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Christiane Torloni fala de “Master class”, que apresenta em JF

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Premiada quatro vezes pela interpretação de Maria Callas, Christiane Torloni apresenta “Master class” no Central neste fim de semana (Foto: Marcos Mesquita)

Revisão é uma tarefa própria da posteridade. Revisar-se, uma tarefa restrita aos sábios. Maria Callas, a mais potente voz da ópera no século XX, revisou-se nos anos finais. Estava em sala de aula, no luxuoso prédio da conceituada Juilliard School, em Nova York, quando compartilhou aprendizados que transbordavam a música. Em “Master class”, peça escrita pelo norte-americano Terrence McNally, em 1995, e premiada com três Tony Awards na Broadway, a soprano volta à cena numa revisão que dá conta não apenas da personalidade marcante, cercada por polêmicas, mas da artista sensível e comprometida.

Premiada quatro vezes pela interpretação de Maria Callas, Christiane Torloni sobe ao palco do Cine-Theatro Central neste fim de semana (14 e 15) para apresentar “Master class”, na única parada mineira da turnê do espetáculo. Dirigida por José Possi Neto, com quem trabalha há três décadas, Christiane divide a cena com as atrizes sopranos Julianne Daud, Raquel Paulin e Laura Duarte, os atores tenores Jessé Scarpellini e Rodrigo Filgueiras e o ator e pianista Rafael Marão, sob a direção musical do maestro Fábio G. Oliveira. Não é uma ópera. Mas uma peça sobre ópera. E, sobretudo, um tratado de vida.

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Foto Divulgação

Nascida em Nova York, a cantora lírica de ascendência grega ganhou a posteridade como uma figura de vida pessoal conturbada, principalmente devido a seu relacionamento com o bilionário grego Aristóteles Onassis, e uma artista revolucionária, capaz de imprimir um novo estilo às óperas, resgatando peças já esquecidas. La Divina conheceu a glória e também as sombras e cantou, pela última vez, dois anos após dar sua última aula na Juilliard School. Em 1977, após três anos de intensa reclusão, seu coração parou. Suas cinzas encontraram o Egeu. E Callas tornou-se um mito.

Acessar a impressionante resiliência da soprano, no entanto, é percebê-la humana. Numa atuação elogiada, Christiane Torloni faz isso ao revelar a força da mulher contida na artista. Exercício de uma vida mesmo para a atriz que, em 1957, esperava para mamar na coxia do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC. A mãe, Monah Delacy, desde sempre estreitou a distância entre vida e arte para Christiane, considerada uma das mais potentes atrizes de sua geração. Em entrevista por e-mail à Tribuna, a atriz fala sobre o papel, o trabalho no palco e na TV, suas parcerias e, também, sobre ser artista, algo que Maria Callas ensinou em suas master classes.

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Tribuna – De que maneira a personalidade de Maria Callas te toca?
Christiane Torloni – Acho que a Maria Callas coloca a serviço da música, da arte, da beleza toda a experiência que ela tece na vida, incluindo a pessoal. O subtítulo da peça poderia ser “Ensina-me a viver”. É de uma profundidade e de uma humanidade! Apesar de ter toda a técnica vocal, ela não acredita só em técnica. Só acredita naquilo que vem do coração e vai forçando isso nos alunos. É uma aula de humanidade!

Como construiu essa personagem que faleceu há menos de meio século? Em algum momento te preocupou o fato de as pessoas ainda terem uma memória muito viva dela? Teve medo das comparações?
Tem mais de 40 anos da morte da Callas, e é impressionante o público que ela leva para o teatro. Tem amantes da Callas, pessoas que choram, pessoas que acompanham, pessoas que sabem as árias que são tocadas no espetáculo. É muito bonito. Venho me preparando há 44 anos para esta peça (risos). Cada espetáculo é um resumo de tudo aquilo que você viveu antes, e ele vai testar se você fez ou não o seu dever de casa. Esse é um espetáculo que me pede ainda mais disciplina, rigor e dedicação. Estamos na nossa terceira turnê, apresentando o espetáculo em 12 cidades. Tem que ser uma atleta da arte em todos os sentidos para viver isso que a gente vai viver agora. Tem que ter muita força física. Sou conectada com a arte da Maria Callas há tempos. Tenho uma coleção de vinis que recuperei. Interpretar uma personalidade é sempre um risco maior, porque as pessoas podem ir lá conferir (risos). A própria Joana D’Arc, por exemplo, apesar de ser um personagem da Idade Média, tem muito registros de suas passagens. Quando se faz um personagem que vem da sua imaginação, para o bem ou para o mal, é desafiador. Mas o texto de Callas é tão atual! Ela foi uma mulher tão à frente de seu tempo em alguns aspectos, que precisei de mais de 40 anos de carreira para vivê-la.

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Foto:Calé Merege

Maria Callas é muito conhecida por ter sido uma figura de grandes conflitos. Na peça você também mostra uma mulher sarcástica, cheia de humor ácido. Conheceu muitos aspectos pouco explorados dela? O que mais te chamou atenção no processo?
“Master class” é uma comédia-dramática! Ela tem um humor muito refinado que provoca as pessoas na plateia. Callas se expressava com ironia, tinha um humor sofisticado, inteligente. Tem uma questão, que talvez seja o que mais me inspire: é que ela não tinha uma relação com alguém que a desafiasse. Era Callas que desafiava Callas. Isso é uma outra maneira de ver tudo. A maioria das pessoas tem o desafio de fora para dentro. Ela não, vinha de dentro dela o desafio.

