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Historiador publica estudo sobre lugares marcados pela ditadura militar em JF

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“Eu sou historiador. Historiador é provocador. É um agitador. A função do historiador é tirar as pessoas de sua zona de conforto”, afirma o historiador Yussef Campos (Foto: Divulgação)

Olhar, sim, para o passado. Mas, mais que isso, encontrar, no presente, as marcas dessas histórias que podem até tentar ser apagadas, mas não são. Foi de Juiz de Fora que saíram as tropas, comandadas pelo General Mourão Filho, no dia 31 de março de 1964, em direção ao Rio de Janeiro quando ocorreu o golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil. Juiz de Fora é, pois, protagonista neste episódio. E quanto mais se pensa a cidade, mais encontram vestígios desse período. Estes vestígios estão na memória daqueles que viveram a época. Mas estão também pela cidade, espalhados nos edifícios, estampados nas fachadas de lugares onde aconteciam as torturas, presos políticos prestavam depoimentos ou mesmo onde questões burocráticas eram resolvidas. Esses espaços, no entanto, não estão demarcados. Hoje, muitos deles deram lugar a outras funcionalidades, sem que haja qualquer referência ao que ali aconteceu de 1964 a 1985.

Há, no entanto, principalmente pesquisadores, que trabalham de maneira a relembrar esses episódios, com o intuito de fazer com que essas memórias não sejam apagadas e, com isso, que nenhum desses episódios se repitam. Yussef Campos, historiador juiz-forano e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) se debruçou no estudos sobre esses espaços e lugares de memórias sensíveis, casas da ditadura em Juiz de Fora. Ele se juntou com Deborah Neves, que pesquisa o tema e é funcionária pública na Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, tendo participado do processo de patrimonialização do DOI-CODI: “Um dos poucos exemplos que a gente tem no Brasil de patrimonialização de bens vinculados à ditadura”, explica Yussef. Os dois escreveram o artigo que, em português, tem o nome: “Por uma proteção legal de lugares de memória sensível da ditadura militar em Juiz de Fora, Brasil (1964-1985)”. O texto saiu no Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, e foi escrito em inglês. A ideia, com isso, é que o tema se espalhe. Mas ele acredita mesmo que é dando nome às coisas que o passado não se repete.

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Tribuna: Como começou o processo de pensar no artigo?
Yussef Campos: Eu trabalho com memória coletiva e patrimônio. E sempre reparei que em Juiz de Fora não há política pública voltada aos lugares de memória sensível que fazem referência ao protagonismo que a cidade teve na ditadura civil-militar de 1964 a 1985. Comecei a pesquisar isso, e, analisando os documentos gerados pelas comissões nacional, estadual e municipal da verdade, pude encontrar alguns lugares indicados como lugares onde se realizou tortura, ou serviu para funcionalidade burocrática do estado repressor, e nada disso é legível na cidade. Eu comecei a pesquisar as documentações referentes aos tombamentos dos edifícios de Juiz de Fora. Pude notar que os edifícios tombados que têm relação com o período, apesar do tombamento, não fazem referência à ditadura. Não são tombados como exemplares do ‘nunca mais’, daquilo que não se deve repetir. Mas, sim, fazendo referência a mitos de origem da cidade.

Você chama esses prédios de lugares de memórias sensíveis. O que isso significa?
Esse é um conceito que orbita em torno de outros. Como, por exemplo, (ao conceito de) memórias traumáticas. Quando se fala em patrimonializar edificações como essas, (tem de lembrar que) as dores e os traumas ainda estão presentes. Ainda existem sobreviventes das torturas. Existem parentes de pessoas que foram torturadas e mortas. Por isso essa memória sensível. Mas isso não significa que deve haver esse apagamento: pelo contrário. Deve tratar essa memória de maneira ética e adequada, envolvendo as pessoas que sofreram direta e indiretamente o trauma, mas trabalhar de uma maneira que impeça não só a não repetição, mas também a propagação de notícias falsas, de um revisionismo barato da história, de chamar o golpe (a ditadura de 1964) de revolução.

