Quais histórias guarda um carro perdido num pátio de um ferro-velho, corroído pelos bichos e pelo tempo? Quem dirigiu o veículo? Quem andou no banco do carona? Para onde foi o automóvel? Andou muito ou pouco? O que aconteceu para que tenha chegado ali? Vistos de longe, os ferros-velhos são apenas amontoados de degradação, mas basta se aproximar para que se transforme num emaranhado de histórias silenciadas. Ao voltar a lente de sua câmera para esses espaços, o artista visual Pury cria um memorial dessas narrativas não-contadas, em imagens sensíveis e, também, belas. Em cartaz no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas até o próximo dia 13, a mostra “Pury e os automóveis mortos” amplia a produção já bastante múltipla de seu autor, reforçando seu interesse por construções harmônicas.
“Venho ruminando isso há muito tempo. São viagens que faço e, quando passo num ferro-velho, vou registrando. Em 2000 resolvi fotografar e fui olhando, catando fotos. Passava, via mais e registrava. Até que completei um ciclo de ferros-velhos”, conta o homem, que documentou ambientes de Juiz de Fora, Leopoldina, Muriaé e Petrópolis. “Eles já acabaram. Por um deles tive adoração. O principal ficava entre Juiz de Fora e Leopoldina. Era aquele ferro-velho com produtos de apreensões. Tem algumas fotos que inclusive têm a numeração dos carros. Hoje nesse lugar funciona um pesque-pague”, ri o artista, que apresenta a série em Juiz de Fora após ela já ter passado por Tiradentes e Mariana, em Minas Gerais.
Ainda que retrate o presente, o artista versa sobre memória em sua série de imagens em preto e branco, com exceção da imagem saturada de um Fusca laranja sob um céu rosa. “Os carros são objetos de desejo de todo mundo, dos milionários e de gente comum. Na mostra tem muitos Fuscas, Kombis, Caravans. São quase todos carros antigos”, observa Pury, que para o documentarista e produtor Carlos Moura, em texto de apresentação, tem sua melhor produção fotográfica reunida. “Um artista capaz de transitar da pintura às assemblages, com o toque do talento escancarado em tudo que coloca os olhos e as mãos”, destaca, para em seguida concluir: “Os veículos e suas latarias, arruelas, parafusos e borrachas estão aí, belos e mortos, livres de retíficas ou de lanternagens. Pury, o fotógrafo, é o artífice que dá vida à decadência deles.”
Olhar inquieto
São mais de meio século com uma câmera na mão. “Sou da fotografia desde 1968. Só em 1973 é que fiz a primeira exposição de fotografias, em Cataguases (sua terra natal). Já fiz exposição fotográfica em São Paulo, em cidades de Minas Gerais e aqui em Juiz de Fora também. Sou artista plástico, mas a fotografia faz parte do meu olhar. Tenho um olhar inquieto. Se você for no meu ateliê te garanto que vai tanta coisa diferente que vai dizer nunca ter visto uma pessoa tão eclética. Tem abstração, escultura de ferro, de madeira, oratórios. E tudo isso sou eu”, pontua Pury, transitando entre suportes, linguagens e estilos. “É o desejo de produzir. Trabalho todos os dias, até sábado e domingos. Sem me interessar em vender. Sou aposentado, e meu negócio é produzir, pura inquietude”, acrescenta ele, que por 25 anos coordenou a oficina terapêutica de artes do Centro de Atenção Psicossocial (Caps), em Juiz de Fora, onde vive há mais de três décadas.
Ao mesmo tempo que aponta para um dos interesses de Pury, a série de fotografias também ajuda a compreender a produção do artista. Segundo ele, muitas das formas registradas pelas câmeras aparecem em outras produções, principalmente nas esculturas e nas colagens. “Essa exposição é pura escultura”, sintetiza ele, que numa instalação pendura dezenas de câmeras digitais indicando a obsolescência como um estado próprio da atualidade. Doadas por um homem que conserta esses equipamentos, as câmeras perecem como os carros. Autor também de títulos que ampliam as próprias obras, Pury deu à criação o nome de “Morte das digitais ou herança dos celulares”, propondo, assim, debates mais complexos, sobre vida e morte, estar e não estar, início e fim.
PURY E OS AUTOMÓVEIS MORTOS
Visitação de terça a sexta-feira, das 9h às 21h, e aos sábados e domingos, das 10h às 18h, no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (Avenida Getúlio Vargas 200 – Centro). Até 14 de outubro