Site icon Tribuna de Minas

Como funciona a lei de transferência de potencial construtivo

PUBLICIDADE
Lei mostra como bens tombados, a exemplo do Cine-Theatro Central, poderiam atingir a altura dos prédios vizinhos. (Foto: Fernando Priamo/arquivo tribuna)

Entre o drama e a tragédia reside a ação. Enquanto a primeira diz da possibilidade de interferência, a segunda retrata o imponderável. Quando um testemunho carece de conservação, o tombamento torna-se o mecanismo possível. Por sua vez, quando a conservação de um bem torna-se um imperativo, tratá-lo em sua potência torna-se um meio de não deixar que o drama se transforme em tragédia. Passados 19 anos, uma lei municipal foi revogada sem nunca ter sido acionada. Em seu lugar, a Lei Complementar n.º 065, de 25 de julho de 2017, propõe observar a potência de imóveis tombados na cidade, cujo direito de construir foi impedido desde que seus tombamentos fizeram-se realidade. Drama de uns. Tragédia de outros.

“Em tese, o tombamento de um bem é uma premiação por aquele bem ter sobrevivido ao tempo, tornando-se representante de uma história. Mas a questão econômica pesa sobremaneira”, critica o arquiteto e professor do departamento de história da UFJF Marcos Olender, testemunha do empenho do colega Jorge Arbach para com a questão patrimonial, tão cara aos dois. Há sete anos, o arquiteto e artista gráfico Jorge Arbach, além de professor convidado da Faculdade de Arquitetura da UFJF, guardou seus lápis e pincéis para retratar o tombamento em Juiz de Fora com outras tintas.

PUBLICIDADE

“Passei a ficar incomodado, porque ao mesmo tempo em que me deleitava com esse trabalho que ligava artes gráficas e patrimônio, convivia com a divisão patrimonial, percebia que havia um drama paralelo acontecendo. Hoje o que prepondera é que, para o proprietário é uma perda imobiliária e monetária ter uma edificação de propriedade tombada, já que ele não pode passar aos herdeiros valorizando como o mercado imobiliário permite. Acaba virando uma tragédia. Então, parei com toda as ilustrações e fui buscar algo que fosse interessante, também, a essas pessoas. Foi então que tomei conhecimento de uma lei de ressarcimento, de compensação, em vigor desde 1998, a lei de transferência do potencial construtivo”, conta Arbach.

Inédita, a tal lei apontava para a possibilidade de os proprietários de imóveis tombados comercializarem a construção que não podem executar, tendo em vista o impedimento a reformas e complementações de seus bens. Inviável, a redação do texto apontava para problemas que a nova lei pretende transpor. Além de identificar a ausência de divulgação da lei – “Deveria vir anexada ao decreto de tombamento” -, Arbach aponta para fatores como o despreparo de cartórios, a resistência do Poder Público, o desestímulo ao empreendedor com uma falta de proporcionalidade entre investimento e benefício e um curioso entrave na região central, onde se situa grande parte dos imóveis tombados.

PUBLICIDADE

“Na lei diz que um bem tombado numa característica de zona só pode transferir para uma zona semelhante. Bom Pastor, Bairu e Santa Helena, por exemplo, são uma ZR II e só podem comercializar entre si. A maior parte dos bens tombados está na ZC I, que é o Centro, e num outro artigo diz que essa região não pode receber nada, ou seja, fica impedida de vender e receber, sendo que não existe outra ZC I na cidade. A própria lei, portanto, cria essa limitação”, aponta Arbach.

Compensação, ainda que tardia

Em tramitação por quase um ano e meio, considerando os seis meses nos quais nove dos 19 vereadores pediram vista, atrasando a aprovação, a nova lei, de autoria do vereador Zé Márcio (PV), alinha-se a tantas outras cidades brasileiras e estrangeiras que adotaram o mecanismo criado nos anos 1970. “A primeira vez que foi utilizado foi na Europa, na Itália, especificamente. No final daquela década, veio para os Estados Unidos. Nos anos 1980, Curitiba adotou, posteriormente Belo Horizonte também fez, e, em 1998, nós adotamos”, enumera Jorge Arbach. Atualmente, a ferramenta está presente em São Paulo, João Pessoa, Natal, Salvador, dentre outros municípios.

