Nós. Para falar dos brasileiros, o norte-americano James Naylor Green costuma utilizar a terceira pessoa do plural. Também faz a mesma opção ao falar dos habitantes dos Estados Unidos. Vive entre nações. E, às duas, pertence. Nascido numa família politizada de Baltimore, quando jovem foi militante do movimento contra a Guerra do Vietnã e interessou-se pela América Latina. O Brasil vivia a ditadura militar quando ele conheceu um brasileiro, vítima de tortura, exilado em seu país, e que apresentou-lhe a história de um lugar que ele encontrou pouco tempo depois, primeiro a bordo de um barco no Rio Solimões, passando por Norte e Nordeste, depois mergulhando na urbanidade das capitais do Sudeste.
O idealismo da juventude o levou até um militante de uma organização clandestina da esquerda, e o compromisso com a luta por igualdade o aproximou do Somos, grupo de afirmação homossexual liderado por João Silvério Trevisan. Seis meses tornaram-se seis anos. E nunca numa aula de português, Green entrou. “Aprendi na cama”, brinca ele, resgatando as cinco primeiras expressões que uma amiga lhe ensinou: “tudo bem!”, “tudo legal!”, “malandragem”, “sacanagem” e “porra!”.
A convivência e a música brasileira foram suas maiores professoras da língua que hoje fala com fluência. Autor de títulos fundamentais para compreender a vida política e a luta homossexual no país, como “Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX”, “Apesar de vocês: a oposição e a ditadura militar brasileira nos EUA” e o recente “Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel”, Green manteve os olhos no Brasil ainda que com os pés fincados nos Estados Unidos.
Professor da Universidade Brown, em Rhode Island, o historiador de 69 anos conversou por telefone com a Tribuna, às vésperas de sua participação na abertura da IV Semana Rainbow da UFJF, retornando, ainda que de maneira virtual, à cidade que visitou em 2000, para lançar “Além do carnaval”, durante a Rainbow Fest, e assistir ao Miss Brasil Gay. Com mediação do pesquisador e professor da Faculdade de Educação da UFJF Anderson Ferrari, Green abre o evento que começa nesta segunda (10), às 20h, e segue até o dia 16, totalmente on-line.
A programação, que contempla diferentes linguagens artísticas e variadas matizes da discussão acerca da luta LGBTTIQ+, também representa a trajetória de Green, cujo olhar dá conta de um país tão colorido quanto anuncia-se. Com um tanto de delicadeza e outro tanto de inquietação, o estudioso discutirá “A comunidade LGBTTIQ+ no enfrentamento à pandemia e ao contexto político e social”, retratando aspectos distintos de um país que ele acolhe cotidianamente.
Tribuna – Como você vê o movimento LGBTTIQ+ hoje, tendo participado de sua fundação?
James B. Green – O movimento gay brasileiro, com tantos grupos e organizações, não pode ser generalizado, mas acho que é muito dinâmico, muito reflexivo e muito importante, um dos mais interessantes do mundo, certamente. O Brasil é um país continental e pobre. Como o movimento conseguiu, ao longo dos anos, criar redes nacionais, articulações com tão poucos recursos, com a resistência da sociedade, com o preconceito da Igreja católica e, agora, dos evangélicos? Os líderes, de todos os tipos, foram muito criativos ao pensarem em como fazer política para mudar a consciência nacional. O fato de o STF ter declarado que a homofobia é um crime como o racismo é uma grande vitória do movimento. O casamento gay é outra grande vitória. Mesmo com esse governo nefasto que temos no Brasil neste momento, há vários líderes e grupos fazendo coisas criativas e interessantes para tentar despertar a realidade atual.
“O fato de o STF ter declarado que a homofobia é um crime como o racismo é uma grande vitória do movimento. O casamento gay é outra grande vitória. Mesmo com esse governo nefasto que temos no Brasil neste momento, há vários líderes e grupos fazendo coisas criativas e interessantes para tentar despertar a realidade atual”, James Green
Juiz de Fora foi a primeira cidade do país a criar uma lei criminalizando a homofobia, a Lei Rosa. A mesma cidade, hoje, reproduz uma série de episódios contrários ao debate acerca da inclusão da comunidade LGBTTIQ+. Como compreender este cenário que se replica em outros cantos do país?
