Site icon Tribuna de Minas

‘Laranja Mecânica’ chega aos 50 anos refletindo o mundo atual

PUBLICIDADE

via GIPHY
Distopia é a palavra que entrou no vocabulário de muita gente nos últimos anos, principalmente por conta do avanço da extrema-direita pelo mundo. E tome referências a livros como “1984” e outras obras literárias que recentemente foram adaptadas para o audiovisual, casos de “O conto da aia”, “Fahrenheit 451” e “O homem do castelo alto”. Dentro desse universo de distopias, um filme completa 50 anos em 2021 e pode, sim, entrar no rol de obras que ajudam a entender o nosso tempo: a adaptação de “Laranja Mecânica” dirigida por Stanley Kubrick.
Apesar de ter chegado ao grande circuito apenas em 1972, a estreia oficial do filme se deu em dezembro de 1971, na Inglaterra, e na época provocou muita polêmica por conta das chocantes cenas de violência, incluindo estupro e assassinato. A adaptação para o livro do britânico Anthony Burgess, publicado originalmente em 1962, foi censurada e banida em muitos países – incluindo o Brasil da ditadura militar -, mas hoje é celebrada como um dos grandes filmes do cineasta norte-americano, estudada por pesquisadores das mais diferentes áreas.
“Laranja Mecânica” provavelmente não deve provocar o mesmo choque de outrora, principalmente entre as gerações mais jovens, pois a realidade suplantou a ficção. Porém, a história de Alex DeLarge e sua gangue de drugues segue relevante nos dias atuais, ainda que não seja tão lembrada quanto as histórias marcadas por regimes escancaradamente autoritários e totalitários. É o que analisam o professor da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador bolsista do CNPq Rodrigo Carreiro e o responsável pela mais recente tradução do livro no Brasil, publicada em 2004, o jornalista e escritor Fábio Fernandes.

Malcolm McDowell interpretou perto aos 27 anos o desajustado Alex DeLarge, que no livro era um adolescente (Fotos: Divulgação)

Totalitarismo, liberdade de expressão, vigilância, controle social estão entre os grandes temas das ficções científicas mais importantes do século XX, e também se encontram tanto no livro quanto no filme”, aponta Carreiro, sublinhando que “Laranja Mecânica” não goza do mesmo prestígio que outras obras atualmente no que diz respeito a esse debate, talvez “por ter sido tão discutido e analisado nas décadas de 1970 e 1980, principalmente.” Para Fábio Fernandes, trata-se de uma distopia autoritária e totalitarista. “Acho que a questão da violência policial, do Estado, é a grande preponderante em ‘Laranja Mecânica’ e a grande correlação que a gente pode fazer com o mundo atual.”

PUBLICIDADE

Top 3
Fábio coloca “Laranja Mecânica” como uma das três distopias mais importantes do século passado, ao lado de “1984” e “Admirável mundo novo”, ainda que considere, para nossos tempos, “O conto da aia” e “Fahrenheit 451” “mais atuais”. “Literariamente, os livros do (Aldous) Huxley, do (George) Orwell e do (Anthony) Burgess reinaram absolutos durante muitas décadas como exemplos de um mundo futuro muito distorcido, diferente da direção que a gente imaginava que estava tomando. Agora que estamos vivendo num mundo que poderíamos chamar de distópico, estamos pegando as distopias que mais prejudicam as pessoas, que têm uma coisa mais violenta. ‘O admirável mundo novo’, por exemplo, que acabei de traduzir para a Editora Globo e deve estar nas livrarias até o final do semestre, teoricamente deve ser o mais light, mas quando você vai ler o livro, ele nos diz muito sobre a sociedade que decidimos escolher, mesmo que os outros sejam mais explícitos no sofrimento.”

