Com assinatura do então prefeito Dilermando da Costa Cruz Filho, o Diário Oficial do Município publicava, em 4 de junho de 1948, a Lei 41, na qual consta, como primeiro artigo, o seguinte texto: “Fica o Prefeito autorizado a doar à Associação de Damas Protetoras da Infância um terreno de 17,50 metros de frente por 34,50 metros de fundos, sito à rua do Espírito Santo, esquina da via pública, ainda sem denominação, aberta ao lado do Palácio Episcopal, nesta cidade.” Cinco anos antes, em 8 de maio de 1943, adentrava a instituição a pequena Maria da Conceição Oliveira, pesando 3,6kg aos 5 meses de vida, tempo necessário para já ter atingido 6,9kg. Atendida pela casa, recebeu a alimentação indicada para seu crescimento, mas ganhou, apenas, 1,5kg em quatro meses. Antes de seu décimo mês, a menina gripou e voltou a regredir, chegando a pesar exatos 3kg, o que a obrigou passar por sessões de transfusão sanguínea. Conceição, protagonista do primeiro relato de desnutrição severa de que se tem notícia na história do Lactário São José, recebeu alta aos 2 anos, andando, falando e pesando 10kg.
Mantenedora do lactário, a Associação de Damas Protetoras da Infância escreve, desde sua fundação em 1934, um tratado de caridade e, também, um capítulo importante da história social e arquitetônica de Juiz de Fora. No Centro da cidade, a sede erguida pela Construtora Pantaleone Arcuri tem projeto assinado pelo arquiteto Hugo Arcuri. Filho de Raphael Arcuri, ítalo-brasileiro que projetou o Paço Municipal (hoje sede da Funalfa) e outras referenciais edificações juiz-foranas, Hugo não ganhou a notoriedade do pai, mas realizou importantes obras. De acordo com o pesquisador e professor do departamento de história da UFJF Marcos Olender, quando foi criado o Largo João Pessoa, no Calçadão, uma das propostas para a nova fachada do Cine-Theatro Central (de autoria de Raphael, o pai) partiu das mãos de Hugo, que trabalhou como assistente dos arquitetos franceses Henri Paul Pierre Sajous e Auguste Rendui, responsáveis pelo prédio “queridinho” dos cariocas, o Biarritz, na Praia do Flamengo.
Em estilo moderno, o edifício de três andares da Associação de Damas Protetoras da Infância se destaca na paisagem urbana pelas linhas retas, gradil em formas geométricas e uma suntuosa escada em caracol que acessa os três pavimentos e se posta à frente de uma parede que perpassa toda a altura do prédio com imensas janelas a clarear todos os ambientes. Como um agigantado complexo de salas, o lugar parece um labirinto, dada a quantidade de espaços e aberturas, que juntos dão conta de um tempo em que o vaivém era uma constante na casa cuja portaria da Espírito Santo já não é aberta diariamente há décadas. Ainda que o interior preserve características de um período, como as pesadas e grandes pias, todo o exterior é eclipsado pela sujeira e deterioração. Marcas de uma atividade que mesmo somando esforços resulta em fragilidades.
Conquistas valiosas
Autora dos dez vitrais, retratando cinco temas litúrgicos, dispostos lado a lado nas laterais da “capela”, que ocupa quase a totalidade do segundo andar do prédio, Therezinha de Castro Tortoriello é um dos principais braços a fazer força nesse cabo de guerra do trabalho beneficente. Nos 43 anos em que esteve à frente da instituição feminina, a mulher falecida em 2012 perseguiu meios de equilibrar as contas e conferir sustentabilidade ao projeto. Artista plástica por vocação e administradora de empresas por formação, Therezinha bateu na porta do Poder Público e também da iniciativa privada. Logo que chegou à casa, presenciou a criação da Lei 3.423/1970, na qual o então prefeito Itamar Franco autorizou a doação “à Associação de Damas Protetoras da Infância dos pneus usados imprestáveis para os veículos da Prefeitura”. Em outro momento, Therezinha decidiu reformar os seis imóveis pertencentes à associação (doação de famílias abastadas da cidade) e alugá-los, revertendo os valores na manutenção da obra social.
