É mesmo um privilégio acordar, abrir uma porta e se deparar com o seu ambiente de trabalho. O privilégio fica ainda maior quando casa e trabalho estão sob rodas, rodando o país. Isso ainda amplia: é o trabalho dos sonhos, um vício alimentado há anos, que só vai crescendo à medida em que novas pessoas se deparam com um micro-ônibus adesivado que para em praças de Minas inteira; essas pessoas, então, curiosas, entram na pequena porta e se deparam com um mundo de vinil. Os adesivos, é claro, já denunciam que se trata de um ambiente musical, ou cultural pelo menos: seja nas notas musicais em volta da frase: “Algum lugar”, bem na frente do veículo, ou na partitura de “Águas de março” em uma das laterais, bem como as fotos de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Atrás, o nome: Busão Cultural, também em volta das notas. Na outra lateral, no lugar onde, em dias de sol, um tapete é estendido com vários livros, sob um toldo escrito “Compro, vendo, troco”, um adesivo bem psicodélico, com a frase que é quase um lema: “Transformando comportamento através da presença”. Adesivo esse fruto de uma parceria possibilitada pelos encontros, rodando de cidade em cidade. Em Visconde do Rio Branco, esse micro-ônibus foi parar na Usina Cultural, um estabelecimento gastronômico que virou, também, abrigo ao veículo e ao homem que roda sobre ele. Em Juiz de Fora, a casa é a Praça do Bom Pastor, ou do Bandeirantes. Depende das vontades e das possibilidades. O Busão Cultural estava estacionado aqui na última semana. Volta de vez em quando. Quando? “Não sei o dia, não sei a hora. Não me acompanha que não sou novela”, adverte João Paulo Casal Ribeiro, o Dedé, como é conhecido desde cedo: o homem que vive e trabalha sob as rodas do busão.
Dedé nasceu em Goianá. Mas cedo foi para o Rio de Janeiro, onde foi criado. Foi lá também que foi se aprofundando na música, principalmente nos vinis. Ele trabalhava em uma gravadora. Vendia os vinis novinhos. Apesar de estar dentro de um lugar onde o contato com os artistas hipoteticamente é grande, ele nunca teve a oportunidade de se deparar com um deles. Ficou nesse trabalho por anos. Mas cansou. Abriu sua própria loja de discos. Dessa vez, queria um contato maior com o público. Por isso, investiu nos vinis usados. Foi assim que conheceu nomes como Sivuca e Egberto Gismonti. “Quando eu ia aos lugares, meus amigos me apresentavam aos músicos como colecionador, vendedor de vinis usados. E, aí, eles davam moral para mim. Porque o nosso trabalho é de pesquisa, de garimpo. Pode me perguntar o nome de qualquer música, quem compôs, quem arranjou: eu vou lembrar. Porque a ficha técnica do vinil contribui muito para isso.”
Questão de química
Mas cansou de novo. Além disso, viveu a crise dos discos com a ascensão dos CDs. E a verdade é que Dedé gosta é da liberdade. Estar onde quer, fazendo o que quer. Tanto que ele montou um motorhome e entre 1996 e 2000 viajou o Brasil todo: sozinho, rodando, sem lugar fixo. Nesse tempo, já conheceu Minas Gerais o suficiente. Mesmo que tenha sido criado no Rio de Janeiro, seu estado de nascença tem alguma coisa que o traz de volta. “É química. Tem que rolar química em tudo”, justifica. Ele ficou um tempo parado, sem viajar. Mas deu saudade dessa liberdade. Até que decidiu, então, retomar a viagem e, dessa vez, vendendo, comprando e trocando os vinis usados: assim surge o Busão Cultural.
Apesar de ter Minas como seu lugar de foco, Dedé, vez ou outra, para o busão em cidades cariocas, ou a capital mesmo ou, por exemplo, Petrópolis. “Mas tem que escolher muito bem o lugar. Porque eu tenho um público: o que é ligado à arte. Não importa o gênero, por exemplo, porque eu tenho um pouco de cada coisa, para todos os públicos”, explica. Por isso costuma parar em bairros de classe média. “E sabe quem para aqui? Pessoas idosas, de meia idade e a garotada. Isso é muito legal. Porque tem os conservadores que não abandonaram o vinil. Mas tem também as pessoas mais jovens que estão desenterrando a MPB antiga por causa da família. Eu sempre ouço: ‘Ah, meu pai me falava dessas músicas’, ou ‘Nossa, esse disco me lembra minha avó’, e isso é o mais legal. E, de verdade, não é só vender. Meu papel aqui é também dar informação, mostrar o que eu sei.”
Acervo ao seu alcance
Dedé tem cerca de 4.500 LPs e mais 2.500 CDs, além de livros que vez ou outra vende, e outros tantos em excesso que guarda em Visconde do Rio Branco. Esse acervo que anda com ele no busão fica muito bem conservado nas prateleiras e nos caixotes que ele mesmo produziu. É preciso abaixar um pouco para olhar um por um. Mas, na altura do olho, dá para conferir algumas imagens pessoais, posicionadas nas janelas. Dá para ver também imagens de artistas com um amigo jornalista, que gentilmente o doou para decorar o ambiente. Tudo isso no limite até uma cortina, que separa seu quarto: um lugar pequeno, mas muito bem dividido, com uma cama, banheiro, cozinha. “Mas aqui não deixo ninguém entrar. É tipo casa de adolescente que mora sozinho. E casa que roda muito é bagunçada. Não tem jeito”, brinca.
Para algum lugar
Ele, em Juiz de Fora, prestes a sair da cidade, ainda não sabia para onde ia. “Como eu ando muito, conheço muito o estado, vou rodando. Mas nem gosto de falar onde vou e onde estou. Se me perguntam, respondo com a foto do para-brisa do Busão Cultural: ‘Algum lugar’. É sempre eu, eu, eu. Mas tem lugar que me cobram para voltar. Aqui, por exemplo. E eu tenho certeza de que quando me vêem na estrada falam: ‘Lá vai o louco do Dedé para algum lugar.”
Dedé não faz ideia de quando volta a Juiz de Fora. A única certeza é que vai continuar rodando, nas pausas ouvindo um vinil, arrumando alguma coisa no micro-ônibus, conferindo os números de seu filho, que faz parte do duo Lado de Cá, no Spotify. Outra certeza é que, independente de qualquer coisa, os valores do vinis serão os mesmos: de R$ 10 a R$ 50. “Odeio especulação. E é por isso que consigo meus fregueses.” Tem algum disco que não vende por apego seu mesmo? “Nada. Não me apego a nada.” Um homem que fez de um micro-ônibus sua casa e seu trabalho só poderia mesmo ser desapegado. E privilegiado.