Câmeras, nas mãos ou nos bolsos, muitos têm. Faltam as ideias. Se para a geração de Glauber Rocha, com sua mítica frase da “câmera na mão e uma ideia na cabeça”, os equipamentos eram mais raros que as ideias, para a atualidade a máxima vale inversamente. “A tecnologia é a ‘commodity’, o que faz a diferença é o uso”, resume o jornalista e pesquisador Adriano Chagas, que lança o livro “A imagem portátil: celulares e audiovisual” (Editora Appris, 147 páginas) nesta quinta, 9, às 21h, no Pluri Bistrô. “A produção de imagens se manifesta de várias formas. A tecnologia, aos poucos, vai se tornando comum a todos os usuários. O celular que eu tenho, você tem, meu professor tem, seu editor tem. Quando todo mundo tem a mesma tecnologia, o que faz a diferença é o uso que você vai dar ao recurso. No campo dos equipamentos audiovisuais, isso aconteceu nos últimos anos, na última década, com eles diminuindo de tamanho e barateando seus preços. Os telefones celulares estão cada vez com câmeras e recursos mais poderosos. Isso gerou, a partir das características de mobilidade e portabilidade do telefone, uma legião de usuários que produz e circula mais imagens. Quando olho para filmes que foram feitos com câmeras de celulares, a conclusão que chego é que o recurso está à disposição de todo mundo, mas é preciso usar o intelecto para gerar a imagem. Mesmo se for um diretor de cinema renomado, pode usar o celular ou uma câmera profissional, porque o que faz a diferença é o uso do recurso”, explica ele.
Num espaço com o equipamento disseminado, todos consomem e também produzem. “Isso mudou a forma como as pessoas consomem conteúdo. O celular leva para a rua uma tela, uma experiência individual que antes só tínhamos no cinema ou na televisão. A imagem em movimento agora está em qualquer lugar”, acrescenta o estudioso, citando as discussões acerca de um dos episódio da atual temporada de “Game of Thrones” que se tornou alvo de críticas pelas cenas escuras. Segundo o diretor de fotografia Fabian Wagner, que trabalhou no episódio, o aspecto harmoniza com a proposta série. “‘Game of thrones’ é uma série cinematográfica e, portanto, você tem que assistir como se estivesse em um cinema: em uma sala escura. Se você assistir a uma cena noturna em uma sala bem iluminada, isso não ajudará a ver a imagem corretamente”, disse o profissional em entrevista ao TMZ. Para Adriano Chagas, “isso cria uma condição de audiência de imagens”. “No cinema, a sala é escura e você fica imerso ali. É um condição criada para a atenção ficar objetivamente na tela. Em casa, há a concorrência com o cachorro, com a campainha, com o telefone. Na rua é muito pior, porque pode estar num transporte lotado, com o barulho dos carros. Há novas condições de audiência para produtos em celular. Cada um, agora, tem a sua tela. Antes só era possível a tela no drive-in ou no cinema. E há quem defende, agora, que o celular é temporário, e vão surgir outros dispositivos como óculos, com tudo projetado a nossa frente”, pontua o pesquisador, que em seu livro não apenas contextualiza o momento como problematiza a proliferação dos smartphones e analisa algumas produções feitas com aparelhos celulares.
Onipresentes cabeças baixas
Com uma visão privilegiada sobre o assunto, Adriano Chagas vivencia as discussões acerca da criação, circulação e exibição de imagens originárias de smartphones pelas óticas do mercado e da academia. Coordenador de produção musical na TV Brasil, ele começou sua carreira há duas décadas, na carioca TVE, e já atuou tanto com esporte quanto com o jornalismo diário e, hoje, dedica-se ao entretenimento. Professor, lecionou na Unifeso e na Estácio de Sá, nos cursos de jornalismo, publicidade e produção audiovisual. “Sempre estive envolvido no mercado e na academia. Em 2012, fiz um MBA em TV digital e conheci alguns professores da UFF (Universidade Federal Fluminense) e o trabalho final me levou a um projeto de mestrado, que terminei em 2017. Depois fiz o projeto de doutorado, que estou começando esse ano, na primeira turma de doutorado deste programa”, diz ele, aluno do Instituto de Artes e Design da UFJF. “A imagem portátil” é uma versão reduzida e atualizada de sua dissertação de mestrado. Repleto de imagens e dividido, didaticamente, em curtos capítulos, o livro traça um caminho da teoria à prática.
