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Giane Elisa Sales de Almeida: ‘Nosso grande investimento foi na inventividade’

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Giane Elisa Sales de Almeida completou na última semana um ano à frente da Funalfa (Foto: Fernando Priamo)

Iniciativa criada há quase três décadas em Juiz de Fora, a Lei Murilo Mendes passou por uma grande reformulação no ano passado. Rebatizada como Programa Cultural Murilo Mendes, ela deixou de ter edital único e passou a ter um total de cinco, com o objetivo de obter uma maior diversidade de propostas e proponentes. De acordo coma Funalfa, o resultado foi um crescimento de 55,9% de propostas apresentadas em relação à última edição da Lei, em 2019, quando foram recebidas 474 propostas. Em 2021, apenas o principal edital, o “Murilão”, teve 479 projetos apresentados, de um total de 739. Ao todo, 89 propostas foram contempladas para receber os pouco mais de R$ 2 milhões reservados para o Programa.

Em entrevista concedida esta semana à Tribuna, a diretora geral da Funalfa, Giane Elisa Sales de Almeida, faz um balanço inicial do resultado dos editais. Entre vários pontos, ela destaca o total de bairros (141) em que moradores acessaram pelo menos um dos editais do Programa Cultural Murilo Mendes, além do total de propostas do “Cultura da/na quebrada”, em que apenas duas pessoas dentre as 109 propostas apresentadas já haviam concorrido nos editais anteriores da Lei Murilo Mendes. Para Giane, a ida da Funalfa até todas as regiões da cidade para apresentar e explicar o Programa foi essencial para o crescimento do número de proponentes e uma maior diversidade de projetos.

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Tribuna – Qual o balanço desse primeiro ano de gestão, levando em consideração os desafios provocados – principalmente – pela pandemia, crise econômica e a polarização, que tem na cultura um de seus principais alvos?
Giane Elisa Sales de Almeida – Você toca numa questão muito importante, que é essa da cultura como alvo de um projeto político. A gente tem no país um governo que não tem um Ministério da Cultura. É uma narrativa a respeito do que se pensa sobre a cultura no Brasil, como que ela é protegida, como são as questões de fomento. Hoje (terça-feira) faz um ano que nós chegamos aqui. A gente assumiu no dia 2 (de janeiro), e o primeiro dia útil foi no dia 4 de janeiro. Foi um ano de várias descobertas, porque a gente tinha um modelo de execução de um sistema de cultura no país que não existia mais por conta da pandemia. E o setor cultural, como a gente bem sabe, é o mais afetado. A cultura foi o primeiro (setor) que parou e ainda não conseguiu voltar totalmente. Foi um grande desafio se repensar nesse sentido, e, junto disso, o impacto da questão econômica na cultura, porque a cultura é também um setor econômico, que foi altamente impactado, com todo o cenário nacional de perseguição, de inanição, de desidratação. A avaliação é extremamente positiva no sentido de pensar o modelo de gestão cultural que ganhou as eleições em 29 de novembro de 2020, que é pensar uma cultura que tenha espaço para todas as pessoas, para todas as manifestações. E essa é uma questão em que Juiz de Fora tem uma característica muito importante, que é uma grande diversidade de manifestações culturais. Como pensar políticas públicas de cultura, a Funalfa deixar de ser apenas uma promotora de eventos, e ser uma secretaria de cultura, e como isso poderia ser feito dentro dessas limitações que a gente falou? O nosso grande investimento foi na inventividade. Como a gente se reinventa chegando na administração, descobrindo várias coisas, topando e se encontrando com alguns desafios? Acho que a nossa grande aposta foi essa: abrir as portas para grupos que até então não tinham acesso tão sistematizado ao espaço e às políticas promovidas pela secretaria.

Apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas ano passado, a Funalfa implantou as mudanças no Projeto Cultural Murilo Mendes, que passou a ter cinco editais, muitos deles buscando ações afirmativas. Essa mudança conseguiu atingir as expectativas em termos de diversidade de proponentes e projetos?
A ideia de diversificar os editais tem o intuito de alcançar o maior número de pessoas. Ainda estamos fazendo essas análises, mas temos um dado que penso que é muito significativo e que já podemos dizer: tivemos 141 bairros que acessaram o Programa, (em pelo menos) um dos editais. É uma representatividade bastante abrangente. Existem desafios ainda com algumas regiões da cidade, como Sudeste, Nordeste, mas termos 141 representações de bairros já mostra que foi uma escolha acertada para que possamos ter outras perspectivas no sentido da territorialização da distribuição do recurso que temos para a cultura. Um dado importantíssimo que gosto muito de falar é sobre o “Cultura da/na quebrada”, em que tivemos 109 propostas de coletivos, então tivemos muito mais que 200 pessoas (participando). E apenas duas pessoas já haviam concorrido a editais da Funalfa. A gente teve uma gama gigantesca de pessoas que nunca acessaram a Funalfa, e nem acho porque ela não estava aberta, não é nada disso, mas por conta de não se reconhecerem como artistas, e isso, para nós, é muito importante, é um balanço extremamente positivo.

