O trabalho do artista exige, em diversas oportunidades, não apenas a inspiração. É preciso ter paciência, persistência em acreditar em si e saber que sua hora vai chegar, que o reconhecimento pode estar ali em uma esquina de Juiz de Fora. Ou na Holanda, caso apenas o olhar estrangeiro seja capaz de perceber o que a proximidade (pré-conceito?) não permite. Talvez, no meio-termo, em São Paulo. Pois foi além dos limites de sua terra natal que o editor de fotografia da Tribuna Fernando Priamo viu seu trabalho como artista visual ganhar reconhecimento e visibilidade. Depois de ter algumas de suas obras selecionadas para a 1340Gallery, na cidade holandesa de Weert, ele está com duas de suas fotografias de urban art na Galeria de Arte Marcelo Neves, em São Paulo, desde agosto. E mais: ele aceitou a proposta de Marcelo Neves para tê-lo como marchand e divulgar seus trabalhos no circuito de arte nacional e internacional, um novo passo em sua carreira que tem objetivos ambiciosos.
“O Marcelo enxergou um trabalho contemporâneo com potencial artístico muito grande e o abraçou para levar até São Paulo. A minha própria cidade nunca abraçou meu trabalho, nunca aceitou o artista, só o documentarista, mas São Paulo enxerga o artista”, afirma, orgulhoso, Fernando. Segundo ele, esse contato foi feito graças à galeria virtual que tem em sua página no Instagram (@fernandopriamo), em que busca marcar pessoas da área cultural. Foi assim que despertou a atenção do galerista, que o convidou para ir até um vernissage em sua galeria a fim de se conhecerem pessoalmente.
“Eu fui para saber se era o que eu queria e o que ele queria também, que desejava conhecer a pessoa, o artista, e não a obra por enquanto. Tivemos um contato bacana, e ele marcou para retornar com o portfólio, que tinha cem das 180 fotos que selecionei. Ele enxergou um potencial artístico, e fizemos um acordo para ele me representar, e agora minha arte faz parte da galeria dele, com essas duas peças de urban art feitas em Zurique (Suíça) e Praga (República Tcheca).”
“Ter uma obra na galeria do Marcelo é a certeza que o trabalho ganha vida própria, é uma das chancelas para entrar nesse grupo de artistas. Ele é um grande escultor, reconhecido internacionalmente, um galerista que já expôs nos Estados Unidos e Europa e que leva trabalhos para lá. Estamos acabando de montar um catálogo virtual que a galeria manda para todo mundo, para conhecerem meu trabalho, com texto do Oscar D’Ambrosio (jornalista, mestre em artes visuais pela Unesp). É uma ruptura do fotógrafo juiz-forano em relação ao fotógrafo que vai para São Paulo e se torna mundial”, afirma. “É muito difícil você conseguir ter uma obra numa galeria tão expressiva, ganhar essa chancela de um crítico de arte, um texto do Carlos Bracher, nosso grande artista mineiro. Isso me dá certeza que preciso me concentrar para seguir, que não posso deixar a obra se tornar grande, e o artista, pequeno.”
Elogios de especialistas
Para Marcelo Neves, um dos elementos do trabalho de Priamo que chama atenção é o que ele considera um “olhar futurista”. “É a capacidade de olhar a foto à frente, e ele consegue passar isso na fotografia. A desconstrução que ele faz tem muita propriedade”, elogia, acrescentando que a técnica diferenciada do fotógrafo é algo único em termos de artes visuais. “Em 20 anos de trabalho como curador, não havia visto uma fotografia tão própria, o Fernando criou um método totalmente diferente de qualquer fotógrafo, é um modo muito peculiar de fotografar. É como se fosse um ‘passo a passo’ da fotografia, e isso chamou nossa atenção, é a cara de um público admirador de fotografia de arte que temos em São Paulo. O Fernando encara o trabalho de forma muito séria, com pesquisa muito profunda, com embasamento.”
Por sua vez, Oscar D’Ambrosio vê dois fatores diferenciadores no trabalho de Fernando Priamo para que sua urban art tenha originalidade num universo em que é tão difícil não ser mero repetidor de influências. “Um deles é em relação ao trabalho da sobreposição de imagens, resultado de uma pesquisa aprofundada. O segundo é o excelente acabamento; muitos não conseguem isso por falta de pesquisa, recursos técnicos, e essa experiência dele permite um acabamento primoroso, que se diferencia num ambiente altamente competitivo como o da arte contemporânea e da fotografia. É desafiador saber até que ponto ele pode desenvolver e aprimorar essa pesquisa, enquanto artista.”
