É por “Sorte”, o livro, mas não é por sorte, o adjetivo, que Nara Vidal é a única mulher, brasileira, a constar na lista dos dez finalistas do Prêmio Oceanos de 2019. É pela qualidade literária de seu primeiro romance, pelo ineditismo da temática, pela sensibilidade com que lida com o passado e pela argúcia de perceber os ecos de tempos vividos nos dias que correm. A escritora nascida em Guarani e radicada há quase duas décadas na Inglaterra escreveu um dos dez melhores livros em língua portuguesa no ano segundo um dos principais prêmios do gênero. Publicado pela pequena e independente Moinhos, de Belo Horizonte, “Sorte” concorreu com outros 1.466 livros, de 313 editoras de dez países diferentes. Além de Nara, são finalistas os brasileiros Cristóvão Tezza, com “A tirania do amor” (Todavia); Gustavo Pacheco, com seu “Alguns humanos” (Tinta-da-China); Mauricio Lyrio, por “O imortal” (Companhia das Letras); e Nei Lopes, com “O preto que falava iídiche” (Record); o angolano Pepetela, por “Sua excelência, de corpo presente” (Dom Quixote); e os portugueses Djaimilia Pereira de Almeida, com “Luanda, Lisboa, Paraíso” (Companhia das Letras); Dulce Maria Cardoso, com “Eliete” (Tinta-da-China); João Tordo, com “Ensina-me a voar sobre os telhados” (Companhia das Letras); e José Gardeazabal, por “Meio homem metade baleia” (Companhia das Letras). O vencedor será anunciado no dia 5 de dezembro, no Itaú Cultural, em São Paulo.
“A indicação à semifinal do Oceanos, em agosto, me deixou muito feliz. Fiquei ainda mais surpresa quando a relação dos finalistas apareceu, particularmente sendo eu a única mulher escritora brasileira na lista. Há nomes que me são conhecidos pelos seus trabalhos. Pepetela, importante autor angolano, Djamilia Pereira de Almeida e Cristóvão Tezza. Os que não li ainda, devo ler muito em breve. Acho importante conhecer essas recomendações do júri. Valorizo todos com enorme respeito e curiosidade”, comenta de Londres, por e-mail, Nara, dizendo não escrever por reconhecimento nem se atentar para tais medidas. “Acho que qualquer um que comece a escrever por querer reconhecimento está correndo o risco de se perder em vaidade ou se esquecer da real motivação que guia o próprio trabalho. Eu gosto de trabalhar e gosto de criar encontros, iniciativas. Acho que isso ajuda a fortalecer bons relacionamentos no meio”, pontua. Pode gerar problema também, brinca a escritora de 45 anos, grande parte deles às voltas com a palavra escrita. “Comecei a escrever desde muito cedo. Sempre estive, desde a escola primária, envolvida ou interessada em textos, feitura de redação e sempre tive grande curiosidade por palavras. Naturalmente, fui parar na Faculdade de Letras, primeiro em Juiz de Fora e depois no Rio. Tive a sorte de ter professores absurdamente brilhantes. Cito por exemplo Edimilson de Almeida Pereira, Godofredo de Oliveira Neto, Eucanaã Ferraz. Nessa época, comecei a ter vontade de mostrar o que escrevia. Acho que o trabalho do escritor começa de fato aí: quando você escreve e sente que quer ser lido.”
‘Manter o debate sobre o feminismo vivo é questão de vida’
Em suas cem páginas, “Sorte” retrata o desterro, o racismo, o patriarcado, a escravidão, os conflitos do Cone Sul, a exclusão social e mais incontáveis outras referências que se multiplicam na prosa poética de Nara Vidal. Diferentemente do título e em correspondência à capa, que retrata uma igreja degradada, a história retrata a desventura. Em 1827, Margareth Cunningham e sua família fogem da fome na Irlanda em direção ao Brasil. A Guerra da Cisplatina, entre Brasil e Argentina, destroça ainda mais o combalido grupo. No contexto da mesma opressão católica vivida em território irlandês e no novo país, ela deixa seus parentes e a amiga e escrava Mariava para se abrigar numa casa de freiras que vendem os bebês de “mulheres caídas”. Mas é o gesto da escrava que muda a sorte da criança e da trama.
