Se em seus primórdios a fotografia não era encarada por muitos como uma nova linguagem artística, talvez apenas um meio para se registrar pessoas e paisagens, esta situação mudou com o passar dos anos, décadas e – quem diria – séculos, posto que se trata de uma criação do século XIX. Atualmente, entretanto, a discussão que se permite é acerca dos limites da fotografia, que, ao romper com seus próprios conceitos, adota elementos híbridos, se apropria de outros, dialoga com outras expressões. E são muitos os adeptos da fotografia contemporânea, como pode ser visto na mostra “A fotografia em diálogo com seu tempo”, parte do Festival de Fotografia de Juiz de Fora, que permanece no CCBM até o próximo dia 22.
Com curadoria de Nina Mello e produção de Paula Duarte, a exposição reúne trabalhos de dez artistas de Juiz de Fora e Rio de Janeiro, em que temas, linguagens, visões, ferramentas técnicas e inspirações diversas não só apresentam caminhos diferentes como, eventualmente, dialogam entre si, resultando em uma experiência que pode mostrar ao visitante a amplitude que o fazer fotográfico possui.
De acordo com Nina Mello, todos os artistas convidados possuem uma diversidade de linguagens típica da fotografia contemporânea, abordando temas como a vida cotidiana, famílias homoafetivas, as mulheres da alta sociedade, a própria família, a religião/fé/saudade representada nos mínimos detalhes, e até mesmo os “territórios desvendáveis”.
“Propus que o Festival tivesse uma mostra com esse olhar para a fotografia contemporânea a fim de refletir sobre o momento que ela passa, em que temos grandes artistas na cidade e que usam a fotografia de forma plural”, explica. “É importante ‘abrir’ essa conversa, procurar agregar e não negar o outro (no caso, a fotografia tradicional, contemplativa em relação à contemporânea, e vice-versa). É importante criar e abrir diálogos.”
Ela destaca, por exemplo, o fato de muitos artistas – que não são fotógrafos de origem – utilizarem a linguagem em seus trabalhos, o que gera a questão do “fotógrafo artista” e “artista fotógrafo”. “É importante que o público também se aproxime dessa linguagem contemporânea, o que torna mais importantes exposições como esta. Vale lembrar que o percurso da fotografia sempre foi pela experimentação.”
“É preciso observar, ainda, a urgência de se pensar o contemporâneo não só na fotografia, e que há toda uma produção que precisa ser mostrada”, acrescenta Paula Duarte.
Variedade de temas e estilos
Entre os artistas que abraçam a fotografia contemporânea para o processo criativo, está Washington da Silva, com a série “Vigília”, que se define como um artista visual que utiliza a linguagem para produzir seu trabalho, que utiliza objetos sólidos – como uma pedra – para dialogar com as fotografias de lugares diversos em tempos diferentes. “São registros de locais distantes que podem ser ligados pelo olhar, coisas que observo e retornam esse olhar para mim”, filosofa. É interessante ver como o artista pode percorrer diferentes territórios e se apropriam deles por meio dessa observação.”
Outro participante da mostra, Matheus de Simone, participa com as séries “Decolagem”, inspirada na estética do lambe-lambe, e “Outros planos”, que reúne fotografias com objetos que ele encontrou descartados, abandonados ou perdidos, como bilhetes de loteria, cartão de bingo, cartas de baralho ou de jogos como Uno e War, entre outros. “Tenho pensado em como as pessoas têm recorrido à sorte, aos jogos de azar, como se confiassem na fé não apenas de um no outro, mas também no acaso, que esta é a única solução. É uma investigação da falta de confiança que existe no corpo coletivo. As últimas eleições mostraram a nossa incapacidade de pertencer a este corpo, a incompetência do governo em suprir nossas necessidades, o quanto pensamos no nosso próprio umbigo.”
Fé e saudade
Assim como Washington e Matheus, Valéria Faria tem uma série inédita na exposição. Intitulada “Cristinhos”, ela reúne fotografias com inúmeras reproduções de Jesus Cristo encontradas nos cemitérios de Juiz de Fora, a maioria do Cemitério Municipal, mas também dos localizados no São Pedro e Morro da Glória. “Essas imagens chamaram minha atenção há dez anos, no mínimo. Na verdade tenho uma outra série ainda mais antiga, os ‘Vasinhos de Saudade’, em que fotografo toda a variedade de vasinhos, às vezes em bronze, mármore, às vezes em caixa de leite, latas e garrafas PET, com flores naturais e artificiais, velas, bilhetes, às vezes objetos pessoais como terços, brinquedos, uma variedade imensa de objetos. Em busca dos ‘Vasinhos de Saudade’ encontrei os Cristinhos, com grande diversidade também. Aí comecei minha coleção”, conta.
Durante esse período, Valéria já reuniu quase cem imagens de Cristo, e a ideia é realizar novas séries dentro do tema. “Não consigo parar. Quando passa o Dia de Finados, o cemitério fica uma beleza… é uma quantidade imensa de Cristinhos e Vasinhos de Saudade, cada um mais impressionante que o outro. Eles ficam prontinhos, à minha espera. É só chegar e fotografar. Uma vez o (fotógrafo) Eustáquio Neves me disse que ele não fotografa, que a fotografia já fica pronta no pensamento. Daí é só ir lá e fazer o clique. É exatamente isso que acontece.”
Por fim, a artista acredita que a sua série com os “Cristinhos” dialoga em vários contextos com o conceito de fotografia contemporânea. “A princípio no contexto das artes classificatórias, do colecionismo e das práticas de catalogação. Em primeiro instante, vou em busca de identificar e registrar a multiplicidade da representação de Cristo. Mas para além disso, interesso-me pelo registro da devoção e da saudade em manifestações de afeto. Esta série propõe uma reflexão sobre elementos da afeição e também da crença no divino, ao associar a imagem de Cristo como símbolo da presença divina, de algo que possa aliviar a dor da ausência.”
A presença de quem perde o próprio nome
Também presente na mostra, Júlia Milward tem em “Renomes” uma série desenvolvida entre 2016 e 2018 mas que remete à pesquisa iniciada há dez anos sobre os usos cotidianos das imagens fotográficas. Neste caso em particular, as primeiras fotos foram obtidas no descarte de um casarão antigo do bairro Campos Elíseos, em São Paulo, e foram publicadas em colunas sociais na década de 1960. “Elas me chamaram atenção pelo fato de as mulheres ali estampadas terem sido nomeadas na legenda não pelo nome próprio, mas pelos cargos e nomes dos maridos. Para mim isso significou uma perda de identidade. Digitalizei as fotografias e apresentei de maneira que essa impressão que tive ficasse evidente para espectadores”, conta. “Depois comecei a pesquisar em outros arquivos essa renomeação e notei que essa era uma prática comum e que permanece de maneira sutil na nossa fala, por exemplo, quando perguntamos para um homem pela Sra. sua esposa a partir do sobrenome do ‘patriarca’ desse novo núcleo familiar.”
“Acredito que meu trabalho esteja inserido naquilo que denominamos fotografia contemporânea não apenas por uma questão de inserção temporal, mas a partir da definição de Cotton e Baqué sobre uma fotografia atrelada a um projeto. No meu caso, utilizo os arquivos do passado para refletir sobre a dominação exercida pelas imagens sobre a sociedade ocidental (e ocidentalizada), isto é, como exemplo a ser seguido, como norma, normatização e, principalmente, controle.”