Longa de Stanley Kubrick adaptou o livro de Anthony Burgess sobre jovens adeptos da ultraviolência

Ele ressalta, todavia, que distopia é um subgênero da ficção científica, algo que muitas vezes não é lembrado e acaba por provocar desencontros. “‘Laranja Mecânica’ tem ligações (com o subgênero), claro, mas nós temos que tomar muito cuidado porque o Burgess colocou a violência da classe média branca (na história). Pouco depois que a nova tradução do livro foi lançada, fui abordado por uma diretora de teatro que queria fazer um musical baseado no livro, e achei um barato. Mas então ela disse que queria adaptar para o mundo de hoje e colocar uma gangue de rappers _ detalhe, a produtora era branca. Aí falei que poderia ser preconceituoso”, lembra. “E não é o que o Burgess faz. Ele coloca o seguinte: ‘olha, tem uma ultraviolência acontecendo’, e tira a família tradicional americana, britânica e brasileira _ de certa maneira – daquela questão do ‘comercial de margarina’ e mostra que a violência está presente em todos nós.”

PUBLICIDADE

Para entender nosso mundo

Tempos atrás, discutia-se a questão se as visões muitas vezes negativas do futuro encontradas na literatura, no cinema, poderiam de fato se tornar realidade, e agora sabemos que isso é verdade. Para Rodrigo, “Laranja Mecânica” é uma das obras mais relevantes nesse quesito. “Ele mostra como nossa sociedade – como diria Michel Foucault – ruma cada vez mais em direção à sociedade que ele chamou de ‘sociedade de controle‘”, analisa. “É nesse momento que as questões do autoritarismo e totalitarismo voltam a aparecer nas grandes narrativas do século XX. Acredito que os grandes artistas do século passado tinham essa percepção de que a sociedade estava sempre procurando novos mecanismos de controle, em especial os governos. Esses mecanismos, em alguns filmes, se aproximam mais da realidade que a gente tem, mas por outro lado, muitas vezes eles aparecem na ficção com aspectos um pouco diferentes do que tem acontecido.”
O acadêmico cita como exemplo o Grande Irmão de “1984”. “Ele tem grandes semelhanças com a internet e a forma como as redes sociais, o Google e as grandes corporações tecnológicas dominam de certa forma, através da informação, o mundo, a sociedade. Esses filmes e séries de ficção científica nos permitem, muitas vezes, concretizar, discutir e analisar a realidade atual. Se a gente conseguir traçar esses paralelos entre o que a gente vê hoje e o que os artistas do passado pensavam sobre o que aconteceria, a gente vê como eles são relevantes para pensar o presente, e não o futuro.”
Fábio Fernandes, porém, tem opinião diferente. “Não tenho certeza se o filme é tão relevante (nesse ponto). A impressão que tenho é que as novas gerações não curtem muito esses filmes mais antigos. Posso estar falando do ponto de vista de um cara de mais idade, tenho 54 anos, mas o pessoal atualmente busca uma representatividade – que eu acho maravilhosa – que esse filme não tem, pois ele coloca gente branca, de classe média e cis hétero. E é interessante que a gente veja filme e livro como retratos de uma época, que na verdade podemos fazer uma relação com os Proud Boys americanos, com o pessoal fascista e nazista que são todos brancos cis héteros, aparentemente”, diz.

Assim como o livro, longa é crítica à tentativa de controle social do Estado por meios violentos

Mas será que é distopia?

Fábio Fernandes não gosta do uso da palavra “distopia” em relação à história de “Laranja Mecânica”, entre outros motivos porque o próprio autor do livro nunca a usou. “Todos esses livros (citados) retratam distopias, claro, mas quando você fica focando muito na palavra ‘distopia’, acho que se esquece de outras coisas na história. O Burgess coloca coisas que hoje em dia passam batidas”, diz, dando como exemplo o primeiro satélite de comunicações, o Telstar, que na época tinha acabado de ser lançado no espaço.
“Ele já coloca ali uma transmissão de um cantor pop para o mundo, coisa que ia acontecer em alguns anos. Ele não estava sendo um profeta, só sabia que aquilo ia acontecer. Ele visualizava o mundo de ‘Laranja Mecânica’ para meados ou final da década de 1980. Ele não via um futuro distante, acreditava que dali a 20 anos aquilo iria acontecer, e de fato, de certa forma, aconteceu. Não essas brigas de gangues específicas, que eram baseadas nos mods e rockers, mas a globalização. Ele brinca com a questão do anglo-russo, como se o mundo estivesse unificado, mas também unificado nessa mediocridade e violência, e hoje em dia acho que o principal elemento distópico – e que não está muito presente no livro – é a questão do capitalismo. É o capital que proporciona (no livro e filme) essa suposta junção entre Estados Unidos e União Soviética, não é uma amizade.”
Para o jornalista e escritor, é esse mesmo capital que – a exemplo do mundo real – exige que a polícia seja cada vez mais um órgão de repressão para proteger os “homens do capital“, e não as pessoas. “Pode ser uma análise marxista minha, mas o próprio Burgess já falou sobre isso em várias entrevistas. Não se referiu especificamente à questão do capital, mas acreditava que essas coisas faziam mais mal que bem. Por isso o livro é considerado um dos precursores do ciberpunk, que é uma espécie de distopia sobre o declínio da sociedade através do hipercapitalismo.”