“Desde que mamãe assumiu a presidência, foi sendo reeleita pelos serviços que prestava. A associação, por ser particular, sempre custeou tudo. Há os sócios contribuintes, que oferecem graciosamente uma quantia que ninguém propõe, além das conselheiras que oferecem a anuidade, mas o fixo foi ideia dela, com o aluguel desses imóveis na periferia”, recorda-se a filha de Therezinha, Stella Tortoriello, referindo-se às casas onde a mãe fazia atendimentos, mas, por não contar com numeroso grupo de voluntárias, acabava por visitar uma vez ao mês, o que propiciava o vandalismo e, com isso, mais despesas. “Ela foi visionária. Pegou a instituição numa época em que o registro não era obrigatório, então, fazia encaminhamentos para cartórios, além de agendar consultas com especialistas e dentistas”, completa Stella. Ao longo dos anos, o número de famílias atendidas orbitava entre 30 e 40, com as mulheres assistidas da gestação até o terceiro ano de suas crianças.
Ao valor do aluguel dos seis imóveis é acrescido o aluguel das lojas ocupadas por um chaveiro e outra por uma agência de turismo, além do terceiro andar, que, por alguns anos deu lugar a um curso preparatório para concursos. Resultado da tentativa de ampliar a receita do projeto, alterações foram feitas à revelia na fachada do imóvel, o que, segundo Stella Tortoriello, serviu de discurso do município contra o tombamento do prédio, sonho de Therezinha. Para a filha da longeva presidente, a obrigatoriedade de conservação da edificação poderia contribuir para que novas distorções não sejam feitas em prol da obra social. “O foco é a puericultura, é o cuidado com a criança. No período em que mamãe ficou no voluntariado, houve um desenvolvimento muito grande no setor sanitário do Brasil, reduzindo a mortalidade infantil. Mas a pobreza continua. E sempre haverá uma mãe carente de ajuda, de orientação, como em 1934.” Sempre haverá uma Maria da Conceição Oliveira.
Moças do século XXI
Para a Maria da Conceição Oliveira de hoje há uma dama do século XXI disposta a assisti-la. Aos 21 anos, Ana Teresa Macêdo assumiu a presidência da Associação de Damas Protetoras da Infância em novembro de 2016 e recebeu as chaves em janeiro deste ano. Desde então, realizou dois simpósios no espaço da capela – um sobre justiça social e outra sobre a mulher na contemporaneidade – e encarou emergenciais reformas no prédio da Espírito Santo, restaurando todo o telhado e revitalizando peças em madeira. Publicações, atas, documentos, correspondências e estudos acadêmicos reunidos ao longo das mais de oito décadas da instituição estão sendo higienizados e catalogados. A ideia é que o lugar se torne um vivo complexo como em seus anos iniciais. Tarefa que exige fôlego, o que sobra na jovem estudante de medicina que convenceu as amigas do curso a encarar o desafio do voluntariado. Novas damas para a casa composta, no passado, por mulheres, em sua maioria, donas de casa das classes média e alta da sociedade local.
“As antigas damas já não existem. As mulheres atuais estudam, trabalham e na sua maioria têm tripla jornada de trabalho. As damas filantrópicas de hoje precisam ser versáteis”, discursa a nova presidente, que, aos moldes de Therezinha e sua geração, leva as acaloradas discussões feministas à prática do empoderamento diário da mulher. “O fato de (a equipe) ser formada por jovens traz a força do trabalho, a pureza do coração, a coragem, o ‘não’ aos conchavos políticos e às pressões, e a vontade de vencer, de fazer o bem e de aprender. Temos exemplos de jovens brilhantes, não só em nosso conselho-diretor, mas em vários setores da sociedade. É uma geração diferente, com facilidade cibernética e dinamismo”, defende Ana Teresa, filha de um casal de médicos cardiologistas e irmã de outra acadêmica de medicina, tesoureira na nova diretoria.
Com planos para cada canto do edifício projetado por Hugo Arcuri, Ana Teresa espera conseguir verba para revitalizar a fachada e o interior, construir um pequeno museu da associação e agregar atividades lúdicas para as crianças. Formada por 30 gestantes, uma turma de famílias atendidas se prepara para a nova fase da instituição. Elas devem receber o enxoval produzido pela Obra do Berço instituída neste mês, além do leite em pó, que deve ser substituído por “fórmulas pediátricas mais indicadas aos recém-nascidos”, que custam, em média, R$ 50, mas, em casos especiais, podem ultrapassar R$ 100. “Sonhamos em retomar o convênio com a UFJF, para que os alunos de medicina possam estagiar na cadeira de puericultura, orientados por seus professores. Assim as crianças poderão ser atendidas novamente no lactário, para acompanhamento materno e combate à mortalidade infantil.” Num lugar de memórias sociais, arquitetônicas, artísticas e, sobretudo, humanas, a jovem voluntária planeja aperfeiçoar a reescrita de histórias solares como a da pequena Maria da Conceição Oliveira.