PUBLICIDADE

“A finalidade primeira dessa lei é gerar recursos, para que o proprietário possa fazer a salvaguarda de seu bem. Acredito que quem tem um imóvel tombado vai ter, também, uma poupança, para usar na manutenção da casa e da forma que achar conveniente. Essa lei é a maneira de preservar a história arquitetônica da cidade e gerar recursos para proprietários, já que eles podem vender um potencial, continuando a ser dono de seu imóvel”, observa Eduardo Felga, presidente do núcleo juiz-forano do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).

“Quando a pessoa tem um bem tombado, por essa lei passa a ter o direito daquilo que seria possível ser construído na zona a qual pertence, descrita na Lei do Uso do Solo. Esse proprietário, então, solicita à Prefeitura uma certidão administrativa dando a ele a propriedade do potencial a ser construído, que ele pode comercializar. Na cidade, porém, só é permitido um acréscimo de 20%, ou seja, esse potencial será pulverizado pelo município”, explica Jorge Arbach, referindo-se à recente legislação e pontuando que os 20% dizem respeito a um percentual aceitável, sem que seja preciso mexer em caixa de esgoto, abastecimento elétrico e hídrico, vagas de estacionamento, isto é, sem gerar grande impacto urbanístico.

PUBLICIDADE

Na nova lei, ainda, passados 15 anos, essa possibilidade de comercialização do potencial é renovada, e pode ser feita uma nova negociação, que não sofre influência do mercado imobiliário. “Quem estipula os valores é a planta de valores do município, que calcula o IPTU. É necessário que haja uma equivalência entre quem compra e quem vende. Isso leva a descentralizar os empreendimentos”, pontua Arbach. A equação é simples: área do gerador x valor venal do gerador = área do receptor x valor venal do receptor. A comercialização, contudo, é feita paulatinamente, respeitando a revitalização do imóvel tombado.

“Inicialmente, o proprietário recebe 35% do direito de comercializar, o que permite fazer um projeto de restauro do imóvel. Ao apresentar e aprovar esse projeto, esse proprietário recebe os outros 35%, para fazer a recuperação. Feitas as obras, receberá os 30% restantes, que será totalmente dele”, sintetiza o artista gráfico, que agora faz canecas com desenhos de bens tombados na cidade, como simpáticos souvenirs.

Atenção pelo que virá

A ignorância acerca da legislação sobre transferência de potencial construtivo em Juiz de Fora é, para Jorge Arbach, o principal motivo para que a única tentativa de utilização da lei tenha fracassado. “Acredito que a falta de ciência da lei tenha sido a barreira”, comenta. Segundo o artigo “Transferência do direito de construir e dificuldades de planejamento em cidades médias: o caso de Juiz de Fora”, de autoria da pesquisadora Bárbara Lopes Barbosa, a Congregação das Irmãs Carmelitas da Divina Providência, proprietária do Colégio Nossa Senhora do Carmo, no bairro Santa Helena, solicitou e recebeu a certidão contendo o cálculo do potencial construtivo do imóvel tombado em 2000, com o intuito de reunir recursos para a restauração do prédio.

“Entretanto, ao conseguir o valor necessário para esta obra por outros meios, não levou adiante o processo de transferência, arquivando a certidão que garante o potencial construtivo do imóvel. Ao ser questionada se houve procura por parte do mercado imobiliário para compra deste potencial, a administração afirmou que nunca houve qualquer manifestação de interesse”, assinala o texto apresentado no 16º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, realizado em 2015, em Belo Horizonte.

De acordo com Marcos Olender, a nova lei de Juiz de Fora “visa a dar eficiência à lei antiga, fazendo com que, efetivamente, o proprietário possa se utilizar dela. Não só compensa economicamente, como também estimula o futuro, enfraquecendo algum tipo de resistência em relação a novos tombamentos”. “Hoje temos uma visão de que os bens históricos de interesse de preservação seria dos anos 1940 para trás. Mas o tempo está passando, e esse interesse pelo patrimônio arquitetônico está se dilatando”, ressalta Arbach.

