Em três anos a editora com nome extraído da geografia de um clássico da literatura mundial fabricou outra cartografia. Em 2017, a Edições Macondo – nome retirado de “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Marquez – ocupou um espaço independente para lançar “Casa dos ossos”, de Prisca Agustoni, na Festa Literária de Paraty, a Flip, onde a professora, tradutora, pesquisadora e escritora era uma das convidadas para performances poéticas que aconteceram na abertura de algumas das mesas. No ano seguinte, em 2018, a mesma Macondo era a editora de um dos convidados da programação principal da festa, lançando o primeiro livro de Fabio Pusterla no Brasil. A partir desta quarta, 10, quando começa a edição de 2019 do maior evento literário do país, o selo juiz-forano ocupa uma das mais prestigiadas casas da programação paralela, promovendo mesas e lançando seis novos títulos. “Para mim, foi um choque estar daquele jeito no ano passado”, comenta o editor Otávio Campos.
“Economicamente, a editora não mudou depois da Flip de 2018, só mesmo nossa confiança”, acrescenta Campos. Se não representou uma virada, ao menos serviu como uma testemunha – quiçá uma companheira – numa trajetória ascendente. Para o também editor Fred Spada, a geografia dos autores se expandiu nos últimos anos na editora que surgiu bastante ancorada em Juiz de Fora e na cena local. Pouco a pouco, ganhou o país. Em 2019, de todos os lançamentos de poesia, nenhum é daqui. “A Flip ajudou a gente a ver as dinâmicas do que estava acontecendo em outras editoras. Aumentou o contato entre as editoras, e podemos ver como eles fazem e como podemos nos fortalecer juntos. A Flip foi um momento de legitimar a gente”, pontua Campos, que nesta quarta-feira (10) desembarca na Casa Paratodxs, ao lado de outros sete conceituados selos – Cepe Editora, Demônio Negro, Dublinense, Edith, Editora Kapulana, Editora Nós e Relicário Edições.
“A Macondo já é conhecida nos meios do Rio e de São Paulo. As pessoas já têm as referências de quem são os editores e do que publicam”, acrescenta Spada, editor que, segundo Otávio, é o responsável por uma expansão territorial da editora que este ano completa meia década, conquistando outros cantos, outras prateleiras, outros eventos. “Focamos nesse eixo Rio-São Paulo, porque em Juiz de Fora não conseguimos fazer mais nada. Não temos público aqui. Quando fazemos um evento vão três pessoas. Não dá. Precisamos procurar novos meios ou trabalhar mais aqui e construir um público leitor. Saímos muito na necessidade de fazer com que os livros circulem”, lamenta Campos.
Além-mar e além-cânone
Onde estavam as caixas? Não haviam chegado. Há dois dias para a viagem rumo a Paraty, a gráfica era a grande espera. Antes de Juiz de Fora, a cidade histórica no litoral fluminense, reconhecida na última semana como Patrimônio Mundial da Unesco, irá conhecer seis dos novos títulos da Macondo. Na sexta-feira, 12, a paulista Camila Assad lança “Desterros”, obra poética que investiga a relação entre o corpo feminino e as cidades, contemplada com o ProAc/SP (prêmio de incentivo a cultura estadual), e a professora de literatura da Universidade Federal Fluminense Tatiana Pequeno lança “Onde estão as bombas”. A editora também lança em mesa no sábado, 13, “Paratexto”, de André Capilé, e “Houve um ano chamado 2018”, de Taís Bravo, ensaios da coleção Camafeu – textos curtos com tiragens de 50 exemplares, todos feitos à mão e, que ao se esgotarem, ficam disponíveis para download. Ainda, o selo juiz-forano aproveita a festa para celebrar a publicação dos dois primeiros títulos da coleção “A colecção”, de literatura contemporânea portuguesa.
