Antes era a verdade que precisava, a todo custo, ser provada como mentira. Hoje é a mentira que precisa, desesperadamente, ser aceita como verdade. Para o sociólogo, referência nos estudos relativos à comunicação e cultura no Brasil, Muniz Sodré, os avanços tecnológicos com seu complexo emaranhado das redes sociais resultaram no esgarçamento das barreiras que indicavam o que é realidade e o que é ficção. Ora tudo parece ficção, ora tudo parece real demais. Ora sensacionalista, ora surrealista – para citar dois dos sites de maior audiência no país, ambos a fazer troça com o que é notícia. Nesse caminhar semelhante ao de um equilibrista sobre sua corda bamba, o jornalismo é posto em xeque, e a literatura reivindica outro lugar para além da fantasia.
Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional (de 2005 a 2011), o baiano de São Gonçalo dos Campos ocupou, ao longo de seus 75 anos de vida, tanto o lugar de pesquisador quanto a posição de escritor de novelas e romances. É autor de “A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento”, de 2009, e também da ficção policial “Bagulho”, de 2016. Da experiência, fortaleceu sua investigação acerca das mídias e do poder, ambos colocados em xeque no país das incertezas. “Não é possível confiar mais em quem fala”, dispara o intelectual em entrevista à Tribuna, por telefone. “E, se não pode mais confiar, tudo pode ser fictício, tudo pode ser fingimento.”
Tribuna – Ficção e realidade duelam?
Muniz Sodré – Sempre estamos contando histórias, narrando. Dou à narrativa um estatuto muito amplo, porque as próprias operações de consciência são narrativas. O que a consciência faz é espacializar narrando. Então, quando fazemos ciências sociais, estamos contando histórias com a caução do que se produziu filosoficamente e teoricamente no passado. No fundo, é uma história que estamos contando também. Às vezes, essa história se assume como mentira, a mentira poética, o fingimento, daquele que o Fernando Pessoa fala que “o poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Esse fingimento assumido é o que chamamos de ficção. Hoje, portanto, o jornalismo tem uma grande parte narracional, uma narrativa com a garantia da verossimilhança, a referência direta com o real histórico. Há uma transparência do discurso jornalístico com os fatos. O que buscamos nos jornais é a transparência, que não é algo inerente aos homens, natural, mas fruto de uma conquista. A transparência democrática que os jornais realizam é fruto de negociações culturais, semióticas. O jogo da objetividade é uma negociação do discurso.
Jornalismo, então, é uma construção?
É uma construção, embora siga regras mais ou menos estipuladas por um grupo, por uma comunidade de discurso formada por jornalistas. Na ficção, não temos a história de um lado e um discurso que fala da história de outro. Na ficção, a história irrompe do discurso, nasce dele. O discurso jornalístico nasce da história, se relaciona com a história fora dele. Na ficção, é o texto que cria a história. Hoje, porém, essa distinção está sendo velada. Por exemplo: na quinta-feira (1º), eu participei, em Porto Alegre, de um filme que se chama “Depois de ser cinza”, um longa-metragem que vai aparecer em 2018, de um diretor chamado Eduardo Wannmacher. Eles me convidaram para dar uma aula de uma hora com o título de “A raça como fraude civilizatória”. Era uma aula real, na Fundação Iberê Camargo, com um público real, mas fazia parte de um filme. Nessa aula, os personagens se encontram. São antropólogos. Dei a aula, eles fizeram perguntas, mas tudo dentro de um filme. Esta é uma nova tendência do cinema, de aspectos do real histórico e aspectos ficcionais se misturarem. As fronteiras entre um e outro, realidade e ficção, estão se apagando.
Por que a desconfiança atual e crescente com o jornalismo?
O jornalismo vive de um pacto de credibilidade entre jornalismo e seu público. O pacto é como se o jornalista dissesse: “Eu digo uma verdade sobre a história”. O prestígio do jornalismo está na relação entre o jornalista que “diz a verdade” e o público que acredita. Por que ele tem esse direito de dizer isso? Porque o jornalista se dá como a testemunha primeira dos fatos. Essa testemunha, em grego, se escreve histor. Alguém que testemunhou o fato é alguém que tem o direito moral de contar o fato. O jornalista pode até não ter visto diretamente, mas tem a fonte que viu, tem os meios de saber sobre os fatos. O jornalismo lida com a verdade factual. Mas o pacto de credibilidade se rompeu. Uma das coisas que a comunicação eletrônica fez foi romper a relação entre quem conta e quem ouve, quebrando a relação entre emissor e receptor. Vale mais quem emite. É por isso que na rede eletrônica é possível dizer qualquer coisa, e não há alguém para verificar.
Esses novos emissores, pessoas que se espalham pela internet, têm a mesma voz do jornalismo?
Essas pessoas não têm o estatuto moral da testemunha, são apenas vozes que falam e às vezes não são nem gente real, mas números, algoritmos da rede, do Facebook, do Google. É a máquina falando. A garantia moral que o emissor, narrador, tinha está indo embora. O pacto de credibilidade está sendo rompido em todos os níveis. Não é possível confiar mais em quem fala. E, se não pode mais confiar, tudo pode ser fictício, tudo pode ser fingimento.
Quando esse fingimento ganha outras dimensões, é possível dizer que a desconfiança generalizada coloca em risco a própria democracia?
A democracia vive de um equilíbrio institucional dos discursos de verdade. De repente, quando o pacto é rompido e já não é possível acreditar no jornalismo, começamos a ver desmoronarem as instituições que de algum modo estavam baseadas na confiança da palavra. Estão aí os deputados, senadores, presidente. Todo o sistema representativo ancorado na “verdade” está desmoronando. Ninguém acredita em ninguém. As estruturas nas quais ainda tínhamos esperança estão por aí, expostas, apodrecendo. Sem confiança, não há jornalismo e não há democracia.