Ao lado de Tarsila
Fernando explica que cada uma dessas obras pode ter sete impressões, que é o que caracteriza uma obra única, com certificação de autenticidade pelo artista e outra do galerista. Ele ainda salienta uma situação que o deixou orgulhoso, e que considera apadrinhar seu trabalho: O fato de suas obras estarem ao lado de uma de autoria de um dos maiores nomes da arte do país, Tarsila do Amaral. “Para minha surpresa, essas obras foram colocadas ao lado da Tarsila e Aldemar Martins, que são dois ícones brasileiros”, comemora.
A chancela de tantos nomes não apenas dá a Fernando a confiança para continuar, mas também um gosto especial por decepções passadas em sua própria terra. “É importante porque o (Fernando) artista já foi recusado na (própria) cidade, e quando você ganha espaço em São Paulo, a maior cidade da América Latina, você se questiona por que algumas pessoas de Juiz de Fora rejeitaram, e São Paulo abraçou”, pontua. “A urban art foi rejeitada porque não foi reconhecida como fotografia, arte, e tive várias portas fechadas, mas não desisti. Na época, fiquei muito pra baixo, me questionando, mas nem por isso abandonei, pois tenho a certeza que estou no caminho certo. E São Paulo é a mola propulsora para o resto do mundo. Espero que agora Juiz de Fora conheça o artista, o meu potencial, e não só o fotógrafo.”
Por isso mesmo, ele se orgulha da recepção que suas composições tiveram com Carlos Bracher, que se ofereceu para escrever sobre o seu trabalho, em que destaca, no texto, que as fotos são “prelúdios estéticos incisos, e ele retira de qualquer tema, por mais efêmero, o âmago e o cerne (…)”. “É importante você levar sua arte para ter o crivo de um artista renomado”, diz o fotógrafo e artista que cresceu no Bairro Floresta e credita à sua dupla cidadania – com antepassados italianos – parte da sua ligação com a arte em geral e a fotografia em particular. “Eu não me tornei fotógrafo, eu sou fotógrafo. Se tivesse que trabalhar com fotografia, seria a pessoa mais infeliz do mundo. Eu não trabalho com fotografia, eu exercito a arte que está em mim, é o que faço diariamente quando chego à Tribuna de Minas. Eu venho para exercitar o artista. O dia que levantar e falar ‘nossa, hoje vou ter que fotografar’, eu não serei mais o artista, o Fernando.”
Experimentações que duram quase uma década
Em uma entrevista para a Tribuna, em maio, Fernando Priamo já havia contado que começou a desenvolver a técnica que resultou na urban art em 2010, durante uma viagem à Itália. Agora, ele explica um pouco mais sobre o trabalho, que a princípio poderia ser resumido como experimentações com sobreposições a partir dos recursos oferecidos por uma máquina fotográfica profissional. “Mas eu buscava um diferencial nesse trabalho, uma identidade. Não queria fazer um trabalho igual aos outros fotógrafos. Todos têm seus méritos, o meu respeito, mas eu queria ser diferente, fazer diferente. Não queria ser um fotógrafo à sombra de outro, queria ser luz”, filosofa.
“Meu caminho foi trilhado sem ter um fotógrafo como parâmetro de trabalho, um guia. Foi desenvolvido como um estudo sobre os grandes pintores italianos. Estudei composição, luz, todo o processo criativo desses pintores, é o que me chamava a atenção antes mesmo de entrar para a fotografia diária. Creio que levo um pouco da carga emocional que afetava as cabeças desses artistas. O meu processo criativo, guardadas as proporções e o tempo, acredito que seja doloroso, forte, mas que sai de mim normalmente. Porque tudo aquilo que capto já está lá, o que faço com minha obra é que ela seja autêntica, que leve minha identidade. Agora não é mais o fotógrafo que leva a fotografia, é a fotografia que me leva, porque ela ganha vida própria, identidade, um perfil, tem caráter, emoção.”