O que ainda temos a descobrir sobre Maria Callas?
É muito incrível porque quando você se aproxima da Callas, a história dessa mulher é uma história de superação, desde o nascimento dela, pois ela foi recusada pela mãe nos primeiros dias. Então, esse é um espetáculo para você se apoiar em alguém que, mais do que tudo, não desistiu.

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O José Possi Neto diz que a Maria Callas oferece uma grande aula de humanismo e de construção de caráter. Concorda?
Concordo. Brinco que acho que é um espetáculo de autoajuda. É tão bonito você acompanhar a história de uma pessoa que foi tão humana e foi superando seus desafios, suas limitações e se reinventando. Ele fala dessa capacidade magnífica de nos reinventarmos e sobrevivermos. As pessoas saem muito encorajadas do teatro, e isso é muito bacana!

Foto: Marcos Mesquita

Sua biografia se encontra com a dela em algum aspecto?
Me identifico com Callas primeiro pelo gênero, somos mulheres, românticas, mas já passamos para o século XXI, então, hoje, temos mais possibilidades, o que ela não viveu.

Você e o José Possi Neto trabalham juntos há algumas décadas. Como foi fazer esse trabalho com ele agora, com a intimidade que o tempo proporciona? O que esse encontro seu com ele traz ao espetáculo?
Tenho o privilégio de estar de novo encontrando o José Possi, que é meu grande provocador. Recentemente tivemos um ensaio técnico e parecia que era a primeira montagem. A sintonia é surpreendente. O Possi é um dos grandes diretores que nós temos. Meu primeiro trabalho junto com o Possi foi em “O lobo de Ray-Ban” (1988), de Renato Borghi. Minha atuação ficou muito mais leve depois desse ponto de virada. Você percebe que tudo tem que vir do mesmo lugar: quando criança, você aprende a se movimentar antes de falar. Essa ideia de se mexer ininterruptamente em cena, andando sem marcas, vem desse meu trabalho com o Possi. Meus espetáculos posteriores com ele foram todos de um teatro muito físico. Em “Salomé” (1997), eu parecia estar andando sobre a água. Para mim, é um tipo de teatro que comunica mais com as pessoas e expressa melhor as necessidades emocionais. Às vezes, a palavra é pesada e o sensorial a transporta. Sem que o público perceba, o texto está sendo entregue por outras ferramentas, que são as sensações. Assim, não precisa se preocupar com “ter que entender” a peça: ele a sente. Em todas as montagens que fazemos, desde “O lobo de Ray-Ban”, a gente vem fidelizando o público pelo Brasil. A gente está cada vez mais amigo e confiando mais no outro. Entrega e confiança. Acho que o trabalho vai ficando bonito. Um trabalho amoroso, não consigo definir de outra maneira.

Você tem papéis muito marcantes no teatro. Também fez e faz história na TV. Há alguma predileção sua por uma dessas linguagens? Como é sua relação com o palco hoje?
Estou à procura de bons personagens, seja na TV, no cinema ou no teatro. A mamãe (Monah Delacy), que é atriz, atuou grávida até sete ou oito meses. As minhas primeiras babás eram as camareiras. Então, o teatro para mim é o meu primeiro playground, porque é o meu lugar natural até de reflexão. Lá fui amamentada, ninada, influenciada e inspirada. Na TV, a minha estreia foi nos anos 1970. O Walter Avancini me convidou para fazer “Indulto de Natal”, na Globo. Ali achei que jamais seria uma atriz. O Walter tinha uma pegada tirânica. Ele era duro. Fiquei com tanto medo que mal conseguia falar. Anos depois, fiz a minha primeira protagonista, na novela “Gina”. Foi muito difícil. O Herval (Rossano) era bravo, mas a televisão é incrível porque você aprende fazendo. Não tive curso melhor de formação artística do que a minha experiência na TV Globo e depois na Manchete, que também foi impressionante. Tive que aprender a fazer tudo.

“Master Class” fala sobre ser artista. Inevitável, portanto, te perguntar: como é ser artista hoje?
Acho que qualquer gesto de arte, hoje, é um gesto de resistência. Tanto para nós, para nossos filhos, para nossos netos, porque a cultura significa nossa identidade. É impressionante um país que tem uma manifestação cultural inequívoca como o Brasil estar vivendo um momento quase medieval e colocando em dúvida valores básicos que foram conquistados com o sacrifício de muita gente. De repente, se duvida desse legado, do lugar que a arte e a cultura têm. A quem interessa essa dúvida? Vai se parar de produzir cultura durante quatro anos? É um grande retrocesso intelectual! A arte é uma ciência política, e afinal não tem como não ser. É um fórum por onde passam as grandes ideias, onde se toca a filosofia, onde há liberdade de pensamento. Acho que é disso que tantos têm medo.

MASTER CLASS
Neste sábado (14), às 21h, e domingo (15), às 19h, no Cine-Theatro Central (Praça João Pessoa s/nº – Centro).

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