“Damas da Lua” se passa numa pequena vila de Omã, na Península Arábica, onde uma irmã se casa depois de uma terrível decepção, outra se casa por obrigação, e a terceira rejeita propostas aguardando um grande amor. Assinado pela omanense Jokha Alharthi, o título é o atual vencedor do Man Booker International Prize. Alharti é a primeira mulher de língua árabe a receber um dos maiores prêmios literários do Reino Unido. Traduzido direto do árabe pela professora da USP Safa Abou-Chahla Jubran, o livro estava pronto desde março, quando a pandemia fechou livrarias país afora. Ainda assim, em julho foi lançado pela editora mineira Moinhos, com sede em Belo Horizonte. O motivo? “Timing. Somente isso”, explica o editor Nathan Matos. “O acordado havia sido esse, que até julho o livro seria lançado. Claro que com a pandemia isso poderia ser revisto. Não seria um problema. Mas o resultado do prêmio deste ano sai agora em agosto, e não queríamos deixar para lançar apenas depois.”
A cadeia do livro tem suas urgências. “Damas da Lua”, segundo seu editor, representa um desafio não apenas para a Moinhos, mas para o próprio setor, que, freado pela pandemia, reduziu os lançamentos, justamente o que alimenta a cadeia. Reinventar-se, portanto, tornou-se palavra de ordem entre os diferentes agentes do universo literário. “Creio que muitos de nós aprenderam que o que fazíamos não era ainda o suficiente, como pensar numa programação on-line, criando eventos, leituras conjuntas, bate-papos, tudo isso a distância. Creio que, a partir de agora, os lançamentos pós-pandemia, quando possível, acontecerão presencialmente em um espaço físico, mas, ao mesmo tempo, on-line”, sugere Nathan, referindo-se a um alcance promovido pela internet – e experimentado nesses tempos – difícil de ser abandonado.
Poeta e editor da Macondo Edições, Otávio Campos concorda, mas garante que as livrarias físicas fechadas e a ausência dos eventos ainda afeta grande parte do faturamento. “Muitos livros se pagavam nos eventos de lançamento. Além da parte financeira, a circulação do livro fica um pouco prejudicada”, pontua ele, dizendo ter notado uma disposição maior das pessoas para a compra de títulos. “Tem pessoas diversificadas dispostas a comprar livros, acho que há uma abertura maior para conhecer o que está acontecendo. Mas não sei se isso muda o cenário.” Como programado, a Macondo seguiu fazendo lançamentos mensais mesmo durante a pandemia, compromisso firmado com os assinantes da editora. Ainda assim, o planejamento foi alterado, e a tiragem de alguns títulos, reduzida à metade, mesma estratégia utilizada pela Moinhos. “Nossa prioridade tem sido começar a encontrar maneiras de diminuir as tiragens e trabalhar com impressão sob demanda. Se um cliente precisa de um livro que não temos, por exemplo, vou rodar apenas um livro e esse livro vai chegar até ele. A questão aí é trabalhar o tempo de entrega e a qualidade do livro”, observa Nathan Matos.
Fundo prevê ajuda para cadeia
“Nem toda marca, nem toda livraria, editora ou autor consegue ficar tantos meses com um fluxo de caixa tão baixo. Muita gente vai sair de seus negócios, infelizmente.” Para a gerente de novos negócios da plataforma de crowdfunding Catarse, Raíssa Pena, trata-se de um risco real. Vencedora do Prêmio Publish News Jovens Talentos da Indústria do Livro em 2018, ela acompanha de dentro a campanha do fundo “+ Livros”, criada pela plataforma de financiamento coletivo para arrecadar recursos com marcas do mercado editorial e leitores. Até a tarde desta sexta, o fundo já reunia R$ 464.229,00 doados por 585 pessoas. O volume é pouco mais de 60% da meta de R$ 750 mil, cujo prazo para ser alcançada termina no dia 19 de agosto. “Com o valor de hoje, conseguimos atender 90 agentes do livro”, aponta Raíssa, referindo-se a um grupo composto por autores, editoras e livrarias, selecionados entre 689 inscritos. “É um número muito relevante em apenas duas semanas de edital aberto. Conseguimos inscrições de todas as regiões do Brasil, de 26 estados. Os três principais são um espelho populacional do país: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, sendo que Minas é o terceiro que mais se inscreveu e o terceiro que mais apoia o fundo. A maioria das inscrições, mais de 60%, é de escritores, depois editoras, em seguida livrarias”, descreve ela, defendendo que foram os autores os mais prejudicados com a pandemia. De acordo com a gerente de novos negócios do Catarse, os escritores informaram a maior queda de receita, o que agrava um quadro no qual os mesmos representam, na cadeia do livro, a menor receita anual, de até R$ 30 mil por ano.