“Tem porvir prédios pulsando, que serão, daqui a 30 anos, interesse patrimonial. As vilas operárias dos italianos e alemães, que nos encantam e que encontramos volta e meia por aí, diria que hoje são os condomínios fechados, com belos projetos de conjuntos unifamiliares. Essa lei vem, também, para o que virá”, completa o artista gráfico e arquiteto, citando conjuntos como o Granville, na Cidade Alta.

O exemplo e o entrave

Exemplo no país, Curitiba, que já comercializou milhões de metros quadrados desde que adotou o mecanismo, em 1982, conseguiu revitalizar importantes espaços públicos utilizando-se da transferência do direito de construir. Reaberta em 2012, a Catedral Basílica Menor Nossa Senhora da Luz, principal do Paraná, comercializou 11.430 m², gerando os R$ 4 milhões necessários para sua integral restauração. Em seus estudos acerca da aplicação do mecanismo na capital paranaense, a arquiteta e pesquisadora Ana Paula Mota de Bitencourt aponta para a “eficiência da administração pública em coordenar todo o processo” como a principal via a justificar o sucesso da lei numa paisagem capaz de equilibrar-se entre memórias e contemporaneidade.

Em Juiz de Fora, contrariamente, a mesma Câmara Municipal que aprovou a nova lei gesta um novo mecanismo que permite a regularização de imóveis construídos até 31 de dezembro de 2015. O projeto, de autoria do vereador Pardal (PTC), complementa outra lei, que oferecia a via da regularização para imóveis edificados até abril de 2012.

As garras do mercado

Considerados pelos defensores do patrimônio cultural como um desestímulo ao uso da nova lei, a tabela de multas e os prazos dilatados se mostraram, ao longo dos anos, mais interessantes e rentáveis do que a compra do potencial construtivo. “Os próprios construtores preferiam ser multados a comprar o potencial”, pontua Jorge Arbach. “De que adianta ter uma lei dessa natureza se não tem uma estrutura efetiva para gerir a preservação?”, questiona o professor da UFJF Marcos Olender, para logo criticar: “Enquanto houver imóveis irregulares e vereadores apresentando projetos para a regularização deles, a lei de transferência do direito de construir não fará sentido.”

Segundo Eduardo Facio, engenheiro civil responsável pela Secretaria de Atividades Urbanas da Prefeitura, regularização e compra de potencial construtivo fazem parte de universos distintos. “Essa lei não regulariza nada antigo ou que esteja em andamento”, ressalta, para logo explicar a competência da pasta que, com a lei sendo colocada em prática, receberá e gerenciará os dados de quem vendeu e de quem comprou direito de construir. “Analisamos projetos de acordo com as leis existentes. Irregulares são as construções que acontecem sem ter projeto aprovado pela Prefeitura, sem alvará de construção. Toda obra que descobrimos sem ter alvará é embargada e para na hora”, completa, citando, ainda a multa cobrada ao dono do empreendimento.

Contudo, o universo das fiscalizações parece muito mais amplo do que a enxuta equipe pode dar conta. Para cada fiscal, hoje, na cidade, existe uma paisagem com cerca de 14 mil habitantes. Há uma fiscalização de rotina, secretário? “O fiscal de posturas passa na obra, bate na porta, chama o responsável e pede o alvará”, responde Eduardo Facio. Ele está sempre na rua? “Tem fiscais que fazem todos os tipos de fiscalização de posturas o tempo todo, além de irmos atrás quando alguém denuncia, reclama.

Vizinho nunca gosta da obra do cara do lado. A gente visita, então. Toda obra que descobrimos fiscalizamos.” E como é a equipe hoje? “São os fiscais de posturas que têm o direito de exigir documentos desse tipo de um empreendedor.” E hoje quantos fiscais a cidade tem? “Devemos ter cerca de 40 fiscais de posturas para todas as regiões da cidade, que são oito.” Satisfaz? “Não.”

“É preciso coibir os projetos irregulares”, reforça o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil em Juiz de Fora Eduardo Felga, pontuando que, enquanto existirem imóveis irregulares, que escapem das fiscalizações, existirá o conforto dos infratores de que, em algum futuro, uma lei aprovada permitirá que seu imóvel seja regularizado, num valor abaixo do que seria praticado na compra de potencial construtivo. Num cenário ideal, portanto, sobressai a latência de um mercado e sua responsabilidade por retirar do cenário de prédios tomba

Exit mobile version