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E quais são esses prédios que você identificou?
Eu separo as edificações em duas partes no artigo: as que não foram tombadas das que foram tombadas. As que não foram tombadas são: a penitenciária de Linhares, onde, pelos depoimentos da comissão da verdade de Juiz de Fora, há relato de tortura e morte lá; o 10º Batalhão de Infantaria no Bairro Fábrica, que também não foi tombado e é relatado como lugar de prisão e tortura; e o Batalhão da Polícia Militar de Santa Terezinha. Esses três sequer foram tombados. Mas os que foram tombados não falam sobre a ditadura. Um deles é uma delegacia na Rua Batista de Oliveira que, atualmente, é o Conservatório de Música. Ele é tombado, mas a justificativa são os critérios estilísticos e estéticos arquitetônicos. O mais próximo a que se chega na justificativa do tombamento é que o imóvel é testemunha dos caminhos trilhados pela segurança pública de Juiz de Fora. Outro tombado é a 4ª Companhia de Polícia do Exército, que é no Mariano Procópio. Ali era a sede da região militar. Até a década de 1990, Juiz de Fora era a sede da região militar. Só depois que foi para Belo Horizonte. O coração da região militar estava em Juiz de Fora, não em BH, por isso também o protagonismo da cidade na ditadura. E tem ainda o espaço onde funcionou a 4ª Auditoria Militar em Juiz de Fora, também tombada, mas falando do contexto têxtil da cidade. Nenhuma é tombada pela ditadura.

Por que você acha que existe esse apagamento?
O Brasil não realizou a justiça de transição. As comissões nacional, estadual e municipal da verdade começaram o trabalho e não conseguiram avançar. A lei de anistia de 1979 é um empecilho pra isso. Porque aquela ideia da anistia ampla, geral e irrestrita anistiou os militares que cometeram esses crimes. E, aí, acabam elegendo um cara (Jair Bolsonaro) que faz apologia à tortura e foi presidente por quatro anos. Então a falta dessa justiça de transição é o grande empecilho. O Brasil ainda hoje, se a gente comparar com o Chile e a Argentina, engatinha sobre justiça de transição e sítios de lugares sensíveis.

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O que você acha das placas, das ruas e dos espaços que ganham o nome de episódios da ditadura, como, por exemplo, “31 de março”?
Para além de ser uma comemoração da “revolução”, é um deboche com a memória coletiva. E ainda entra a questão do apagamento. A ditadura foi também civil. É civil-militar. Não foi só militar. Quer dizer que houve apoiadores tanto no sentido de entusiastas quanto de patrocinadores. E essas pessoas estão aí: é seu vizinho, seu avô, seu tio, é a fábrica que funciona até hoje que você compra roupa. É isso. Não é conveniente puní-los. Gera um mal estar público e as pessoas não querem isso. Mas esse não querer, esse evitar, faz com que a gente volte a ter um governo que, embora tenha sido eleito, foi autoritário, antidemocrático, militar. A gente tem que lembrar o tempo todo que estamos formando novas gerações de pensadores. Isso (o que foi a ditadura militar) tem que estar presente na formação dessas pessoas.

Um dia vai ser tarde demais para punir essas pessoas?
Nunca é tarde. Por outro lado, já foi tarde demais porque a gente já elegeu um cara por conta da ditadura militar e de não tratar as memórias em torno da ditadura militar. Havia processos das comissões que não puderam evoluir por conta de empecilhos colocados por apoiadores da ditadura. Mas vai chegar um tempo em que a gente não vai poder mais punir ninguém, não só civilmente, mas penalmente.

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Qual sua vontade com a publicação desse artigo?
Eu sou historiador. Historiador é provocador. É um agitador. A função do historiador é tirar as pessoas de sua zona de conforto. Não é estudar o passado. É estudar o homem no seu tempo. A gente é um provocador permanente.

Vai continuar estudando esse tema?
Quero muito continuar a pesquisar esse tema, até porque têm questões que ainda me incomodam. Por exemplo: o tombamento que o Iphan fez no Mariano Procópio sem inserir o palacete que está na área do exército, muito por pressão das próprias forças armadas. Então você vê que eu gosto de cutucar. Só nessas pesquisas são seis edificações, mas tenho certeza que tem muito mais. As civis, por exemplo. Deve ter também as edificações civis chamadas de aparelho onde as resistências se encontravam, onde se protegia perseguidos. Mas isso demandaria uma pesquisa longa e in loco. Essa pesquisa deu para fazer à distância porque é muito documental. Essa outra precisaria ser presencial, mas não foge ao meu horizonte de pesquisa.

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