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Já é possível observar quais ajustes precisam ser feitos para 2022?
Não temos questão fechada sobre quantos editais serão realizados, mas os cinco editais (de 2021) nos serviram para perceber que existe demanda para eles. Outra questão que já podemos considerar como uma orientação para 2022 é essa questão da territorialização. A gente precisa ter instrumentos que fortaleçam os territórios para que a gente saia desse eixo da Avenida Barão do Rio Branco, com a possibilidade de contemplar as pessoas que estão nesse eixo, mas também as pessoas que estão nas diversas regiões da cidade. Outra questão sobre a qual também precisamos refletir são as ações afirmativas, como a gente organiza, porque elas já se mostraram como um ponto positivo. Nós temos a possibilidade de estruturar isso de uma forma que seja mais potente para poder trazer outros atores. E uma coisa muito importante também é um termo que a gente usa na academia, que é a interseccionalidade (estudo da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação): pensar esses atores como sendo pessoas que têm um gênero, uma raça, um território, uma orientação sexual, uma identidade de gênero. Pensar como esses mecanismos – que são todos eles de opressão, de relação de poder – se intrincam e como isso pode se transformar em acesso à política pública e democratização dos bens culturais de fato.

O Murilão teve um número maior de mulheres que de homens com projetos aprovados, e as demais iniciativas buscaram dar oportunidades a artistas que geralmente não participavam ou tinham maiores dificuldades em conseguir aprovar suas propostas. Qual a avaliação dessa mudança de panorama?
A maior parte dos contemplados é de pessoas autodeclaradas negras – pretas ou pardas – ou indígenas. Penso que tem um fator decisivo nisso, que é o programa “Dedo de prosa”, uma ação do Departamento de Cultura e Território da Funalfa, que vai até o território para conversar sobre essas possibilidades. A gente fez o que chamamos de “busca ativa” desses agentes culturais, dos artistas desses territórios, e que se sentiram – a partir disso e dos modelos de editais apresentados – incentivados a participar do certame, digamos assim. Por conta disso, tivemos um número recorde (de inscrições), no Murilão foram quase 500 inscrições. Foi um número recorde, penso, por conta disso: as pessoas foram buscadas em seus territórios e incentivadas a inscreverem seus projetos.

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Chegaram a perceber alguma repercussão negativa por parte de quem costumava ter mais facilidade para aprovar projetos e que porventura ficou de fora devido à maior diversidade de agentes culturais contemplados?
Oficialmente, não identificamos alguém que tenha recorrido, para colocar dessa maneira. O contato que a gente tem para poder pensar as repercussões com a classe artística é o Conselho Municipal de Cultura, e nesse sentido o Conselho esteve acompanhando a elaboração e divulgação dos editais, a avaliação dos projetos, e até então não tivemos nenhuma notícia (de repercussão negativa). Mas não temos nenhuma pretensão de ser unânimes, não temos como agradar todo mundo. O que avaliamos é que o Murilão, que era referência, teve poucas alterações, entre elas no valor. A mudança que a gente percebe é a diversidade territorial, de gênero, e aí tivemos um aumento de mais de 54% de pessoas inscritas e de mais de 48% de pessoas aprovadas em relação à última edição, que foi em 2019.

