“O gesto é a voz do proibido escrita sem deixar traço. Chama, ordena, empurra, assusta, vai longe com pouco espaço”, escreveu Mário Lago. O registro do poeta a recitar os versos ecoa ainda hoje, assim como a concretude de suas palavras. Em seus movimentos, René Loui faz verdade a ideia. O gesto é uma escritura, e ele comprova em seu mais recente trabalho, “B-Cut”, o vídeo produzido durante sua residência no Odisha Biennale, festival de artes visuais que acontece na última semana do ano em Bhubaneswar, capital do estado de Odisha, no Leste da Índia. Artista residente do evento e único brasileiro entre os convidados, René filmou moradores da comunidade local dançando, cada um a seu modo. O resultado, colorido em diferentes significados, versa com a concepção de Mário Lago e com a própria trajetória do artista juiz-forano.
“O gesto, pelas palavras de Mario Lago, tem forças para ir ao infinito. Eternizá-lo, neste momento, não cabe a mim nem ao olhar de minha câmera, mas sim ao olhar do espectador, que também faz parte da obra e elege o que olhar, quando olhar ou como olhar. E somente a partir dessa escolha é que algo pode ou não ser eternizado em sua memória. É no espectador que minha obra se completa. Penso nesse recorte digital, como um outro modo de se fazer dança. Danço nos palcos, mas danço também através das lentes de minha câmera”, define René, que ouviu os versos do poeta pela primeira vez na companhia que lhe apresentou à dança.
“Rememoro meu percurso até aqui. Foram quase 13 anos em Juiz de Fora, aprendendo cotidianamente dentro da Ekilibrio Cia de Dança o que é realmente dançar as diferenças. A Ekilibrio foi meu grande berço de aprendizado e a carrego comigo onde quer que eu vá. O trabalho social que o projeto realizou em minha vida e na vida de tantos outros jovens moradores das redondezas do Bairro Dom Bosco é indiscutível. Christine Silmor, pesquisadora em dança, propulsora da Ekilibrio, bem como dos projetos que a companhia realizava, foi uma das figuras mais importantes na construção deste meu eu artista. Sou eternamente grato às vivências que a Ekilibrio me proporcionou”, emociona-se ele, radicado há mais de três anos em Natal, no Rio Grande do Norte.
O vídeo exibido na Índia, “B-Cut”, é o desdobramento de uma produção idealizada pela suíça Mélanie Fréguin no projeto “Overseas Culture Interchange”. “Eu tive meu primeiro contato com ‘B-Cut’ somente em minha passagem pelo mesmo projeto, um ano depois de sua criação, quando Melanie me convidou para participar da iniciativa em sua turnê pela Suíça. Fui convidado para estar atrás das câmeras, para ser o olhar digital”, recorda-se o juiz-forano, que, um ano depois, transpôs a ideia para Bhubaneswar, cidade com mais de 800 mil habitantes. “Ao meu ver, essa instalação fala sobre as múltiplas possibilidades do dançar. É uma defensora das diferenças enquanto potência na dança, é um reafirmar de minhas pesquisas ao longo deste muitos anos pensando uma dança inclusiva”, defende René.
Entre a tradição e a inovação
René Loui chegou à cidade de altas temperaturas ainda em novembro. Carregava na bagagem o solo “Etéreo”, apresentado durante o festival, e também ideias para uma criação coletiva. A convite da diretora artística e curadora do festival, a coreógrafa e bailarina japonesa Masako Ono, René contribuiu para a criação de “Border line”, ao lado de Masako e do multiartista japonês Toshimitsu Kokido. O espetáculo, um dos pontos altos do evento, integrava visões e vivências. “Estou muito feliz de ter a oportunidade de coreografar uma mesma peça e ao mesmo tempo estar em cena em um mesmo espetáculo ao lado de uma figura tão importante para a dança do Japão, bem como, para a dança da Índia. O trabalho que Masako vem desenvolvendo na dança em Bhubaneswar é gigantesco, e a Bienal reafirma isso”, pontua o artista, um dos 70 a se apresentar na Odisha Biennale.
