Passa bem. Firme, ainda que um pouco combalido pelas marcas do tempo. Forte, mesmo oprimido pelos altos prédios e atormentado por um intenso trânsito. Robusto, chega aos 100 anos em 2018, trabalhando dia a dia. E por fora, parece ainda mais em forma do que por dentro. Nenhum centenário resiste incólume. De 1918, o Paço Municipal viu a cidade crescer. E cresceu também. Em 1934, estendeu-se na porção do Parque Halfeld, seguindo as linhas de Raphael Arcuri, que o projetou. Dez anos depois, expandiu-se ao fundo, já num padrão mais empobrecido e despido dos detalhes. Testemunha da história local, viu o Edifício Ciampi, na Rio Branco diante do parque, ser o mais alto prédio da cidade, por muitos anos. Ao lado dos vizinhos, mostrou-se coerente e harmônico, em estreito diálogo com a Câmara Municipal, a Igreja de São Sebastião, a Igreja Metodista, o Edifício Ciampi e o Edifício Santa Helena (sede da loja Arpel), companheiros de estilo eclético. Menos feliz, a vizinha ao centro da praça não viu o presente chegar. Ficou no passado, a Biblioteca Municipal com seu estilo eclético ou, como preferia o memorialista Pedro Nava, “estilo bunda”. O Paço envelheceu, mas continua a ser o mais juiz-forano entre os juiz-foranos.
Conta a história que Henrique Halfeld vendeu o espaço da praça por um conto de réis. E doou a área onde hoje está a Igreja de São Sebastião, para que fosse erguida uma escola. A urbanização da praça quem financiou foi seu filho, Coronel Francisco Halfeld. A ideia era fazer do lugar uma região para touradas, onde pudessem amarrar os cavalos para um passeio no Centro. A polêmica das cercas, lembra o jornalista Wilson Cid, que volta e meia retorna às pautas, sempre foi uma questão no lugar. E por algumas vezes as cercas foram postas e retiradas da praça, mutante ao longo das décadas. No lugar onde se ergueu o Paço, havia um prédio baixo, que atendia parte da delegacia e tinha criação de porcos e parada para mulas e cavalos. O Paço deu ânimo e manteve-se honrando o escrito que ostenta: “Repartições Municipaes”. Ele é do tempo em que os ditongos orais eram escritos com “ae” e não com os atuais “ai”.
Ao longo de sua vida, o Paço serviu a 23 prefeitos, em 27 gestões. Repórter que por incontáveis vezes adentrou o edifício a trabalho, Wilson Cid retorna diariamente como funcionário da Funalfa, sediada no lugar. “Desde 1917, toda a história político-administrativa de Juiz de Fora está aqui. O último prefeito nomeado, José Procópio Teixeira Filho (1946-1947), despachou aqui. E o primeiro eleito, Dilermando Cruz (1947-1951), também despachou aqui. Aqui subiram ministros e presidentes do Brasil”, diz, destacando que três agentes executivos que presidiam a Câmara Municipal ocuparam a casa, de sua inauguração até 1931. A administração municipal concentrava-se toda centralizada nos três andares, o que justificou a expansão.
Enquanto o terceiro andar guardava um ar solene, os serviços administrativos ocuparam o primeiro e o segundo andares. Assim permanece. Se no térreo atual está o Espaço Cidadão JF, no pavimento superior a ele, estão setores financeiros e burocráticos da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage, a Funalfa, que chegou ao endereço na década de 1990. A cultura ocupou o espaço onde desde a porta sobressai-se a arte. A porta esculpida em detalhes se abre sobre ladrilhos hidráulicos, confirmando a assinatura do projeto por Raphael Arcuri, com execução de sua Companhia Industrial e Construtora Pantaleone Arcuri. A escadaria, em madeira com tapete vermelho, revelam a nobreza de um local que recebeu a política local, regional e estadual e hoje recebe artistas.
O que viu da vida
Algumas poucas e pequenas feridas se espalham pelo corpo do Paço Municipal. São os rastros de uma qualificada visitante: uma restauradora que se mudou recentemente para Juiz de Fora fez prospecções e descobriu, tinta sobre tinta, a pintura original de algumas áreas em um verde quase bandeira. Também reconheceu uma padronagem no gabinete por onde passaram diferentes prefeitos e hoje é ocupado pelo superintendente da Funalfa, que assinou o projeto que espera dar cara nova ao centenário. Reunindo análises técnicas, uma proposta foi inscrita na categoria de proteção do patrimônio do banco de projetos do Fundo de Defesa de Direitos Difusos do Ministério da Justiça. No documento estão previstas acessibilidade, troca elétrica e de rede, além de modernização do espaço e do mobiliário.