É complexo, e a resposta que vou dar será incompleta, portanto. Apesar do estereótipo e da maneira que o Brasil se autorrepresenta e divulga sua imagem internacionalmente, é um país profundamente conservador. Há uma tradição da Igreja católica superconservadora, apesar da Teologia da Libertação. Há uma identificação com a família e com a rede familiar, o que sempre foi importante e, especialmente, nos últimos anos, com as crises econômicas, se mostrou ainda mais importante. É um país profundamente religioso. E nesses dias, as novas e fortes religiões, como a dos evangélicos pentecostais, conseguem penetrar na sociedade, por vários motivos, dentre eles porque oferecem redes de sociabilidade, de amizade, certa noção de que a vida vai melhorar porque Jesus vai ajudar. Essas questões são fortes no Brasil. Dado isso, o fato de o movimento ter conseguido mudanças nacionais nos últimos 40 anos é impressionante. O Brasil é o país do carnaval, do oba-oba, da ideia de que podemos fazer tudo durante o carnaval, num momento de libertação. Mas o carnaval sempre foi a liberdade dentro da repressão para as bichas. Foi um caminho doloroso e complexo, foi preciso criar alianças para a mudança sóciocultural. A esquerda, em certo momento, começou a abraçar o movimento, mas havia setores que refletiam a sociedade homofóbica, machista e misógina. Com a crise da esquerda, com as acusações contra o PT e a derrota do (Fernando) Haddad, a esquerda, que seria o polo de apoio, solidariedade e resistência, está desorientada, ainda respondendo a ataques. Neste sentido, é natural que o movimento esteja a recuar. Além disso, há uma crise econômica nos últimos cinco anos que não podemos nos esquecer, muitos militantes que não recebem salários, e há certa pulverização do movimento pela internet. As pessoas acham que aquela sociabilidade é transformadora, mas não é. Ela reforça novas identidades, orgulho e sentimentos positivos contra discursos homofóbicos e cria uma ilusão de que isso é suficiente para a transformar a sociedade, e não é.
Após a polêmica envolvendo a empresa Natura, que contratou um homem trans como influenciador digital para sua campanha de dias dos pais, o ator Thammy Gretchen confirmou seu interesse em disputar as eleições este ano e afirmou querer “que a direita discuta diversidade”. Acredita ser possível isso?
Boa sorte! Acho muito legal que as pessoas possam discutir em todos os lugares. Tem um grupo de gays dentro do Partido Republicano há 40 anos tentando convencê-los de outra opinião e ainda não conseguiu. Há setores da direita com uma posição neoliberal apoiando as medidas de Paulo Guedes, a redução do Estado, a desregulamentação da economia, os agrotóxicos, uma ideologia conservadora segundo a qual as pessoas têm a noção de que o Estado não deve mexer na vida privada dos indivíduos, defendendo os direitos individuais. Há setores do PSDB que defenderam o movimento. Mas a grande maioria fez aliança com setores reacionários políticos e religiosos pouco interessados em mudanças. Debater é bom, mas não acredito que vá haver uma transformação social significativa pela direita.
“Com a crise da esquerda, com as acusações contra o PT e a derrota do (Fernando) Haddad, a esquerda, que seria o polo de apoio, solidariedade e resistência, está desorientada, ainda respondendo a ataques. Neste sentido, é natural que o movimento esteja a recuar. Além disso, há uma crise econômica nos últimos cinco anos que não podemos nos esquecer, muitos militantes que não recebem salários, e há certa pulverização do movimento pela internet”, James Green
De que maneira o Herbert Daniel, que você biografou, nos ajuda a pensar o movimento gay brasileiro e a própria política nacional?
Em Juiz de Fora existiu uma parada gay que, ao ser extinta, teve como uma das justificativas a defesa de que era importante ocupar outros espaços do debate, para além da rua. O movimento deve escalar níveis de discussão ou ocupar todos os níveis?
“Todos os níveis devem ser ocupados. Na medida em que ainda há um vácuo na sociedade, com um setor que ainda acredita em “mamadeira de piroca”, temos que fazer um trabalho de todos os tipos”, James Green
Você lidera uma frente estadunidense em defesa da democracia no Brasil. De que maneira vê a democracia no país ameaçada?
Em todos os sentidos. E, claro, considero que a democracia norte-americana também esteja ameaçada. O Bolsonaro copia as loucuras de Trump. A democracia no Brasil está sendo ameaçada porque tem uma pessoa na presidência que nega a ciência, nega uma resposta a um vírus fatal, e essa ausência de uma resposta política e a negação das medidas necessárias para enfrentar o vírus é genocídio. Ele (Bolsonaro) está permitindo que as populações mais vulneráveis sejam ameaçadas de extinção pelo vírus, por suas ideias loucas como a hidroxicloroquina como solução, não usar máscara porque não se importa. Além disso, o fato de o ex-juiz Sérgio Moro ter negado os direitos de Lula no processo do triplex, fazendo conspirações com procuradores, não sendo um juiz independente, é chocante. Não acreditava que depois das revelações do Vaza Jato o Moro iria se manter. Há outros problemas democráticos. É um país com uma desigualdade social, econômica e cultural em que os setores menos favorecidos, principalmente pessoas afrodescendentes e de origem indígena, são ameaçadas diariamente pela repressão. É um Estado que não respeita a cidadania das pessoas, com um presidente que promove o discurso contra os direitos humanos e não acredita nas instituições democráticas. A democracia está sendo profundamente ameaçada, e o Brasil está passando pela pior crise em sua história. Não houve outro momento com uma crise econômica, política e sanitária desse alcance. E há um governo totalmente incapaz de responder, levando o país a um poço se fundo.