de seres humanos, não existem soluções fáceis. Isso me atrai bastante. A complexidade é uma característica inerente a todo ser humano. Como a gente pode ser um paradoxo ambulante, pode mudar muito de opinião, pode surpreender quem está ao nosso lado”, aponta do diretor, que apresenta o filme pela primeira vez no Brasil nesta quinta (12), na Première Brasil do Festival do Rio.
Exibido na semana passada no International Documentary Film Festival in Amsterdam, o mais importante do gênero no mundo, “Fé e fúria” foi recebido com entusiasmo em sua estreia internacional. Imediatamente, foram 12 os convites para festivais internacionais para a produção que já possui contrato de distribuição firmado com a Embaúba Filmes e recurso garantido pelo edital BH nas Telas, da prefeitura da capital. Urgente, chega no calor do debate. “Resolvi fazer um filme muito diferente de meu estilo. Meus trabalhos são muito silenciosos e sempre marcados por uma observação muito contemplativa. Mas senti, quando entrei nesta história, que não conseguiria filmar com esse estilo. Tinha um monte de gente querendo gritar um monte de coisas que estavam sofrendo na pele. Pensei, então, que o filme deveria abrir espaço para que essas pessoas falassem o que está acontecendo com elas. E tem outra questão: o intolerante não te permite filmar uma situação de intolerância, o que se tem é o relato de quem sofreu. Por isso, resolvi abandonar meu estilo. De uma forma geral, meus filmes prescindem da palavra, mas, neste filme, a matéria-prima é a palavra”, avalia o cineasta, que no filme anterior, “A parte do mundo que me pertence”, de 2017, abordou os sonhos de pessoas anônimas e, em “Sopro”, de 2013, a vida e a morte. O que podem os homens?, parece se perguntar ao longo de sua estrada.
Podem construir e destruir em nome de Deus, responde “Fé e fúria”, documentário filmado no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, em sua maioria entre julho e agosto de 2016, com acréscimos que chegam à vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. “Li, um dia, uma matéria de jornal que falava sobre essa situação de que andam se tornando cada vez mais frequente os conflitos religiosos. Infelizmente isso tem acontecido muito nas periferias das grandes cidades brasileiras. Isso começou a me chamar atenção, porque não era uma situação com que eu estava acostumado, não entrava na minha lógica. Durante muitos anos, nas favelas sempre foi tudo muito misturado. Como o espaço é pequeno, as casas são juntas, mais ou menos amontoadas, e sempre foi comum encontrar diferentes manifestações religiosas coexistindo num mesmo espaço. Tinha um terreiro de umbanda ao lado de uma igreja evangélica e logo depois uma igreja católica. Havia diferentes crenças coexistindo numa mesma área. E sempre foi um lugar onde as religiões de matrizes africanas tiveram o respaldo dos donos do morro. Existia um empoderamento e um reconhecimento simbólico. De repente isso começa a mudar. O que seria capaz de causar um mudança a ponto de isso ser proibido? Como se desequilibram as forças religiosas?”, questionou-se Pimentel ao se lançar no novo projeto, o mais polêmico da carreira.
Violência nossa de todo dia
A mesma fé que aquece também queima. Ao longo de “Fé e fúria”, enumeram-se violências de todos os tipos em nome da religião. Cinco personagens conduzem a história desde o início: uma praticante da umbanda, outra evangélica, um pastor, um pai de santo e um evangélico todo tatuado e que em muito diverge das diretrizes conservadoras e preconceituosas de sua crença. “Eu me meti tão a fundo nisso que comecei a ver que aquilo ali, de alguma forma, é reflexo do que acontece em nossa sociedade hoje. Chegamos ao Bolsonaro. O filme parte do micro, no início alguém joga uma pedra numa menina, depois outra leva um sacolejo num supermercado. Mais tarde começa uma briga de vizinhos de um terreiro ao lado de uma igreja evangélica. Isso vai se estendendo cada vez mais até a gente chegar à política nacional. O que está em jogo ali? O massacre de minorias; as relações obscuras entre religião e poder; o poder armado do tráfico, da polícia, da milícia; a onda conservadora que é intolerante em relação às diferenças; é racismo o tempo todo; é fascismo. E, assim, a gente chega à bancada evangélica, na utilização da religião para justificar as coisas injustificáveis, colocando a Bíblia acima de tudo”, afirma Marcos Pimentel, numa referência ao slogan de campanha de Bolsonaro, “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.
