Enquanto as redes sociais parecem mobilizar multidões e encurtar distâncias, as teias sociais de pequenas comunidades parecem desertos inabitáveis. À distância existem influenciadores. Enquanto o país revela-se partido, a união não parece fazer mesmo força. Proa e popa deslocam-se mantendo o barco estático. Enquanto diversidade torna-se termo midiático, novos silenciamentos são forjados em fogo alto. A alteridade vale na condicional – para uns e não para outros, para longe e não para perto, para o que agrada e não para o coletivo. Sobra discurso e faltam mãos calejadas.
Carlos, nesse tempo sombrio, é o José que carrega no nome, antes do sobrenome Souza. “Ano passado, o rapaz que toma conta da praça sofreu um acidente de bicicleta, e a esposa dele ficou sem saber quem ia tomar conta disso daqui”, diz, apontando para o principal espaço de lazer do Bairro Santo Antônio, onde mora há 35 anos. “Se deixasse a ver navios, ia ficar abandonado. Então, peguei para cuidar. E no primeiro dia, vi o pessoal reclamando do piso.”
No dia seguinte, Carlos José começou a estudar uma reforma para o local. “No outro dia, fui conversar com os comerciantes, e todo mundo apoiou. Comprei e ganhei as tintas e pintei a quadra e a arquibancada. Dois meses depois, pintei o parque e tornei a pintar a quadra, que precisava de duas demãos. E assim ficou até hoje. Para esse ano, já tenho as latas guardadas e decidi mudar as cores”, acrescenta ele, que escolheu amarelo para as arquibancadas e azul e vermelho para a quadra.
Ao longo do dia, a quadra permanece aberta, no período da noite, se limita aos agendamentos de partidas amadoras. Bolas e redes, guardadas numa sala anexa à praça, são oferecidas aos que marcam e pagam por um horário no local cuidado por Carlos José, o Fiote para a comunidade, amigos e familiares. “Minha mãe, desde pequeno, me chamava de fiotinho”, explica a alcunha o leopoldinense de 39 anos, desde os 4 residindo em Juiz de Fora, no mesmo bairro.
Pelo direito à festa
“É preciso ter boa vontade para resolver as coisas”, adverte Carlos José, homem de agigantada humildade, organizador de festas e também responsável pela varrição de toda a praça do Santo Antônio. Fiote está entre as caixas de som e as vassouras. “Já fiz festas para nove mil pessoas. Renan e Cristiano, Banda Zagga e até a Onze:20, que nem era tão famosa, já passaram pela praça. O palco ficava atrás, e o contorno todo ficava fechado. Nesse tempo, surgiu o FestDance, um clube daqui, para onde eu trouxe David Bolado e outros cantores de funk. Era legal, mas dava muita confusão”, conta ele, que organizou a primeira festa em 2002 e a última em 2007, mesmo ano em que manteve as atividades na casa de shows do bairro. “Cresci vendo as festas do Gamal e o torneio leiteiro que existia aqui. Depois fui eu quem proporcionou isso às pessoas. Fiz festas com parquinhos, carrinho de batida e tudo. Mas, na última vez, houve um tiroteio perto, e alegaram que era na minha festa. Todas as festas que faço só acontecem com autorização da Prefeitura. A primeira medida que tomo é pegar as autorizações”, pontua ele, que há seis edições, em todo dia 12 de outubro, homenageia as crianças numa grande festa de rua. “Muitos adolescentes já estão decididos sobre o que vão fazer da vida. As crianças, não. Então, é preciso focar nelas”, comenta ele, que para esse ano pensa em seis camas elásticas, um tobogã e outros brinquedos, além de alimentos como cachorro-quente, bala, bombom.
Pelo direito à reescrita
“Sempre fui uma criança que gostava de unir as pessoas”, conta Carlos José, genuíno agregador que sempre se acostumou com as multidões. Em 2013, porém, conheceu a solidão. “Fiquei quatro meses internado. Passei por uma situação muito difícil na vida. Tive aquele problema com carne de porco (neurocisticercose), e custaram a descobrir. Quando entrei no hospital estava com suspeita de meningite e fiquei num quarto sozinho. Sofri muito. E aprendi muito também”, emociona-se. “Depois que saí do hospital passei a dar mais valor à minha vida. O que me faz bem é ver o outro se sentir bem. Se tem alguém precisando de uma cadeira de rodas, me esforço para conseguir. Sensibilizo as pessoas, e sempre tem alguém querendo ajudar”, conta ele, genuíno influenciador, que mobiliza pelas redes sociais sem se restringir a elas. Na vida real, na luta diária, acaba por conquistar cestas básicas, guarda-roupas e pequenos valores, como os cerca de R$ 50 doados por 90 comerciantes da região e da cidade para a realização da festa infantil de outubro.
Pelo direito à voz
Para a praça faltam, segundo Carlos José, “uma boa iluminação, boas calçadas, enfim, um acesso melhor”. Para Carlos José, segundo ele mesmo, falta-lhe o cargo de vereador, sonho despertado quando, na última eleição, sua primeira tentativa, arrebanhou 1.460 votos, o 43º candidato mais votado da cidade, dentre os 401 postulantes. “Só fui candidato porque a comunidade pediu. Faço o que faço pelo bairro por gostar, sem intenção de ser alguma coisa. Faço para agradar a Deus, porque saí de uma cama de hospital depois de ter sido dado como morto”, diz ele, atualmente um dos candidatos à presidência da associação de moradores. “Posso não ter estudado, mas tem tantos políticos com ensino total e, ainda assim, roubam do povo. Eu não, quero trabalhar para as pessoas”, defende, enquanto passa um comerciante ao lado e comenta: “Rapaz, você está entrevistando o cara mais popular e mais humilde do Bairro Santo Antônio!”. Fiote sorri, vaidoso. Um influenciador da vida real. “É isso o que mais me motiva a trabalhar para comunidade.”
Pelo direito à batalha honesta
Na casa de Carlos José, cada um de seus três irmãos teve um pai e foi criado de maneira diferente. “Não conheci o meu, mas considerava como meu pai o meu avô. Hoje moramos eu, minha mãe, o namorado dela e minha irmã”, conta ele, que cursou até a oitava série na Escola Municipal Dante Jaime Brochado, cujo acesso é feito pela praça, onde facilmente encontram-se jovens uniformizados brincando ou conversando. O tempo para a brincadeira, recorda-se, foi pouco na juventude. Muito cedo, precisou trabalhar. “Fui faxineiro da Academia Olympia por 12 anos, e só saí quando foi vendida. Dali fui para o Apogeu, mas não me adaptei ao horário. Fui fazendo faxina e trabalhei com política. Foi então que consegui o emprego na Cacau Show”, diz. “Fiquei lá por seis anos. Trabalhar na Cacau Show era um sonho. Nunca imaginei ser vendedor. Saí agora, em fevereiro. Minha patroa foi muito importante na minha vida, acreditando em mim”, afirma ele, dizendo do entusiasmo que exige o comércio de chocolates. “É preciso sorrir.”