Tu colores, eles colorem, nós colorimos, vós coloris, eles colorem. Nos dias de hoje, o verbo é conjugado em todos os pronomes, exceto no “eu”. Ironia, mas colorir tornou-se exercício individual. Até a última semana de junho, quase um milhão de brasileiros já tinha em casa “Jardim secreto”, livro de colorir da escocesa Johanna Basford. Catalogadas como não-ficção, essas obras salvaram o mercado editorial, também vitimado pela crise, e ampliaram as vendas de canetas e lápis coloridos. Tornaram-se febre num momento economicamente enfermo. Trouxeram paciência aos estressados que se dedicam a preencher desenhos. Formaram grupos de troca, mas a ação se manteve singular e não coletiva. Até agora, ao menos em Juiz de Fora, só não impactaram nos movimentos das escolas de desenho e pintura. Vultuosos em vendas, os livros de colorir não pretendem incentivar a arte, mas o lazer.
“Sinto como se fosse um trabalho mais despojado, uma terapia, algo para relaxar e diminuir a irritação do dia a dia. Não há uma técnica, é bem livre. Não exige saber pintar”, pontua o artista plástico e professor Pedro Guedes, dono do ateliê que leva seu nome. “Acho que é uma febre, chama atenção para a questão do bem-estar que o desenho e a pintura promovem, mas, se não houver um acompanhamento, uma hora cansa. É importante perceber a evolução, e isso só um curso pode dar”, defende a também pintora e professora Márcia Marques, que hoje leciona na Sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras e no Atelier Marcelo Casali.
Há mais de dez anos ensinando o ofício desenvolvido no curso de artes da UFJF, Márcia, em seu dia a dia, oferece justamente o que os livros de colorir “vendem”: a terapêutica da arte. Muitos de seus alunos são portadores de esclerose múltipla e, hoje, recebem os ensinamentos da artista em suas casas. Segundo ela, essa é uma das vias possíveis na arte. Contudo, o fenômeno editorial ainda não impactou os ateliês. Aos 81 anos, o mais tradicional espaço de ensino de desenho e pintura na cidade, a Parreiras, enfrenta diversas dificuldades. “Não temos condições de manter aquele prédio antigo. Em um lugar mais simples, seria mais fácil”, avalia o presidente da instituição, o artista e professor Lucas Amaral, há quatro anos à frente da associação sem fins lucrativos.
Portas de saída
Rodeada de história – do lado de fora, a Praça da Estação e os tempos áureos de Juiz de Fora, do lado de dentro, gerações que se fizeram fortes e prolíficas com os pincéis nas mãos -, a Parreiras persegue o passado para se firmar no presente. “É uma associação pobre, vive da contribuição dos sócios-alunos. A situação é complicada. Ando muito cansado, sempre pensando em como conseguir manter, sem deixar perder essa tradição de desde 1934”, emociona-se Lucas Amaral. “Antigamente, funcionávamos numa loja e sobreloja na Galeria Salzer (no Centro). O espaço físico era mínimo, e tínhamos mais de 150 alunos. Quando viemos para a atual sede, num ambiente muito melhor, muitos não vieram conosco, alguns por medo da localização e outros por preconceito com o lugar”, conta Ronan Cesário, secretário da instituição há 29 anos.
Atualmente são oito instrutores para cerca de 70 alunos, resultando numa conta que não fecha. De acordo com o presidente do lugar, o repasse feito pela Funalfa em troca de algumas bolsas esse ano ainda não foi feito. E já foi sinalizado que deverá sofrer cortes de 30%. “Compreendo isso. É o momento. A Prefeitura nunca nos deixou faltar nada, mas agora enfrenta as dificuldades do ano”, pondera Amaral, que diz ter as despesas com água, telefone, luz, limpeza e um funcionário para arcar, o que não permite fazer a ideal preservação do imóvel tombado. Anunciada em 2010, a mudança de endereço da Parreiras para a Rua Benjamin Constant já não está mais nos planos municipais. “Com a nova gestão da Prefeitura, não temos a previsão de sair mais”, lamenta Amaral.
Sem acessibilidade, o prédio cujo interior reserva a beleza dos ladrilhos hidráulicos onipresentes na cidade do passado, além de uma cúpula e tetos delicadamente ornamentados, deverá abrigar novos cursos a partir de agosto. Além de palestras, cursos e excursões culturais, a associação promoverá aulas de instrumentos musicais como teclado e violão. “Essas novas propostas devem injetar maior fôlego à sustentabilidade da casa”, afirma Cesário.
Otimismo em outras portas
Nem tudo é P&B para os cursos de desenho e pintura da cidade. Para Pedro Guedes, cujo ateliê já soma 15 anos, nos últimos três anos a procura reduziu, mas houve um crescimento muito vigoroso na última década, o que acaba por não deixar que o impacto dos últimos anos seja vivido com temor. “Desde que inaugurei o ateliê, a procura foi crescendo e me exigiu que procurasse um novo espaço. Ali (na esquina das ruas Floriano Peixoto e Santo Antônio) cheguei a ter mais de cem alunos. Encontrei um espaço maior e diminuí o limite de alunos, para poder me dedicar também a meu trabalho autoral”, pontua ele, que conta com seis professores na escola, de tapeçaria a mosaico.
Somando 15 anos de experiência em salas de aula, Marcelo Casali, discípulo do pintor Heitor de Alencar, percebe que, gradativamente, as turmas foram crescendo, chegando aos atuais 120 alunos. “Hoje em dia, as pessoas têm uma visão voltada para a sensibilidade das crianças. Antigamente, as meninas iam para o balé, e os meninos, para o futebol. Sempre fui muito otimista, acreditei na arte. Ainda espero que esse movimento dos livros de colorir possa levar as pessoas a se voltarem mais para a arte”, aposta.
Mesmo sem sentir o impulso que poderia partir desse novo mercado que se fortalece entre os editores e se profissionaliza em diferentes frentes (uma delas, a de profissionais de design que se voltam para a febre), os cursos comemoram o fortalecimento proporcionado pelo vestibular da UFJF, nos cursos que exigem provas de habilidades específicas. Na Hiato Ambiente de Arte, apesar de o número de horários e alunos ter diminuído nos últimos anos, a procura por aulas preparatórias tem sido crescente. Na Sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras, os meses que precedem as provas dão fôlego às contas da instituição. O ensino da arte ainda aguarda as cores vibrantes que saltam das páginas.