Eram 20h em ponto quando Nara Vidal correu para a janela de sua casa em Londres. Estava batendo palmas. “O país inteiro abriu as janelas para aplaudir o sistema público de saúde. Muito emocionante”, narrou a escritora em mensagem de WhatsApp. À distância, a mineira de Guarani acompanha todas as notícias do Brasil enquanto vive a apreensão por estar na Europa, segundo epicentro da Covid-19, doença causada pelo coronavírus que se alastra mundo afora. “A rotina aqui na Inglaterra vinha se transformado de forma mais lenta. O país não se trancou completamente como aconteceu em outros lugares da Europa, por exemplo. Foi tudo mudando a cada dois dias. Agora estamos em completo isolamento, o que deve ser cumprido rigorosamente porque está em jogo o coletivo, e nós somos parte desse conjunto”, pontua Nara, que na estreia de sua coluna na Tribuna de Minas relata, entre a crônica e o conto, esse “estado de isolamento”. A partir deste domingo (5), a única brasileira entre os vencedores da última edição do Oceanos, um dos mais importantes prêmios literários em língua portuguesa, compartilha sua escrita sensível e atenta com os leitores do impresso e do on-line semanalmente.
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Numa narrativa tão fluida quanto comovente, Nara retrata, em seu primeiro texto, sentimentos despertados pelos dias que correm. Desde 2001 vivendo na capital do Reino Unido, a escritora assiste, pela primeira vez, a cidade parar enquanto os ponteiros do Big Ben permanecem girando. “A maior mudança na minha rotina é que agora meus filhos estão em casa”, conta ela, que costumava levar as crianças de 11 e 8 anos para a escola às 9h e buscar às 15h30, período em que trabalhava e fazia tarefas domésticas. Atualmente, as manhãs ela passa estudando com eles. “A escola nos dá tarefas, mas é preciso incrementar um pouco. A vantagem é que agora, queiram ou não, eles vão ter que me ouvir falar de arte e literatura, afinal de contas é aula, é obrigatória a presença”, brinca. “É importante educar os filhos que teimam em pedir para brincar no parque que neste momento todos precisam fazer alguns sacrifícios. O nosso é ficar em casa quando o raro sol de primavera nos aquece. Pelo menos quando olhamos da janela vemos azul ao invés de cinza. É preciso ser otimista.”
‘Acho difícil escrever coisas felizes’
Nara não tem horário para escrever. “Escrevo sempre que posso. Tento treinar todos os dias, praticar a escrita é importante. Mas ela acontece em qualquer lugar, sem qualquer regra. Aprendi a escrever em qualquer lugar e com qualquer barulho. Acho isso uma das maiores vantagens que eu consegui adquirir em termos de prática de escrita”, comenta ela, autora de livros infanto-juvenis, dois contos e o premiado romance “Sorte”, recém-traduzido para o holandês. “Escrevo predominantemente em português. Se escrevo em inglês geralmente é alguma matéria ou nota de imprensa, narrativa de roteiro de viagem. Mas toda ficção que eu escrevo é em português porque é a minha casa. Volto sempre para a minha língua, porque sou feita dela”, diz a escritora, que em família costuma falar em português e ser respondida em inglês.
Relacionando temas espinhosos, como o racismo e o feminismo, o romance de Nara une Brasil e Irlanda a partir de um relato ouvido por ela, de uma senhora que havia tido o filho sequestrado pela Igreja Católica. A história desdobrou-se, somou-se a outros fatos encontrados pela autora. O real ganhou forma ficcional. “Geralmente escrevo sobre incômodos. Acho difícil escrever coisas felizes, satisfações. O que me perturba me faz querer reagir, e a escrita é a minha ferramenta para isso”, observa a coordenadora de um clube de tradução realizado em parceria com o departamento de estudos latino-americanos da Universidade de Londres e no qual tradutores em formação e veteranos discutem versões possíveis para textos de autores brasileiros contemporâneos pouco conhecidos no exterior. Numa iniciativa inédita, Nara também criou a Capitolina Books, para comercializar pela Europa títulos da ficção brasileira atual. Fez da literatura brasileira seu gesto e sua bandeira.
Saudades do sol, da família e do passado
Todos os livros de Nara foram lançados no Brasil, em específico em sua terra natal, Guarani (MG), onde vive seu pai. “Sorte” teve lançamentos em mais endereços. Ainda assim, Nara não é uma figura frequente em eventos literários nacionais, devido ao fato de ser publicada por pequenos selos e, também, pela vida no exterior. “Não poder trabalhar o livro em escolas, no caso dos infantis, não participar de encontros literários, tudo isso pode ser uma desvantagem. Talvez a maior de todas seja me privar da convivência de pessoas queridas e com quem tenho tanto em comum. As pessoas sempre são o que mais importa”, assegura a escritora de 46 anos, graduada em letras no Brasil, com mestrado em artes em Londres.
O concorrido prêmio Oceanos trouxe à Nara oportunidades que talvez sem ele demorassem a aparecer. Atualmente ela possui um romance em análise editorial e dois outros em processo. “Um deles já está no fim. Vai abordar um dos maiores escândalos da sociedade brasileira: o movimento eugenista da década de 1930”, revela ela, prestes a completar duas décadas morando a um oceano de distância do país que não lhe sai da cabeça, do interesse, da atenção, da janela. “Sinto muita falta de alguns aspectos do Brasil. A minha família e meus amigos sempre me fazem muita falta. O calor e o sol também me tiram do eixo quando faz muito frio aqui. Mas talvez eu sinta falta do que não existe mais, de um passado que cristalizei e que já não é possível encontrar, mesmo se procurasse.”