Quando Caetano Veloso apresentou “Tecnomacumba”, dizia das ricas combinações, da impecável e afinada voz de Rita Benneditto e antevia “um futuro intrigante” para um disco que tinha muito mais a dizer. Era 2006, e o projeto já somava três anos de estrada quando ganhou o formato de disco. Passados 15 anos desde sua criação, o futuro, enfim, chegou. E intrigante tornou-se a coerência nunca perdida de um trabalho permanentemente urgente. Em dias de intolerância religiosa, de racismo despudorado, de opressão travestida de liberdade de expressão, a cantora cuja estreia fonográfica se deu em 1997 aponta para as raízes como oportunidade para refletir sobre os frutos podres do presente. “É a ancestralidade que mantém a nossa história viva”, afirma Rita em entrevista, por telefone, à Tribuna.
Cantando as forças do mar e da mata, Rita reúne em sua macumba tecnológica Dorival Caymmi, Jorge Ben, Caetano Veloso e pontos de umbanda. Não fala de uma crença, apenas, mas sobre acreditar, sobretudo. Em “Encanto”, seu mais recente trabalho, tomou de Roberto e Erasmo sua compreensão acerca da força que suplanta o discurso religioso, a fé que “aponta o meu caminho/ é forte no meu peito”. Fé que não se descola da cultura popular que a maranhense radicada no Rio de Janeiro exalta em todos os seus trabalhos. “Tenho saudade da minha terra, do vento da minha terra, da comida da minha terra, da casa da minha mãe, de ver meu povo, dos mestres do Bumba meu Boi, do tambor de crioula, dos rios, do mar morno e marrom”, conta a mulher de voz límpida e interpretação potente. “Ela é juremê/ Ela é juremá”, canta em “Filha de Tupinambá”.
Identificada com seu Nordeste e, principalmente, com um Brasil profundo – de “pé no chão”, segundo ela -, a cantora faz um retrato do que a constitui e do que forma um povo. “Procuro ir ao Maranhão sempre que posso. Culturalmente, estou ligada, até porque tem uma galera jovem resistindo muito lá, que é de onde tiro minhas referências e minha força”, confirma a artista, que participa do show do grupo de tambor mineiro Ingoma nesta quarta-feira (7), às 19h30, na Praça Antônio Carlos. “A música é a religião de Rita Benneditto. É para a música que Rita Benneditto bate cabeça!”, defende o crítico musical Mauro Ferreira sobre uma artista que canta como a rainha do mar. “O canto dela faz admirar.”
Tribuna – Em 2018, o projeto “Tecnomacumba” completa 15 anos. O que ele representa em sua estrada?
Rita Benneditto – Esse projeto foi muito além das minhas expectativas, que já eram muito grandes. O que era para ser um mês de show em 2003 acabou virando 15 anos de um projeto com DVD, CD e um período grande de temporadas. Foi um divisor de águas no meu trabalho. Considero um presente do universo, dos deuses e deusas da matriz africana. Vinha alimentando essa história desde o meu primeiro disco, quando gravei “Jurema” em 1997, e me perguntaram que fusão era aquela que eu estava fazendo, de batida eletrônica com os tambores de terreiro. Para explicar o processo, criei essa terminologia, tecnomacumba, mais de tecnologia do que de techno music – o gênero. No meu segundo disco, gravei outras músicas e, quando estava num hiato de gravadoras, resolvi botar esse projeto na estrada.
O que há de você em “Tecnomacumba”?
Sou cria de terreiros, não só religiosos como de rua. Minha formação é na cultura popular. Sou de uma região onde ela é muito forte, apesar de estar bem fora do eixo Pernambuco – Bahia. Considero, na tríade do Nordeste, Maranhão, Bahia e Pernambuco o triângulo da África, da cultura afro-ameríndia. O Maranhão tem uma riqueza cultural que não dá para dimensionar. Tive poucas condições de estudos acadêmicos – na época da minha juventude não tinha universidade de música, hoje já tem, e a escola de música não funcionava direito porque o governo não investia. E a gente que era artista acabava virando autodidata e ia buscar as fontes naturais, da cultura feita na rua, da tradição oral. Eu vivia nos terreiros de tambor de mina, terecô, umbanda, tambor de crioula, lelê e cacuriá. Participei de um grupo de dança, durante muitos anos, que tinha essas manifestações. Como dizia Itamar Assumpção, que fez até uma música para mim: “Tá na cara que tá no sangue”.
