Muito além do Fusca. Abaixo da linha do tempo que reconta, década a década, a trajetória da República brasileira, no trecho que demarca os anos de chumbo, um quadro sem data e título assinado pelo artista goianiense Siron Franco. Em óleo sobre tela, a pequena pintura representa os silenciamentos do período na imagem de um rosto no qual a boca é coberta por um “X”. Logo ao lado, duas litografias de Glauco Rodrigues, datadas de 1979 e intituladas “A República velha” e “A Revolução de 30”, ilustram a “primeira fase” da história política do país. Em conjunto com documentos, objetos pessoais e vídeos, que fazem referência à vida política da nação e do ex-presidente Itamar Franco, obras de arte auxiliam na narrativa apresentada pelo Memorial da República Presidente Itamar Franco, aberto na última segunda-feira, após ser inaugurado em dezembro e receber visitantes durante um único dia antes do recesso de final de ano.
Aos simpatizantes das reflexões políticas, a inserção da arte nacional, com grandes e atuantes nomes do século XX, mostra-se um interessante complemento. Para os avessos às questões dos gabinetes, faz-se um instigante espaço de fruição da produção brasileira. E, principalmente, chama atenção o refinado recurso que liga tais peças artísticas ao discurso projetado pelo novo museu. Ainda na linha do tempo, quando é posta a inauguração de Brasília, uma escultura em pequena dimensão de “Os candangos”, de Bruno Giorgi, cria o elo imagético. O mesmo artista instalou a mesma obra, em gigantesca proporção, na brasiliense Praça dos Três Poderes. “Meteoro”, que em 1968 foi fixada no lago do edifício do Ministério das Relações Exteriores, da capital nacional, também está no espaço juiz-forano, pequena, mas não menos vibrante em um dourado diferente do mármore branco no qual foi esculpida originalmente.
[Relaciondas_post] De acordo com o supervisor do Memorial da República, José Alberto Pinho Neves, trata-se de um acréscimo de outras visualidades na narrativa proposta. “Novas obras poderão ser adquiridas, e outras ainda virão à cena, criando um elo com o contexto e fortalecendo essa interação entre o histórico e o artístico”, pontua. Na vitrine vista à esquerda de quem entra no local, os símbolos nacionais são discutidos através das bandeiras, hinos e da faixa presidencial (em réplica), usada por Itamar Franco. No mesmo espaço, está a gravura “Brasil 1500”, da carioca Anna Bella Geiger, uma das mais importantes e aclamadas artistas brasileiras, com obras caracteristicamente alinhadas à história do país. “Anna Bella Geiger trabalha com os símbolos, com mapas antigos, que trazem outros elementos para além da bandeira e dos hinos. É uma obra que pode ser vista separadamente, mas, também, diluída naquele conjunto da vitrine, formando a discussão sobre os emblemas”, comenta Paulo Alvarez, um dos responsáveis pela expografia do local.
Como se faz um museu
“Esse museu estará sempre atualizado”, defende o arquiteto Luis Carlos Antonelli, um dos que assinam o projeto expográfico do espaço. Aposentado do Museu Histórico Nacional, o elogiado profissional explica que a forma de contar a história dialoga com a arquitetura do prédio idealizado pelo juiz-forano Rogério Mascarenhas. “Nossa ideia era revestir o prédio com uma expografia que conversasse com as formas externas e internas”, diz, citando que o mesmo circular das vitrines está presente em estruturas como as colunas da edificação.
Sobre as gavetas, Antonelli conta que serviu como uma possibilidade de abarcar a grande quantidade de materiais, contemplando uma cronologia e seguindo a linha do tempo esguia que demarca toda a lateral do prédio. “Tínhamos um conteúdo muito grande de lembranças e gostaríamos de apresentar tudo. As gavetas complementam a linha”, explica.
Exultante com o resultado, o arquiteto destaca a singularidade do novo museu: “Houve uma possibilidade muito grande de desenvolver um equipamento museográfico específico. Nada foi adaptado, mas criado especialmente para esse lugar. Os assuntos couberam no espaço e conseguiram ficar valorizados. O museu foi pensado para níveis diferenciados de interesse do público. A cada visita é possível descobrir algo de novo.”
Contos temporários
Para além das telas (retratos da mãe, Itália, e do irmão ilustre) assinadas por Mathilde Franco, irmã de Itamar, expostas na simulação do escritório do ex-presidente, da tela de Pedro Guedes (com o político e referências a Juiz de Fora, Belo Horizonte e Brasília), retratos do homem que dá nome ao espaço pintados por Bracher e Guimarães, e uma leitura pictórica de Ramón Brandão para a casa da família Franco na Rua Sampaio, o Memorial da República reserva, em seu segundo andar e de maneira temporária, pinturas da cidade feitas por juiz-foranos de nascença e de coração. Fani Bracher retrata a fábrica de tecidos Ferreira Guimarães; Angelo Bigi, uma pedreira; Heitor de Alencar, a Halfeld; Roberto Gil, uma visão aérea; além de obras de Dnar Rocha, Renato Stehling, Sílvio Aragão, Carlos Gonçalves e Luiz Coelho.
Segundo José Alberto Pinho Neves, o plano é ocupar o espaço com exposições temporárias que se relacionem a alguns dos temas retratados no museu, dando uma dinâmica ao lugar e aprofundando em algumas histórias e discussões. Conforme aponta o regimento do local, que fala em eventos e ações educativas, um de seus objetivos é “desenvolver políticas culturais e sociais, com foco no ensino, na pesquisa e na extensão”.
Para Paulo Alvarez, que montou muitas das 105 gavetas que compõem o Memorial, há muitos assuntos que podem ser tratados, como, até mesmo, as artes gráficas das campanhas políticas, os símbolos nacionais e a própria história de Juiz de Fora. “O que está resumido nas gavetas pode se ampliar numa pesquisa mais extensa para essas exposições”, sugere Alvarez.
Ainda que não conte com telas virtuais interativas, próprias dos museus recém-inaugurados, como o tecnológico Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, o Memorial da República Presidente Itamar Franco propõe uma interação por outras vias. Uma visita só não basta. Uma olhadela só pode ser pouco. Consoante aos espaços de arte, preserva o lugar das interpretações, do subjetivo.