Editais como o “Quilombagens”, “Cultura da/na quebrada”, “Fernanda Müller”, tinham por objetivo atingir agentes culturais que normalmente não participavam da antiga Lei Murilo Mendes, e entre os motivos estavam o desconhecimento do edital ou falta de incentivo ao observar as exigências. O quanto a Funalfa ajudou esse público na elaboração dos projetos?
Não podemos opinar na elaboração dos projetos. O “Dedo de prosa” tem esse objetivo de chegar nesses territórios a partir de contatos com lideranças, pois a ideia é que tenhamos colegiados de cultura nos territórios. A ideia desse projeto é _ mais do que fomentar _ potencializar as ações que já existem. A Funalfa não tem nenhuma pretensão de achar que estamos levando cultura, ela já está nos lugares. A ideia do “Dedo de prosa” é sentar na roda e dizer “olha, isso que você está fazendo é arte e pode se inscrever nesse projeto/edital, que tem tanto de recursos, você pode criar um grupo”. E isso nos apontou que temos um compromisso enquanto gestores de políticas públicas de criar formas de incentivar as pessoas a construírem seus projetos. “Ensinar” acho que é uma palavra muito forte, mas (podemos) trocar experiências, mobilizar as pessoas para que haja essa troca no sentido de incubar seus projetos, (explicar) como que faz para captar, como pode ser a relação entre territórios, as leis de incentivo. É uma questão importante para nós pensar 2022 a partir do que vimos nesses encontros, e o que tinha de significativo era exatamente um grande desconhecimento em relação ao papel da Funalfa, de que é uma secretaria de cultura, o papel de uma secretaria de cultura.

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Nessas conversas, você falou que o pessoal tinha muito desconhecimento. Isso era em relação à antiga Lei Murilo Mendes ou quanto aos trâmites para concorrer ao edital?
Tinha de tudo. Os editais têm uma linguagem (própria), e fizemos de tudo _ e é um compromisso que segue em 2022 _ para termos editais que sejam palatáveis para as pessoas, que elas possam acessá-los com mais facilidade. Há coisas das quais não podemos abrir mão, que são exigências da Receita Federal, órgãos de controle. Mas o que percebemos nesses encontros, tanto nos presenciais quanto virtuais, é que existia todo tipo de dúvidas, tanto de pessoas que já conheciam a Lei Murilo Mendes quanto de pessoas que nem sabiam o que era a Funalfa.

É possível acreditar, então, em uma expectativa de maior conhecimento, participação e diversidade nos editais para 2022?
Acredito que sim. Independentemente de as pessoas terem propostas contempladas ou não, foi dado o recado de que é possível fazer parte disso, que a pessoa também é artista e faz jus a esse recurso. Com certeza, isso vai potencializar a movimentação em torno do Programa Murilo Mendes, que não é a única ação da Funalfa, mas que é o carro-chefe na questão da distribuição de recursos.

A cultura já havia sofrido com a pandemia em 2020, a partir do momento em que os espaços culturais foram fechados e todo tipo de evento presencial foi suspenso. Quando assumiu a Funalfa, em 2021, a maior parte do ano seguiu com o mesmo panorama. Como estão as expectativas para 2022?
Temos ações que serão mantidas, outras não, e outras que serão reformuladas. Estamos com uma grande expectativa, por exemplo, em relação à democratização dos nossos espaços, como o Teatro Paschoal Carlos Magno, o CCBM _ que está passando por reformas -, a Biblioteca Municipal Murilo Mendes, que está passando por uma reestruturação por conta da questão sanitária, o Museu Ferroviário. A gente tem essa possibilidade de o artista usar os equipamentos como um direito seu, como um artista da cidade, um cidadão ou cidadã de Juiz de Fora. Outra perspectiva é em relação ao carnaval: mesmo que não tenhamos em 2022, (a perspectiva) é de manter o diálogo com a sociedade civil, com as forças de segurança pública, as demais secretarias, no sentido de construirmos a proposta para 2023, se for possível a realização do carnaval. Temos a ideia, como disse, de formação de agentes culturais, de (pensar) como discutir e incubar esses projetos. Temos, ainda, o “Corredor cultural”, que vamos chamar de “Corredor multicultural”, trazendo essa possibilidade da diversidade cultural que existe na cidade. E pensando isso tudo com a (questão) da captação de recursos, que a gente sabe que é minúscula no país. Juiz de Fora também tem um recurso escasso para o tanto de coisas que precisamos fazer, mas esta semana mesmo vi que o Sesc Cultura tem um edital de R$ 10 milhões para o Brasil inteiro, e nosso edital foi de R$ 2 milhões. Também temos a ideia de retomar a participação popular a partir dos conselhos de Cultura e Patrimônio, a revisão do Plano Municipal de Cultura, que vence em 2023 e precisamos rever e reformular. E isso tudo a partir das diretrizes da Funalfa, dentro da cultura do Caminho Novo, nesse triênio que ainda temos pela frente.

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