“Quando tive a ideia da Macondo, eu me baseei muito em Portugal. Tinha acabado de voltar de lá e estava muito impressionado com o que vi, de editoração e de editoras pequenas de lá. Isso me influenciou muito. Tanto a nossa linha editorial quanto a linha gráfica são muito baseadas nas das editoras portuguesas. E eu sempre tive a ideia de fazer uma coleção portuguesa, mas diferente do que as pessoas já fazem aqui. Porque sempre publicam os cânones. A Adília (Lopes) está sendo lançada pela Moinhos, o Daniel Faria, pela Chão da Feira. Mas nosso recorte de editora sempre foi a produção atual, independentemente de que país seja. Que contemporâneo é esse de que estamos falando? É o agora! Em Portugal é assim também”, observa Otávio Campos. “Muito mais por uma proximidade afetiva do que por um aspecto geracional. Nosso recorte se deu mais pela afetividade, com a ideia de mostrar o que está acontecendo em Portugal agora, sem se preocupar em ser um panorama delimitador. Fizemos um recorte e vamos ver como a poesia está funcionando. Não vamos falar que Portugal tem a poesia muito difícil de ler ou muito romântica, porque nossos poetas são assim. Selecionamos alguns poetas que atuam, principalmente, em Lisboa, produzindo hoje, e vamos ver como isso funciona, colocando em choque entre nós.”
“Um quarto em Atenas” é o primeiro título de Tatiana Faia em solo brasileiro. Já “Ubi sunt” reafirma a potência de Manuel de Freitas que o Brasil já conhece há alguns livros. Unidos pela linguagem, os poetas da nova coleção encontram-se num mapa afetivo, sobretudo. Fred Spada chama atenção para a amplitude geracional que compreende “A colecção”. Manuel de Freitas, por exemplo, tem 47 anos, enquanto Mariano Alejandro Ribeiro, argentino radicado em Portugal, tem 26 anos. A reunião de distintos títulos, todos seguindo uma mesma identidade gráfica, cuja capa estampa padrões de ladrilhos hidráulicos, ajuda a pensar, segundo Campos, na recepção que a poeta portuguesa Matilde Campilho teve no Brasil, quando, convidada pela Flip de 2015, foi tratada como uma grande revelação, sendo a autora do livro mais vendido da edição. “Jóquei” (Editora 34) tornou-se um sucesso entre a crítica e o público. “Isso mostra cada vez mais que as pessoas não conhecem a poesia portuguesa. A Matilde é muito boa, realmente, mas o que mais chamava atenção era o estranhamento entre os portugueses. Quando vimos os livros que vão ser lançados por ‘A Colecção’, será possível ver que não é tão diferente da Matilde Campilho. O que acontece é que não existia poesia contemporânea portuguesa circulando no Brasil. Quando ela veio, com uma pegada comercial, o pessoal ficou muito espantado, mas reflete o que está sendo feito lá”, comenta Campos.
Representativa, a publicação de Manuel de Freitas inaugurando a coleção também reverencia o movimento semelhante que o poeta fez em sua terra ao lançar a antologia “Poetas sem qualidade”, juntando novos poetas portugueses que não recebiam prêmios e sequer eram alvos de críticas, mas integravam uma cena. Existe uma urgência em fazer conhecida essa produção. As editoras portuguesas, aponta Campos, não cobraram direitos autorais, inclusive a Tinta da China, que tem um vulto no país europeu e tem presença do Brasil publicando apenas prosa. E os livros de Tatiana Faia e Mariano Alejandro Ribeiro foram patrocinados pelo órgão governamental português DGLAB (Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas).
A experiência (editorial) de mundo
Cada vez mais cortejada por uma coerência que imprimiu em sua linha editorial, a Edições Macondo não recebe originais. Fred Spada e Otávio Campos não dariam conta de, sozinhos, avaliar, editar e fazer circular. Por isso, trabalham com indicações e com uma agenda. O próximo ano, 2020, já está quase todo fechado. “A gente se baseia muito em nosso gosto. Não tem como não ser assim. A parte mais honesta da curadoria é anunciar que é uma escolha afetiva antes de tudo. Claro que tem uma justificativa por trás, mas nosso crivo editorial é nosso gosto. Somos, além de tudo, leitores de poesia e estudantes de poesia”, confessa Campos, que cursa o doutorado na UFMG, pesquisando as obras poéticas da portuguesa Cláudia R. Sampaio e da paulista Carla Diacov. Spada, por sua vez, concluiu o doutorado em literatura, cultura e contemporaneidade na PUC-Rio. “Tem uma experiência de mundo que passa nesse trabalho editorial, tem um sentimento por trás disso”, acrescenta Campos, envolto no desejo de fazer ressaltar a mão do editor no processo do livro.