“A estética do morro mudou muito nos últimos tempos. Durante muitos anos dentro de favelas, tínhamos nos muros letras de músicas, desenhos de folhinha de maconha e, de repente, isso começou a desaparecer, e hoje existe um monte de inscrição bíblica, salmos”, afirma o cineasta, que subiu morros e vielas. Segundo ele, os traficantes, que frequentam os cultos e dão dízimos, financiam as pinturas com cunho religioso. “Num momento do filme, que chamamos de ‘Gritos de guerra’, temos o funk gospel. Durante muito tempo, o funk foi relacionado a outras coisas, e hoje temos gente de terno e gravata dançando. Tem uma música, o compositor dela aparece, que chama ‘Facção Jesus Cristo’. A letra fala que independentemente da facção, Jesus vai sempre estar presente. São coisas um pouco assustadoras que acontecem. Vemos crianças imitando armas o tempo todo, o que não por acaso é o gesto que o Bolsonaro usa tempos depois”, avalia Pimentel, pontuando os poucos pontos de distinção entre as favelas mineiras e as cariocas. “Tem a diferença entre a quantidade de armas que se encontra nas duas. O armamento é muito mais pesado nas favelas do Rio do que nas de Belo Horizonte. A idade dos traficantes é mais ou menos a mesma. Não vi diferenças de condutas, não. Em Belo Horizonte, há muitos locais onde as pessoas não podem exercer sua fé. Tem uma jogada de não poder andar com as contas ou o turbante. Está proibido usar roupas brancas”, narra. Uma entrevistada conta que o problema é estender as roupas. Se nos varais há vestes brancas, os que ficam por cima observando a movimentação dos morros logo identificam quem está desobedecendo a lei de não frequentar terreiros. E mais violência é prometida.
Armado de sinceridade, Pimentel acessou espaços que nem mesmo o Poder Público enfrenta. “Deixei bastante claro com eles qual era a nossa intenção. Estávamos entrando para entender a crença deles, para falar de religião. Tem um momento em que temos vários traficantes com fuzil, armados e falando de religião. Temos eles orando nos radinhos de comunicação, lendo salmos. No mesmo radinho no qual ficam eles checando se a polícia está chegando e se entrou alguém desconhecido na comunidade, eles falam de Deus o tempo todo. Eles autorizaram a gente a fazer as imagens porque fomos conquistando a confiança deles. Não era um filme sobre o tráfico, mas sobre a religião de quem está no tráfico”, ressalta o diretor, dizendo ter sido melhor recebido pelo Comando Vermelho. Em outras favelas, onde o controle não é claro, o acesso foi mais difícil. O Terceiro Comando, segundo Pimentel, é mais fechado e radical. “Em algumas situações, estávamos prontos para filmar, mas, por conta de algum problema entre polícia e tráfico, precisávamos cancelar e voltar em outro momento”, conta ele, que descobriu, inclusive, que as invasões do Estado costumam se dar apenas em dias de semana.
O respeito que nos falta
Num lugar onde sobram mãos postas em oração, faltam mãos que se estendem solidárias. “Fé e fúria”, que acompanha seus personagens em rotinas simples, retrata, sobretudo, a solidão que os homens se impõem ao decidirem pelos afastamentos. O olhar sensível de Marcos Pimentel registra o esvaziamento de um instrumento que poderia acolher quando apenas repele, refundando abismos sociais. “Sempre encarei como sendo o melhor momento possível para falarmos sobre isso. Nunca, em qualquer outro momento, respeitamos tão pouco o que é diferente. Agora eu queria fazer um filme que mostrasse para as pessoas que a gente precisa se respeitar. Cada um tem um direito de crer, pensar e defender uma opinião. O filme o tempo todo convida as pessoas a refletir, mostrando que o diálogo é a melhor forma. Partindo para a guerra não vamos chegar a lugar nenhum”, alerta o cineasta. “Vivemos um momento político supercomplicado, principalmente o audiovisual, que vive um embate pesado com o governo. Meus amigos ficam muito preocupados sobre o que vamos fazer. Tenho certeza de que vai diminuir o número de filmes, mas também tenho certeza de que em nenhum momento vão acontecer tantos filmes necessários. As pessoas precisam gritar e falar sobre o que está acontecendo. Vai haver um crescimento grande de filmes com carga política. Não podemos nos furtar de participar dessa discussão.”
Se não pessimista, ao menos dolorosamente real. O novo documentário serve como ponte para o agora. “A curto prazo, não vejo perspectiva de mudança. A polarização está muito grande e assistimos um levante conservador se instaurando em diferentes instâncias da sociedade. Basta olhar a quantidade de gente que se viu obrigada a cortar relações dentro da família. Acho que a polarização vai se manter, mas a parte boa dela é que pelo menor caíram as máscaras de uma coexistência pacífica. O país sempre foi dividido, mas agora isso está às claras. Antes fingia-se que tudo coexistia de forma harmônica, da mesma forma como sempre se exaltou o sincretismo religioso no Brasil. Na verdade, tem um monte de questões não superadas e que vem muito de trás. Nas reflexões finais do filme, mostramos como o racismo, entranhado em nossa sociedade há séculos, está por trás dessa intolerância também. E não é de uma hora para outra que vamos conseguir terminar com essa diferenças e desigualdades históricas. O que podemos fazer é estarmos abertos ao diálogos e dispostos a mostrar para todos que não há nada mais rico do que a diversidade”, defende Pimentel, dizendo-se sem religião. Ao longo das filmagens ele foi questionado com as mesmas perguntas que fazia a seus entrevistados. Acredita em quê?, ouvia. “Acredito em conversas, em diálogo, mas não tenho religião. Respeito tudo”, responde.
FÉ E FÚRIA
Exibições no Festival do Rio de Janeiro. Nesta quinta (12), às 19h, no Estação Net Gávea; nesta sexta (13), às 13h, no Cine Odeon; neste sábado (14), às 16h30, no Kinoplex São Luiz