Chegar à expressão da macumba tecnológica foi um processo?
Virei cantora eclética, ampliando bastante o leque de gêneros. Canto balada, reggae, com uma diversidade grande, sempre com brasilidade. Minha figura no palco sempre passou a ideia da guerreira, forte, híbrida. Quando cheguei em “Tecnomacumba”, já tinha criado uma entidade chamada cabocla Jurema, cabocla intergaláctica, figura transcendental. A África foi me puxando. E a África é nossa. É uma questão de manter a tradição e valorizar o que é nosso e verdadeiro.
“Não virei uma cantora macumbeira, como muita gente quis me colocar. Sou uma cantora de várias áreas, posso cantar o que me permitir cantar”
Considera a defesa da ancestralidade como eixo central de “Tecnomacumba”?
Em “Tecnomacumba” assumi toda a estrutura de formação do povo brasileiro, a influência do negro, da África, do índio, sem desmerecer nenhuma influência do povo branco, do europeu colonizador. Com esse projeto afirmei a figura da cabocla Jurema, não só no sentido religioso, mas também no sentido da árvore do Juremê, da planta matriz reverenciada nos cultos do candomblé e dos juremês (em tribos indígenas). “Tecnomacumba” é uma intervenção cultural, um manifesto de brasilidade. As pessoas achavam que eu estava colocando minha carreira em risco, que estava indo para um caminho perigoso por ser muito religioso. Mas as pessoas são muito hipócritas a respeito da própria identidade. É tão rico tudo o que a gente tem, toda a influência que a cultura ameríndia tem sobre nós, que é muito ridículo, nos tempos de hoje, ter que ficar afirmando e tentando provar o que é nosso, que está no nosso sangue. O que a gente come, veste, bebe e fala tem toda uma influência de culturas que nos formaram. E isso é algo de que temos que nos orgulhar. O grande problema do povo brasileiro é a falta de autoestima, da ausência de afirmação de quem somos. Por isso estamos à mercê de governos corruptos e manipuladores. Um povo sem cultura é um povo sem identidade e sem futuro. É a ancestralidade que mantém a nossa história viva.
Essa consciência surgiu em casa?
Fui criada com a consciência de que sou formada por povos que, mesmo tendo sido colonizados, como os índios, e escravizados, como os africanos, nos deram uma riqueza que perdura por resistência e coragem. O índios mantêm-se, em algumas aldeias, lutando pela demarcação de suas terras. O negro mantém-se até hoje em muitos quilombos apesar de toda a opressão. Para mim é fundamental ter a consciência de quem sou. E sem querer levantar bandeira ou ser porta-voz de nada por pretensão e arrogância.
“O que a gente come, veste, bebe e fala tem toda uma influência de culturas que nos formaram. E isso é algo de que temos que nos orgulhar. O grande problema do povo brasileiro é a falta de autoestima, da ausência de afirmação de quem somos. Por isso estamos à mercê de governos corruptos e manipuladores”
Como enxerga o atual momento, que, como há 15 anos, ainda exige afirmações e enfrentamentos?
Em pleno século da informação e da tecnologia, retrocedemos nas questões mais básicas e estruturais do pensamento. Por vezes me sinto tão impotente diante de tudo. Há uma confusão sobre religiosidade e a questão da fé. Quando lancei meu recente disco, “Encanto”, disse que as pessoas confundiram tudo. A fé faz parte do ser humano e não está ligada à religiosidade ou a dogmas. Por conta disso (da confusão acerca do que á fé), as pessoas começaram a se fechar numa falsidade. Elas começaram a achar que tudo que não faz parte do universo que acreditam é perigoso. Falo especificamente em relação ao fundamentalismo religioso instalado hoje no Brasil, que toma conta não só dos altares de igrejas, mas, principalmente, dos plenários, das leis. Temos um prefeito no Rio de Janeiro, o (Marcelo) Crivella, que não respeita a identidade do povo carioca, a tradição da cultura popular e fica de uma forma camuflada tentando interromper todo o processo de criatividade das pessoas. Essa é a pior forma de manipulação que pode existir. O que está aí (na política) não é representativo do povo. É uma vergonha.