Especializada em poesia e ensaio, a editora, no entanto, planeja se abrir. “A gente não estuda prosa, não escreve prosa, por isso estamos entrando com muito cuidado, mas a ideia é publicar, sim. Está nos nossos planos”, adianta Campos. Enquanto isso, trazem, no próximo mês, o ensaio de Marilia Garcia, os poemas de Tassyla Queiroga e o ensaio de Martha Alkimin sobre poesia brasileira contemporânea. Em setembro, o livro de poemas de Viviane Nogueira e o ensaio de Tatiana Nascimento serão publicados. Em outubro, Sofia Ferrés lança seus poemas, e Beatriz Guimarães, seu ensaio sobre tradução e gênero. Em novembro, chega às prateleiras o livro de Ana Guadalupe e um ensaio de Isabella Martino sobre Patti Smith, que vem ao Brasil no mesmo mês. Por fim, em dezembro, um novo livro de Carla Diacov ganha o mundo. A viabilidade econômica ainda é paisagem. O trabalho é árduo, contudo. “É porque gostamos muito”, ri Otávio, e completa: “Não consigo experimentar o mundo de outra forma. Para mim, a editora é o que me dá prazer. Se tivesse dinheiro seria melhor. Quero que tenha lucro também”.
Ainda que alcancem grandes espaços, como a própria Flip, e tenham chegado até mesmo às grandes lojas, como a Travessa de Botafogo, os editores apontam as resistências, que são muitas. “Não necessariamente as livrarias se abriram. As pequenas, talvez, mas ainda são uma minoria. Acho que há, sim, uma abertura do mercado por uma facilidade de impressão. Os custos diminuíram. Tem uma diferenciação do que são as livrarias e do que é o mercado editorial que as perpassa e as ultrapassa”, avalia Fred Spada. “Na poesia, por ser um gênero que não dá muito lucro, quem vai investir é quem não tem nada a perder. Por isso é que as editoras independentes controlam o mercado, porque não têm nada a perder. Nosso trabalho sempre vai ser de guerrilha”, aponta Otávio. “De certa forma, as grandes se aproveitam do trabalho das pequenas, porque é ali que fazem um garimpo, têm um termômetro”, acrescenta Spada.
‘O desafio é achar o público leitor’
Afinal, que poesia contemporânea brasileira é essa? “Não sei o que está acontecendo com a poesia contemporânea brasileira hoje. Sei que temos vozes femininas ecoando muito forte, e não é de hoje. As mulheres são as melhores hoje em dia. Não só fazendo, como também tomando os meios de produção da poesia”, avalia Otávio Campos, certo de uma pluralidade na produção atual que impede classificações rígidas. Se leituras generalizantes são impossíveis, ao menos é factível ler o que a Macondo apresenta. “É uma poesia de trânsito. Existe um trânsito nem que seja de afetos. Não são poemas simples, fáceis, sempre há uma comoção para acontecer. Tenho que abrir o livro, ler um poema, e no final dele não posso ser a mesma pessoa. Tem que ter um pequeno estranhamento”, comenta Campos. E Fred completa: “É um afeto não apenas no sentido sentimental. É um afeto também político. É uma poesia que causa estranhamento, que nos move de alguma forma.”
Escrevendo a história à medida em que ela é vivida, a Macondo cria novos mapas para um presente estranhamente complexo. Solitária, insiste e resiste. “Não podemos nos pautar pela crítica porque o espaço para a crítica literária jornalística está cada vez mais raro, e vemos um crescimento de revistas virtuais de literatura, mais preocupadas na divulgação dos textos literários que na recepção desses textos. Os blogs ainda continuam, e agora tem os podcasts, mas, hoje em dia, o grosso da crítica literária está nas revistas acadêmicas, que têm um foco diferente, sem olhar, necessariamente, para o contemporâneo. Eles continuam olhando o cânone. Não é comum ver artigos, teses e dissertações sobre jovens e contemporâneos”, pontua Fred, cuja própria tese é sobre a poesia modernista. “O problema da crise poética não é problema da poesia, mas da crítica. Quem está lendo? Como estamos lendo? Como está circulando? O ponto é onde estão os críticos?”, indaga Otávio. “O desafio é achar o público leitor.”