Se não estão surdos, ao menos com as cabeças baixas estão. Os micromomentos das pessoas, defende Chagas, foram tomados pelos dispositivos. “E há filósofos que dizem, como o (Giorgio) Agamben, que cito no livro, que o dispositivo atuaria em favor da pasteurização do homens. Há outros, mais recentes, que acham que o telefone controla a pessoa, e isso impede um pensamento mais aprofundado, a contemplação. Apresento essas visões, e não podemos negar que o telefone torna mais ágil e otimiza o tempo de todos nós. Conceitualmente, quero dizer que esse fenômeno é importante para que as pessoas reflitam sobre o uso do telefone celular. Hoje usamos os telefones para inúmeras coisas, como fazer transações bancárias, se comunicar, encontrar pessoas. Entendo, numa visão pessoal, que a vida não deve ser guiada pelo dispositivo. O espaço do pensamento, da conversa, do olho no olho precisa ser valorizado”, sugere.
O mundo visto por uma telinha
A imagem do celular, pontua o livro, do ponto de vista da linguagem, até o momento não traz nada de novo em relação às imagens do cinema. “Mas as imagens dos celulares têm uma estética diferente, porque permite filmar na horizontal ou na vertical. Quem disse que precisa ser na horizontal? Semana passada lançaram uma televisão com tela vertical”, aponta Chagas, referindo-se ao lançamento da Samsung, que reproduz uma tela de smartphone. “Esse aspecto é estético, não é da linguagem. Além disso, há um modo de usar o telefone, que além de ser na vertical, tem a imagem trêmula, hesitante, característica dos flagrantes, quando as pessoas sacam o telefone para registrar a rua, o que chamam de rascunho de imagem. Hoje tem muita produção dessa natureza. Quem sabe essa trepidação, no futuro, não se torne uma característica específica da imagem do telefone celular?”, sugere o pesquisador, apontando para o apagamento de fronteiras que os smatphones ensejam. “É inegável que isso gera um campo nebuloso entre o cinema, o audiovisual, o vídeo em movimento, a televisão. É importante pensar nessa fronteira. Onde acaba a televisão e começa o cinema à medida em que você pode consumir qualquer conteúdo em qualquer lugar e em qualquer momento?”
E a popularização dos aparelhos também transformou a realidade, de acordo com o estudioso, das escolas de cinema. O celular é fundamental no processo, se não para fotografar uma cena e marcar a continuidade, para registrar uma visita a uma locação ou, até mesmo, para baratear substituir equipamentos profissionais. “Às vezes o filme de celular sai porque a produção tem pouco orçamento, ou porque o dinheiro acabou no meio do processo de produção, ou, às vezes, porque de fato é uma obra experimental. Por isso digo que depende do uso que dá ao equipamento, porque pode ser uma ação promocional, ideológica ou orçamentária”, argumenta Chagas, citando o caso de “Procurando Sugar Man”, vencedor de melhor documentário no Oscar de 2013. Um celular foi usado na produção como recurso para baratear o longa. Era preciso gerar imagens de arquivo da África do Sul, e a solução foi usar uma câmera de celular e um aplicativo para envelhecer a imagem, tornando ela de época. “O importante é que com os recursos se democratiza a produção”, defende o autor de “A imagem portátil”, para logo concluir: “Tem mais pessoas fazendo audiovisual, a oferta de conteúdo é maior, mas dentro da premissa de que é preciso pensar o que vai ser gravado.”
A IMAGEM PORTÁTIL: CELULARES E AUDIOVISUAL Lançamento do livro de Adriano Chagas nesta quinta, 9, às 21h, no Pluri Bistrô (Rua Marechal Deodoro 810 – Centro)