O homem de preto me olhou nos olhos um pouco de longe e eu senti o calor me invadindo. Deixei de existir.
Não entendi muito bem porque estava no meio da Avenida Rio Branco, deitada ao chão, rodeada com horror por vários que temiam algo que eu poderia conter. Levava apenas papéis que tinham me entregado um pouco antes. Dentro do banco, ao me verem parada em um canto, se distanciaram de mim e chamaram os homens de preto. Eles chegaram e lentamente me acompanharam, colocando-me no chão quente do asfalto de um outono que se mostrava reticente com o frio.
Algumas horas antes Gérson tinha me acompanhado até a agência, ele conversou comigo, senti que queria que eu participasse de sua vida, que estivesse presente, que carregasse suas emoções, como carreguei as de Júlia. Chegamos ao banco e ele me entregou alguns extratos antigos e papéis sem sentido. De repente fugiu. Deixou-me ali, estagnada, impassível ao que poderia de alguma forma acontecer.
Gérson tinha sido gentil ao me estender a mão na sarjeta em que eu me encontrava. Abandonada por Júlia, eu estava caída em um espaço de calçada que me diferenciava do lixo por pouca distância e por muita história. Tinha estado em tantos lugares com ela: Belo Horizonte, Rio de Janeiro e, por fim, Juiz de Fora. Fui tão bem tratada durante toda a minha existência, fui o porto seguro de Júlia no momento em que as coisas não estavam boas e fui sua companheira nas primeiras colheitas em tantos locais em que estivemos juntas.
Os anos se passaram para nós, mas os cupins não tomaram o esqueleto dela como tomaram o meu. Nada disso importou quando Júlia me deixou naquela calçada e Gérson veio. Reacendi minhas esperanças de poder recomeçar em outro lugar, guardar alguns novos segredos e proteger o mais íntimo de meu novo companheiro.
Ele também me deixou e ninguém me explicou, ninguém me falou. Deitaram-me no calor asfixiante do asfalto e me detonaram em vários pedaços que dolorosamente se soltaram, rasgando tudo que poderia ser minha chance de construir uma vida nova.
A realidade tinha me colocado em extremos. Em menos de doze horas, estava entre os braços de Júlia e os pedaços que nunca mais seriam vistos reluzindo nas janelas das pessoas que me viam passar com ela. As pessoas talvez nem olhassem mais pela janela, nos dias atuais elas não fazem mais isso.
Os homens de preto se aproximaram e me viram agonizando, perpassaram meu sofrimento e avaliaram que eu não mais oferecia perigo. Juntaram meus cacos quase sem vida e chamaram o fotógrafo. “Pode ficar à vontade, alarme falso!”. Olhei dentro da lente daquele desconhecido e sorri. Talvez Júlia pudesse me ver no jornal de amanhã de manhã. Pelo menos ela poderia voltar a olhar pela janela.
Pedro Carcereri é cineasta, diretor, roteirista, curador e mestre em arte, cultura e linguagens. Sócio-diretor da Old Man Filmes, assina os curta-metragemns “Modorra” (2014) e “Maria Cachoeira” (2016). Nasceu, vive e trabalha em Juiz de Fora.