PUBLICIDADE
Lançado no final de 1971, “Laranja Mecânica” chocou o público da época pelas cenas de violência, inclusive sexual

Menos chocante que a realidade

Voltando à questão da violência apresentada no longa, Fábio acredita que ela tenha se tornado datada, ainda que siga elogiando a adaptação feita por Stanley Kubrick no geral. “Só a coisa de você usar atores mais velhos – no livro, o Alex DeLarge tinha 14 para 15 anos, e no filme o Malcolm McDowell estava perto dos 30 – talvez não choque tanto, ou talvez seja chocante mas não nos deixe tanto com pena do Alex, porque você lê a primeira parte do livro e ele diz na última frase ‘eu tenho apenas 15 anos’; você fica chocado”, pontua.
Ao mesmo tempo, ele lembra que o público atual pode estar entorpecido pela violência diária, panorama bem diferente do que havia décadas atrás. “Isso chocava nos anos 60. As cenas de violência e sexo do filme do Kubrick são mais estilizadas, têm que ter um alerta de gatilho para estupro e violência, já um filme como ‘Irreversível’ (de Gaspar Noé) não consegui assistir até o final. Nesse ponto, o filme do Kubrick não é tão realista, até o enquadramento das cenas é mais para dar uma sensação de sonho ou pesadelo, e hoje em dia nós conseguimos ver esse filme sem muito incômodo.”
Rodrigo Carreiro concorda e acredita que, nesse ponto, talvez o filme não choque mais. “Se pensarmos um pouco em filmes que temos visto no próprio século XXI, como o torture porn de ‘O albergue’, os filmes do extremo realismo francês como ‘Mártires’, eles fotografam a violência de uma forma extremamente gráfica e realista, de uma maneira que seria impensável na época em que ‘Laranja Mecânica’ foi produzido, até mesmo por questões de censura que existiam na época. Mas, se o espectador assistir ao filme sabendo o contexto da produção na época, ele ainda é capaz de chocar.”

Gangue de jovens psicopatas ultraviolentos em uma das cenas célebres do filme

Sem ver ‘a cara do Malcolm McDowell’

Fábio Fernandes foi o responsável pela segunda tradução de “Laranja Mecânica” para o Brasil; a primeira, de acordo com ele, foi feita nos anos 1970 por Nelson Dantas. O final do longa-metragem, entretanto, ignora o último capítulo do livro – que foi cortado da primeira edição norte-americana, utilizada como base por Stanley Kubrick na hora de fazer seu filme e que daria um desfecho radicalmente diferente. “Isso até hoje é controverso”, observas Fábio. “O Burgess alegava que o Kubrick sabia do último capítulo, mas não se interessou. E o Burgess nunca o perdoou por isso: anos depois, ele fez a versão musical para os palcos britânicos, e, na hora da agressão ao professor, acho, ele fez questão – e isso está nos apontamentos da peça – que o ator tinha que parecer com o Kubrick para tomar umas porradas do Alex e sua gangue. A parte da idade já tinha mudado, e no final, quando mostra o sorriso maligno do Alex, tipo ‘eu não mudei’, ele subverte o livro. Como filme funciona muito bem, o final é assustador, você percebe que ele vai continuar violento. O livro não tem esse impacto cinematográfico no final, mas acho que o desfecho do livro do Burgess daria um bom filme hoje.”
Rodrigo Carreiro lembra que Stanley Kubrick tem um histórico de promover dissonâncias entre a visão do autor do livro e o cineasta, citando “O iluminado”, rodado anos depois, considerado um clássico da sétima arte mas que desagradou a Stephen King, autor do livro. “Kubrick fez algumas alterações que desagradaram ao Anthony Burgess, principalmente a supressão do último capítulo, que trata do destino do Alex de uma forma mais positiva, vamos dizer assim. Burgess achou que o filme, de certa forma, estimulava o sexo e a violência como mecanismos sociais de controle. Acredito que nem tenha sido a intenção de Kubrick, mas isso demarcou uma diferença essencial entre livro e filme, sem esquecer a questão da idade dos delinquentes, que talvez tenha suavizado o impacto que o livro pretendia ter sobre a sociedade. Mas acredito que, de um modo geral, o filme trata o livro com bastante reverência e respeito.”