“Fiquei quase seis anos escrevendo ‘Sorte’. Tinha esse arquivo constantemente aberto e que mudou completamente desde o início. No princípio, eu estava mais limitada a falar apenas da questão da igreja na Irlanda, das chamadas mulheres caídas que eram as mães solteiras. Mas li um documento sobre a chegada de dois navios irlandeses no Rio no século XIX e o golpe do governo brasileiro para recrutar homens estrangeiros para lutar na Guerra da Cisplatina. Ali, veio a travessia Irlanda – Brasil. Depois, algumas escrituras de compra e venda de escravos que encontrei me fizeram querer falar das mulheres que eram forçadas a trabalhar como escravas, e o romance foi sendo feito com esses elementos. Mas quando comecei falando da Irlanda, não tinha ideia que a história acabaria em Guarani (MG), de onde sou”, relata ela, que, inclusive, insere a popularmente conhecida na Zona da Mata Rio Pomba.
Primeiro trabalho de maior fôlego da autora, que iniciou sua carreira com os infantis e publicou dois livros de contos, “Sorte” tem como protagonista a força feminina. “Os homens, mesmo que importantes para a narrativa, saem da cena principal para dar espaço a elas. A questão da desterritorialização é muito visível na personagem irlandesa, a Margareth, mas eu convido o leitor a refletir sobre o que a Mariava faz no Brasil quando sua mãe foi arrancada de Angola para servir de escrava num país estranho. Acho que é um livro que conta sobre os silêncios dessas mulheres, suas opressões, repressões e as maneiras com as quais foram exploradas pelo patriarcado, pela igreja e pela norma que era o racismo. Eu sempre me atento e penso sobre os avanços e os retrocessos. Manter o debate sobre o feminismo e racismo, por exemplo, vivo é questão de vida e identidade”, defende.
Olhos de fora e de dentro
Como um tratado ficcional da formação do país, “Sorte” lança olhares não apenas para o país do século XIX, mas, principalmente, para o hoje, com as mesmas mentiras e ilusões presentes em sua trama. “O Brasil vive hoje um dos momentos mais difíceis da sua história. O diálogo é raro, e todo mundo é dono da verdade. Mas percebo um retrocesso absurdo, uma espécie de nostalgia inconsequente por tempos sombrios. E quem acredita que eram bons os tempos de ditadura, quando a democracia e a liberdade de expressão eram constantemente ameaçadas, as torturas eram frequentes, ou está mal informado ou tem más intenções. Não é possível flertarmos com tempos obscuros que se alimentaram de preconceito de raça, de classe, de autoritarismo. Temos a possibilidade, através da educação, de entender as atrocidades do passado e fazer um país que abrace sua população em iguais oportunidades. Mas, a má notícia é que essa não me parece ser a intenção de todo mundo. ‘Sorte’, escandalosamente, é uma história atual”, pontua a escritora.
Ainda que morando fora do Brasil há tantos anos, Nara Vidal acompanha todos os movimentos de seu país de origem. Tanto da vida política quanto do meio literário. “Quando olho para trás, vejo uma luta incansável para conseguir editora, divulgação, leitores, espaço. Nem sempre bons livros são destacados. Às vezes, pode acontecer, mas é crucial estarmos ligados ao que é produzido por pequenas editoras também. Há coisas boas e menos boas em todo lugar, e essa categorização também é muito subjetiva e pessoal”, avalia ela, dizendo ter feito bons amigos no meio e, também, os contatos necessários para que abrisse, há dois anos, sua livraria on-line Capitolina Books, que comercializa exclusivamente títulos brasileiros em terras londrinas. “Mal posso chamar de uma livraria no sentido de negócio, mas é uma maneira de mostrar o que é feito pelas editoras pequenas e sem grande meios de divulgação dos autores. Há tanta coisa boa sendo escrita atualmente no Brasil. É um momento potente. A literatura brasileira tem pouquíssimo destaque aqui, mas acho que a Inglaterra, pela questão da língua, é menos acostumada com traduções de outros idiomas. Aos poucos percebemos algum interesse, mas é pontual e bem raro”, lamenta.