“A pandemia foi uma lupa para mostrar problemas que já existiam”, comenta Raíssa Pena, citando a história de uma campanha de financiamento coletivo realizada com sucesso no ano passado para viabilizar a publicação de uma história em quadrinhos sobre a autoestima de pessoas obesas. “Quando um quadrinho sobre esse tema teria destaque numa grande livraria? Falar diretamente com o público não é luxo, mas o único jeito de vender”, garante, certa de que o momento reivindicou essa aproximação entre editor/autor e leitor. Segundo Raíssa, o público de crowdfunding seguiu apoiando projetos mesmo durante a pandemia. Um projeto de Juiz de Fora hospedado no Catarse confirma. Com mais 36 dias de campanha pela frente, o projeto para a publicação do livro “Suíte cemitério”, do editor e cronista da Tribuna Wendell Guiducci, já ultrapassou em 6% a meta de R$ 7 mil.
“Uma campanha é como se fosse uma pré-venda: você apoia com um valor e recebe o produto depois, em casa. É uma relação diferente de compra. Não é como entrar no e-commerce. Quando apoia um livro no crowdfunding, está apoiando aquela marca, aquele autor, conhece o processo. Os leitores ficam mais envolvidos”, defende Raíssa. Ulisses Belleigoli concorda e, assim, aposta no formato para viabilizar seu 12º livro, “O quase último Aum”, hospedado na plataforma Benfeitoria. Com quatro dias restantes, o projeto atingiu 85% de sua meta de R$ 17 mil para a impressão do primeiro livro da saga fantástica “Escritos para Etraz-Quaassa”. A publicação está garantida com os recursos já alcançados. A narrativa, iniciada em 2012, retrata o poder da linguagem na solução de conflitos. “Decidi que queria fazer isso para adolescentes, um público que eu queria atingir. A gente é muito convencido na adolescência de meios que não são pacíficos. Eu pensei essa saga, criando universos, vocabulários, sistemas, planetas e poderes, características da literatura fantástica, para dizer de outra possibilidade”, pontua.
O que pode o coletivo?
No ar atualmente na plataforma de financiamento coletivo Benfeitoria, estão campanhas para viabilizar projetos culturais e, também, auxiliar empresas de cultura abaladas pela pandemia. Dentre os projetos estão o de auxílio ao Centro Cultural Solar de Botafogo, no Rio de Janeiro; o de custeio dos salários e rescisões da equipe do Comuna, espaço fechado também na capital carioca; e o de “salvação” da rede Blooks de livrarias. “O financiamento coletivo vem crescendo”, aposta Ulisses. “As plataformas estão melhorando e, para as pequenas editoras, têm sido um caminho. Vender um produto antes de tê-lo é conhecido na nossa economia, como fazem as construtoras, e é uma solução para tentar fazer ações mais seguras”, observa o escritor, psicanalista, professor e sócio da produtora e editora Varanda, que teve sua agenda reformulada pela pandemia: um espetáculo teatral foi adiado, e lançamentos de livros, também. Previstos para este ano, os quatro primeiros títulos da Varanda estão garantidos. E seus lançamentos serão on-line, a princípio. Vencido o coronavírus, tudo será relançado presencialmente.
“As plataformas estão melhorando e, para as pequenas editoras, têm sido um caminho. Vender um produto antes de tê-lo é conhecido na nossa economia, como fazem as construtoras, e é uma solução para tentar fazer ações mais seguras”, defende Ulisses Belleigoli sobre financiamento coletivo
“Em momentos de crise, a criatividade aflora. Canais que estavam sendo subestimados, como o marketing de influência, o próprio crowdfunding, a conversão de catálogo impressos em audiobooks e e-books começam a aparecer como alternativas reais. A pandemia pode ter aguçado algumas marcas para experimentar nossas estratégias”, avalia a gerente de novos negócios do Catarse, Raíssa Pena. Segundo ela, não existe uma prevalência de apoio a autores independentes em comparação com editoras. Um exemplo é a editora Jambô, especializada em jogos de RPG, que ano passado arrecadou quase R$ 2 milhões para publicar a edição comemorativa de 20 anos de um de seus títulos. “O financiamento coletivo é um modelo de negócios que funciona para títulos específicos. A maioria de nossos clientes recorrentes, com cinco ou seis campanhas por ano, continuam publicando de maneira tradicional alguns títulos, e outros escolhem para o crowdfunding. É uma estratégia, não precisa substituir nenhuma outra via de financiamento”, explica.
“Em momentos de crise, a criatividade aflora. Canais que estavam sendo subestimados, como o marketing de influência, o próprio crowdfunding, a conversão de catálogo impressos em audiobooks e e-books começam a aparecer como alternativas reais”, afirma Raíssa Pena, gerente de novos negócios do Catarse
Ainda que não esteja entre as prioridades, o financiamento coletivo está no radar, garante Nathan Matos, editor da Moinhos. A urgência da cadeia do livro impõe a obrigatoriedade de encontrar caminhos entre autor e leitor. “Toda a cadeia do livro está na berlinda”, ressalta, para logo concluir: “Ao mesmo tempo, pode ter contribuído para que eles pensassem em cursos on-line, como tenho visto em maior quantidade sendo oferecida agora por algumas pessoas. Quanto ao favorecimento de criação, sem sombra de dúvidas. Verifiquemos o quanto a autopublicação cresceu nesse tempo de pandemia. Parece-me que está batendo recordes. Até quem não escrevia pode ter começado a escrever como uma válvula de escape para o momento.”