PUBLICIDADE
Pôster do filme lançado em 1971, proibido para menores de 18 anos

Vinho ou vinagre?

Por fim, uma pergunta se faz necessária para a efeméride – ou melhor, duas: Qual a importância de “Laranja Mecânica”, 50 anos depois, para a história do cinema? É uma produção que “envelheceu” bem, como os melhores vinhos, ou virou vinagre? Fábio Fernandes diz que o longa está longe de ser um de seus filmes favoritos, reconhece sua importância, mas acredita que não “envelheceu” bem. “Não assisti nem meia dúzia de vezes. Eu sou fã do livro, e não do filme, mas, como cinéfilo, digo que ‘Laranja Mecânica’ foi importante para a história do cinema. Não acho que envelheceu bem, a realidade atropelou o filme; a ultraviolência dela ainda é forte, mas a de hoje, tanto a das gangues quanto a da polícia, é maior”, diz.
“Tem a importância por ser do Kubrick, um de seus cinco melhores filmes, e por muito tempo ter sido considerada (uma obra) ‘maldita’, tanto que a censura militar proibiu esse filme. Só fui assistir de 1984 para 1985, com a versão com bolinhas pretas, que são hilárias. Mesmo que tenha dito que não envelheceu tão bem, é um filme fascinante de ver. Só de falar contigo já me deu vontade de ver de novo (risos), mas não assistiria todos os anos. E talvez tenha sido a primeira vez num filme considerado de grande estúdio que houve a audácia de colocar temas tão fortes para a época, como a ultraviolência e o sexo. Hoje, infelizmente, a realidade ultrapassou, e esse filme só dá para ser assistido se você pensar que é uma produção de sua época”, argumenta. “Acho que o ‘Laranja…’ tem que ser visto e lido para que todos possam discutir como aquela sociedade do livro e do filme chegou àquele ponto, que na verdade que é o ponto em que nossa sociedade chegou há algum tempo, e o que poderíamos fazer, talvez, para que a sociedade mudasse sua maneira de agir com relação à violência de gangues, da polícia e do capital.”

Marcas do tempo

Rodrigo Carreiro segue outra linha de avaliação. “O filme envelheceu bem, mas, como todo filme, tem as marcas de seu tempo impressas na tela. É impossível para um artista fugir disso. Mesmo que esteja tentando retratar o que vai acontecer no futuro, ele não tem como se desgarrar totalmente do presente”, opina. “Muitas vezes, o artista está falando do futuro ou das percepções que ele tem do futuro, através de uma aparência e roupagem que estão ligadas ao presente dele. Nesse aspecto audiovisual, tecnológico até, ‘Laranja Mecânica’ ainda tem uma ressonância muito grande com a cultura dos anos 60 e 70, o que não tira dele a importância enorme que tem para a história do cinema, em especial por se tratar de um filme realizado por um dos maiores diretores que já existiu. O projeto de cinema de Kubrick sempre foi extremamente ambicioso, ele sempre tratou de diferentes gêneros dentro da cinematografia dele, e acho que ele conseguiu retratar essa questão do controle social também de uma forma condizente com o tamanho da ambição que ele tinha em ‘Laranja Mecânica'”.

via GIPHY

Exit mobile version