Percebe um crescimento do conservadorismo na cultura?
Esse retrocesso se reflete diretamente na cultura. É a associação do jongo que está sendo prejudicada por falta de investimento. É o carnaval que não recebe verba. É a Feira de São Cristóvão que não teve renovado seu contrato para continuar sendo realizada. E tantas outros (casos). E não se trata de preconceito com relação às pessoas que optaram por seguir a religião evangélica. Tenho irmão pastor na Paraíba, mas acho que cada um deve fazer sua religiosidade dentro de seu espaço. Faça sua festa de candomblé no seu terreiro. Reze sua missa na igreja. Antes de existirem os governos, existiam as manifestações, os núcleos nos bairros, as comunidades fazendo suas festas, bordando suas fantasias, preparando o Bumba meu Boi. Temos que fazer nossa parte. Tenho que continuar acreditando que “Tecnomacumba” é um projeto de resistência, de preservação e reverência à cultura brasileira. O jongo tem que continuar na rua. O Bumba meu Boi, no Maranhão, tem que continuar troando na rua. O carnaval tem que continuar desfilando nas ruas do Rio de Janeiro. Viemos de cem anos de escravidão, 20 anos de ditadura e tantos e tantos anos de opressão e miséria. Vamos resistir. Um palco é um palanque, e um artista é um militante.
Considera “Encanto” uma síntese de sua trajetória, capaz de reunir os tons dos discos anteriores e mostrar uma Rita plural?
Quando fiz “Encanto”, pensei na figura mítica da cabocla Jurema, que vai atirar a flecha e abrir o leque dela para vários pontos. Tem a força do “Tecnomacumba”, porque canto aquele universo místico e religioso, mas abro para outras vertentes, para dar um panorama do que sou. Não virei uma cantora macumbeira, como muita gente quis me colocar. Sou uma cantora de várias áreas, posso cantar o que me permitir cantar. Essa consciência e tranquilidade para lidar foi a maturidade que me deu. Agora estou fazendo um trabalho paralelo, “Suburbano coração”, convidando o maestro Jaime Além, que trabalhou com Maria Bethânia durante 25 anos. É um show de voz e violões, com um universo e uma abordagem diferentes. Sou uma artista, uma intérprete, posso passear pelas possibilidades sem eliminar nada. Tudo faz parte de mim. O importante é que minha expressão e minha intenção estejam vivas e claras.
“O reflexo desse governo que temos só pode gerar uma música chamada sofrência, com todo o respeito aos meus companheiros de música sertaneja, brega, mas viramos refém da sofrência na política e na cultura”
Sua parceria com a cantora Jussara Silveira, que rendeu o disco “Som e fúria”, ainda pode gerar mais frutos?
Hoje as coisas são mais difíceis de viabilizar. Depois de dois anos de lançado o disco “Som e fúria”, conseguimos fazer os shows agora no final de 2017. O disco foi gravado no Capão, na Chapada Diamantina, no meio do mato, todo elaborado e sem compromisso com o (caráter) mercadológico. Queríamos produzir uma obra de arte, algo que ficasse para o tempo. Odeio ter que dizer isso, mas fechar um show está difícil. Até artistas de grande nome estão tendo que fazer circuito de empresas como o Sesc, que geralmente não faziam. Complicou para a cultura. Não há investimento. O reflexo desse governo que temos só pode gerar uma música chamada sofrência, com todo o respeito aos meus companheiros de música sertaneja, brega, mas viramos refém da sofrência na política e na cultura.
INGOMA + RITA BENNEDITTO
Nesta quarta-feira (7), às 19h30, na Praça Antônio Carlos (Avenida Getúlio Vargas 200 – Centro)
Rita Benneditto participa de show do grupo de tambor Ingoma, resgatando seu “Tecnomacumba”, projeto que completa 15 anos em 2018
Aos 51, Rita Benneditto comemora 20 anos de sua estreia fonográfica, na qual acena para uma trajetória entrelaçada à cultura popular, o que lhe garantiu uma legião de fãs e o título de uma das cantoras mais originais do país