Dentre os artistas italianos que são objeto de admiração de Fernando Priamo, ele destaca três nomes, começando por Caravaggio, “primeiramente, pela composição, a inquietude e pelo trabalho de sombra e luz, a dramaticidade das telas, e isso é muito pesado”, analisa. “O Michelangelo pintava com a alma. Quando você entra na Capela Sistina e vê as pinturas dele, vai ver a sua inquietude, o desejo de fazer de seu jeito. Quanto ao Leonardo da Vinci, ele jamais poderia imaginar que a ‘Mona Lisa’ seria reverenciada para sempre. E há outros artistas, é um leque gigantesco.”
Método ‘doloroso e cansativo’
Por falar em “Mona Lisa”, Fernando Priamo usa a sua releitura do mais famoso dos quadros para ilustrar um pouco do seu processo de criação. “Montei meu tripé no Museu do Louvre, em Paris, com 300 ou 400 pessoas em cima de mim, e ainda tive condição de deixar minha mente fazer uma leitura contemporânea. Eu me permito porque não tenho medo de fazer isso. O Fernando documentarista faria a foto das pessoas olhando, mas o Fernando que trabalha com a arte busca o diferente, eu vou desconstruir a Mona Lisa, e isso não é simples, porque é um processo criativo em cima de uma obra perpetuada, provavelmente o quadro mais importante do mundo.”
Esse trabalho, porém, não é imediato, no estilo “chegar e fazer”. Exige tempo, estudo, reflexão, disposição, inspiração para o momento, atenção ao que está ao redor. “Eu sempre fotografo com os dois olhos abertos, porque com o olho direito enxergo o frame da máquina e a ‘tela’, enquanto isso, o esquerdo está percorrendo todo o entorno do enquadramento para saber se algum elemento vai entrar, para o direito captar aquele momento”, explica.
Fernando segue explicando como funciona sua técnica, e o quanto ela pode resultar em um processo não apenas lento, mas também doloroso, pois às vezes ele pode demorar cerca de 20 minutos entre um clique e outro, deitado na rua, num museu. “Eu criei uma sistematização da minha câmera, em que faço as sobreposições e não deixo que o resultado fique abstrato. A máquina me dá até sete sobreposições. Dependendo do assunto, posso fazer de duas até essas sete. Para cada clique, eu tenho uma pré-programação, para aquele tipo de situação; então eu dou o primeiro clique, altero, dou o segundo, altero novamente, dou o terceiro; pode ser vertical ou horizontal, ou posso usar um espelho para fazer uma imagem espelhada. É um momento em que estou num mundo paralelo, que acontece dentro da minha cabeça, captando tudo em volta.”
O processo, claro, não se resume a chegar e fotografar. “Eu vou para a London Eye (roda-gigante localizada em Londres) e fico observando durante um tempo, e a urban art já está acontecendo na minha cabeça. Quando coloco minha máquina no tripé e vou fazer a urban art, ela já aconteceu aqui dentro (na cabeça), pois já vi tudo que acontece. Já preparei a máquina para aquele momento, e é aí que demora. Pois paro para observar, paro para fazer as regulagens, volto ao manual para uma imagem parecida que fiz em 2012, ver o que fiz de sistematização para colocar as regulagens e fazer da mesma forma. É um processo criativo, mas com uma regra, não é de ‘orelhada’.”
“Já tenho experiência de dez anos para saber o que vai ser bom ou não. Um bonde é um elemento primoroso, uma bicicleta, um carro são primorosos para a urban art. São elementos fortes. Uma esquina movimentada no entardecer é um momento ideal para a urban art acontecer, uma entrada de metrô, dentro da estação do metrô, que tem uma luz mais controlada, consigo dimensionar o que quero, sei a velocidade do obturador para parar, e depois para dar dinâmica. Tudo isso acontece na minha cabeça muito antes do clique em si. Quero levar uma obra que tenha minha identidade, meu DNA. É presunção? Não sei, mas este sou eu. Consigo saber o que quero, mas o produto final ainda se torna um coisa da qual não tenho muito controle. Quando chego em casa é que vou olhar, saio dali com a cabeça já em outro lugar.”