Segundo o superintendente da fundação, Zezinho Macini, um secretário do Fundo visitou o Paço, aumentando a expectativa acerca de um resultado positivo, aguardado para o próximo mês. “Consideramos o Paço Municipal como um dos mais importantes prédios, senão o mais, da cidade. Está na esquina mais tradicional de Juiz de Fora, na ponta do Calçadão”, defende, na esperança de reverter o bege das paredes internas pela paleta secular. “A cor atual é uma questão estética que, por economia, optamos por manter.”
Em época de contingenciamentos, a Prefeitura, que por quase oito décadas instalou-se no endereço, não possui os recursos necessários para revitalizar toda a estrutura, que inclui trabalhos superficiais, como a retirada das manchas no piso de madeira, e também mais invasivos, como a extinção da infiltração que se estende pela sala de reuniões onde atualmente estão a mobília doada pelo professor, médico e imortal da Academia Brasileira de Letras, Antônio da Silva Melo. As peças devem ser transferidas para outro prédio, afim de permanecerem em exposição pública como desejava Silva Melo. Por ora, são insubstituíveis, utilizadas no cotidiano da Funalfa.
No espaço onde estão os móveis em madeira escura, agigantados, está uma pequena porta escondida, por onde entrava o prefeito após fazer declarações no anfiteatro ao lado, construído tal como no presente em 1975, sob a gestão de Saulo Moreira. Na mesma sala, está a sacada de onde Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel acenaram para os juiz-foranos em suas visitas à cidade. No local, o prefeito Olavo Costa também costumava fazer sua pequena revolução: quando diziam que a cidade estava parada, ele logo convocava fogueteiros. Nada anunciavam os estrondos, mas era o necessário para agitar a população em burburinhos sobre especulativas boas notícias. Wilson Cid conta a história e ri. Logo recorda-se de uma trama oposta sentimentalmente.
O Paço foi uma das testemunhas de um terrível incêndio que abalou a folia de 1950. Na segunda noite do carnaval, ao ouvir o apito da galeria, todos saíram às ruas. O prefeito Dilermando Cruz, de pijama, chegou à Halfeld para ver o que ocorria e encontrou o Edifício Clube Juiz de Fora em chamas. Era fim da madrugada, e o clube já não tinha muitos ocupantes. Todos se salvaram. Mas o edifício de três pavimentos se perdeu por inteiro. Quatro anos mais tarde, novamente uma aglomeração se formou no local, desta vez, para protestar. Em 1954, no suicídio de Getúlio Vargas, juiz-foranos se acotovelavam à porta do Paço bradando pela deposição do então prefeito Olavo Costa. Pouco mais de 20 anos depois, na visita do então presidente Ernesto Geisel, uma nova multidão ameaçou adentrar o prédio. Em setembro passado, Bolsonaro, o presidente eleito este ano, em visita à cidade, ao encontrar um público muito acima do esperado de apoiadores, adentrou o hall do prédio para se preparar para uma passeata que culminaria na trágica facada quase fatal no Calçadão.
As vidas que nele se vê
Ainda um recém-nascido, o Paço Municipal assistiu o caos. A gripe espanhola de 1918, ano de sua inauguração, forçou que diversos serviços administrativos começassem a rapidamente sair da Câmara para ocupar o prédio vizinho. Enquanto o Palácio Barbosa Lima recebia os doentes, o Paço acolhia os setores que precisaram ser desmontados para dar lugar ao atendimento do público. Ainda que parceiros, Câmara e Prefeitura mantiveram-se sem comunicação direta, como se reforçassem desde o princípio a independência dos poderes. Jovem, o Paço assistiu à comoção que se formou após a morte de João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, que poucos meses antes de ser assassinado, esteve no local. Duas placas homenageiam — uma fixada no ano de sua morte, e outra do ano seguinte — o advogado e político brasileiro, candidato a vice-presidente na chapa encabeçada por Getúlio Vargas em 1930. “Collocada aqui; presentes o povo e as autoridades, por ordem do prefeito Pedro Marques de Almeida, no dia 26-7-1931, 1º anniversario da morte do Dr. João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque”, ostenta a placa vista ao término da escada, no terceiro andar, onde está o gabinete.
Itamar Franco, prefeito que chegou à presidência da República, despachou na sala com o pé-direito alto, como todo o prédio, mas, diferentemente do restante da casa, com pinturas em seu topo, assinadas por C. Gonçalves. Wilson Cid conta que Menelick de Carvalho pediu para que instalassem um grande espelho na entrada do lugar, “com o intuito de conter a ira dos que chegavam para reclamar de alguma coisa”. O espelho, hoje, compõe o acervo do Museu Mariano Procópio. Já as cadeiras que ocupam a saleta de espera do segundo andar foram herdadas do extinto Cine Paraíso. Confortáveis e impecavelmente conservadas, estão a recordar de uma sala de cinema construída na Rua São Mateus, do bairro homônimo, para servir como fonte de renda do Instituto Maria, do qual era vizinho. Estão a contar dos cinemas de rua, hoje ausentes da cidade. Estão a lembrar do tempo, do qual o Paço é parceiro.