“Tive a oportunidade de realmente experienciar os múltiplos e sinuosos ritmos da cidade. Tive a oportunidade de me relacionar forte e afetivamente com esse fluxo incessante da cidade. Me debrucei em uma nova pesquisa íntima e intensa sobre o meu fazer artístico. Consigo repensar minha produção de arte depois dessa experiência na Índia. Isso é um fato”, diz ele, que este ano comemora cinco anos de seu solo “Etéreo” enquanto constrói “RAIVA”, seu novo espetáculo e também trabalho de conclusão do mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. “Posso afirmar, com firmeza, que as performances que pretendi fazer pelas ruas de Bhubaneswar carregaram um pouco de tudo o que eu dialogo em ‘Etéreo’. Bem como de tudo o que virá a ser o meu novo trabalho solo. Estou me apegando a este deslocamento geográfico para dar início à construção dessa nova obra. Cinco anos depois da construção de ‘Etéreo’, ‘RAIVA’ surge como um prolongamento da primeira obra, e também surge de uma urgência. É a necessidade de se falar, pelas vias da arte, sobre preconceitos, estigmas e imagens pré-moldadas”, explica o artista, que deve estrear a montagem ainda neste primeiro semestre, com produção de seu Coletivo Independente Dependente de Artistas.
O confronto ou a harmonia entre o tradicional e o inovador não tomou conta apenas da paisagem de Bhubaneswar, com suas construções sagradas e seculares e suas avenidas com mais de seis pistas, mas também impregnou o festival, com uma programação capaz de valorizar o artesanato local e também as mais frescas pesquisas em dança. Segundo René, como no Brasil, a demanda por arte é muito maior do que a oferta. “O suporte financeiro para produção de arte é escasso, a produção de arte existe, porém não tão grande como poderia ser se houvesse mais suporte. A Odisha Biennale, segundo pude perceber em minhas conversas com seus idealizadores, é exatamente uma tentativa de fazer com que a cidade de Bhubaneswar respire mais arte, tenha acesso facilitado à arte produzida nos quatro cantos do mundo”, aponta o artista, recém-chegado da Índia e prestes a realizar uma nova viagem. Em setembro René embarca para Leicester, no Reino Unido, para ingressar no Programa de Pós-Graduação em Performing Arts da Universidade Montford.
‘Juiz de Fora ainda é meu lar’
René Loui ainda não conhece o Teatro Paschoal Carlos Magno. Gostaria, não apenas pelo ponto de vista da plateia, mas, sobretudo, do palco. “Juiz de Fora ainda é meu lar”, emociona-se. “Todas as vezes que me apresento, onde quer que seja, falo com orgulho que sou um juiz-forano tentando a vida em outros mares. Infelizmente a cidade não me permitiu viver unicamente da arte, por isso senti a necessidade de me lançar para outros lugares, onde viver da arte pudesse ser algo além de uma utopia, pudesse ser uma possibilidade real para mim. Ao longo de minha graduação no Instituto de Artes e Design tive a grande oportunidade de estagiar nas salas de aula do Colégio de Aplicação João XXIII. Lá surgiu meu contato com Renata Oliveira Caetano, que a meu ver é uma das principais facilitadoras do diálogo entre arte, artista e escola da atualidade na cidade”, conta ele, que assistiu ao surgimento do projeto Arte em Trânsito, responsável por sua vinda à cidade em setembro de 2019, quando ministrou uma residência artística de práticas performativas em dança. “Foi uma oportunidade incrível de retornar com meu trabalho já maduro à cidade onde me descobri enquanto artista”, diz.
Como artista profissional e reconhecido Brasil afora e mesmo internacionalmente – já se apresentou em Portugal e na Suíça -, René Loui se apresentou em Juiz de Fora no Festival de Artes do Corpo, numa edição da Campanha de Popularização do Teatro e da Dança e no Seminário Interno de Pesquisa em Artes e Design da UFJF. “Minha família ainda vive na casa onde me criei. Gostaria de visitá-los com mais frequência, entretanto, infelizmente não é tão simples. Sair do Nordeste ainda é muito difícil, muito caro. Aproveito as oportunidades de trabalho para poder visitar minha família. Toda vez que é possível, aproveito minhas passagens rápidas pelo Rio ou por São Paulo para ‘dar um pulinho’ em Juiz de Fora”, comenta ele. “Sempre fico com um gostinho de quero mais na boca.”