Estímulos externos
Ainda que, a princípio, a obra já esteja “em sua cabeça” quando inicia a sequência de fotos, o artista visual deixa claro que os fatores externos sempre influenciam o resultado final. Fernando afirma trabalhar com todas as percepções, os sentidos, nestes momentos, em que os sons, os barulhos, os movimentos, estão no seu campo visual e “invadem” a obra. O mesmo vale quando está em um país no qual a língua é absolutamente estrangeira a ele, como na Hungria. “Às vezes, estou em um país com uma língua totalmente diferente, ou mesmo no Brasil, em que o português é falado de formas diferentes, mas meu trabalho carrega todos os sons, todas as línguas. Isso só vai somatizar minhas percepções visuais para criar esse trabalho. Não existem barreiras para a arte.”
Em suas viagens, Fernando Priamo volta para casa com até 15 mil imagens registradas, mas de urban art costuma fazer, no máximo, algo em torno de 30. Um dos motivos é o trabalho desgastante para realizar a urban art, que depende ainda de estar no clima para isso, de encontrar o local certo. Nesse meio tempo, ele exercita o papel de documentarista, em que o fotojornalista registra o cotidiano e exercita seu olhar em universos diversos ao que está acostumado. “Tem dia que faço nada, não quero olhar para a urban art, pois é muito intensa. Às vezes quero parar com minha esposa, Ana Cristina, que é minha incentivadora, meu alicerce, para tomar um vinho. Isso não quer dizer que não vá fotografar, mas o trabalho de urban art pode não acontecer ali. Mas aí passo ao lado de um chafariz, e a urban art acontece, dá o estalo e vou parar. Tem dia que ando 12 horas fotografando.”
Seleção técnica, mas também subjetiva
Fernando Priamo diz que só volta a olhar para as fotos de urban art quando chega em casa e senta sozinho com seu computador, uma taça de vinho, às vezes com música (clássica, jazz ou eletrônica). “Fico ali durante horas só olhando, sem fazer nada, voltando à viagem, faço minhas anotações do que foi bom, ruim, do que posso melhorar.
Se tiver um determinado local em que não foi legal o processo criativo, eu elimino aquela foto. Outra pode não ter dado o resultado que queria, mas deixo lá porque tem uma história por trás. Toda imagem tem uma história, e essas imagens de urban art também passam para as pessoas o que vejo e sinto nesses lugares que visito. Eu tenho uma história para cada uma. Quem comprar vai carregar uma história, um capítulo da minha vida, você compra toda minha bagagem teórica, técnica, mas também emocional, que vem carregada de felicidade, de ansiedade, aí você precisa se tornar um pouco artista para fazer essa leitura. Eu procuro conversar com as pessoas para contar essa história.”
“Consigo lembrar das histórias de todas as fotos”, prossegue. “Lembro como foi, como estava o tempo, como eu estava, por que estava naquele lugar; nada eu anoto, está tudo em minha cabeça.” Para esses países que visita, o artista visual conta que pesquisa antes para saber como são os lugares. “Se ficar com alguma dúvida, pego as imagens de satélite para olhar o que vai ser legal. Quando chego a esses lugares já tenho um mapeamento superficial e começo a levar em consideração a minha percepção visual, onde fica melhor, o posicionamento da luz. O que não impede de descobrir um lugar legal, posso estar numa rua, e na via paralela a ela ter algo mais interessante.”
Planos futuros
O próximo projeto de urban art de Fernando será realizado este mês e terá como tema as obras do estilista franco-argelino Yves Saint Laurent. “Andei assistindo a documentários sobre a vida dele e me chamou muita atenção, pois sou muito ligado a moda, música. Conhecer a grandiosidade do estilista foi um desafio para criar peças a partir do que ele viu. Vai ser intenso, porque não é nada menos que isso: a história de um dos maiores estilistas do mundo, e me propus a ser ousado o bastante para fazer uma série dedicada a ele.”
O local onde será feita a série não foi divulgado pelo artista visual, que prefere guardar surpresa, mas já adianta que terá como inspiração texturas, cores e peças, numa viagem que deve durar quase três semanas. Quero levar para expor na França, quem sabe ano que vem.”
Este, todavia, será mais um passo na carreira de Priamo que, dentre outros objetivos, tem um típico de quem pensa e sonha grande. “O que eu pretendo é ter uma obra dentro do MoMa (Museu de Arte Moderna), em Nova York. Eu não quero pouco, pois quem pensa pouco não tem nada; quero que esse trabalho, que tem minha identidade, seja uma referência no MoMa. E vou lutar para conseguir.”