A estrada é longa, a capa não mente. São muitas as paisagens que se desvendam no decorrer de “Malditos” (Penalux Editora), livro que Anderson Pires da Silva lança nesta terça-feira (4), às 19h30, na Arteria. O horizonte inclui as muitas camadas, não apenas das narrativas, mas também das referências que o professor de literatura da Faculdade de Letras da UFJF desenvolve nas 218 páginas de seu romance de estreia, da poesia aos quadrinhos, passando pelo rock’n’roll e pelas próprias “facadas que já tomou”. Fluida, envolvente e absolutamente curiosa, a leitura se desenrola na tentativa de decifrar o que, capítulo por capítulo, parece cada vez mais indecifrável.
Já nas primeiras frases, o protagonista Orlando – seria uma referência ao romance de Virginia Woolf?! – é um advogado que em busca de poder e riqueza se envolve em complexos esquemas de corrupção que, por sua vez, relacionam a uma sinistra seita. Um ambientalista desequilibra os planos gananciosos. Sem que haja mocinhos ou vilões, a trama segue estrada afora ganhando tensão e energia. “Uma ficção para ser lida como captação do não edificante, evidenciando, através de seu modo singular, uma crítica necessária a um mundo regido pelo egoísmo e a pose. Um mundo que precisa ratear para deixar passar o motor da vida”, destaca o também professor e escritor Luiz Fernando Medeiros na orelha da obra.
“Quando criei os personagens de ‘Malditos’ fiz como um puro exercício de imaginação. Acho que o ponto em comum entre esses personagens e os meus últimos poemas, principalmente, é uma inquietação existencial e um certo sentimento de fracasso nas relações humanas”, comenta o escritor, em entrevista à Tribuna, referindo-se ao caráter existencialista que marca o livro logo na capa, onde apresenta o subtítulo “ficção gótica existencialista”, ponto de partida de nossa conversa.
Tribuna – O que seria a ficção gótica existencialista de “Malditos”?
Anderson Pires da Silva – Bem, desde o início de minha produção literária, nunca me senti representado nos rótulos que têm me colocado. Então, ao concluir a versão final de “Malditos”, coloquei este subtítulo “ficção gótica existencialista” para deixar claro ao leitor do que se trata a obra. “Existencialista” está no sentido camusiano (Albert Camus) do termo, quando a vida é para os indivíduos uma coisa absurda e angustiante. O elemento gótico está na ambientação soturna, a presença constante da morte e o clima de mistério que conduz a trama.
E o que seria esse mundo da literatura passada que o mundo de “Malditos” deixa para trás?
Eu roubei essa frase da introdução da série Zumbis Marvel. Minha intenção não era dizer que “deixei para trás” uma forma de literatura que considero passada, mas com a qual não tenho mais nada a ver, isto é, essa literatura centrada no personagem-escritor (quase sempre o loser charmoso), em primeira pessoa, meio autobiográfica, meio autoficcional, às vezes baseada em traumas familiares. “Malditos” é uma reação a isso, uma obra de ficção com personagens imaginários e qualquer semelhança com a realidade foi uma mera coincidência.
“‘Malditos’ é uma reação a isso, uma obra de ficção com personagens imaginários e qualquer semelhança com a realidade foi uma mera coincidência”
De que ponto partiu a sua ideia para ‘Malditos”?
A ideia original surgiu em 2005, quando passava pela região de Tabuleiro e havia uma neblina sobre o rio e, ao fundo, vi uma casa estilo colonial, que na penumbra do crepúsculo, me pareceu um lugar mal-assombrado. Fiquei com essa cena na cabeça durante os anos seguintes até tomar a forma de uma narrativa de horror. E eu queria escrever uma obra em prosa diferente do que eu havia feito antes com “Los paranoias” (que foi publicada em capítulos no fanzine “Urgh!”), que era uma narrativa em primeira pessoa, centrada no personagem-escritor, cômica, meio autobiográfica… Aí, em 2009, eu criei uma página no blogspot e comecei a publicar em capítulos a primeira versão de “Malditos”.
Logo nas primeiras páginas surgem os meandros de um esquema de corrupção envolvendo políticos e uma empreiteira. Qual a ligação dessa construção narrativa com a realidade brasileira atual?
Foi uma fortuita coincidência. Até os editores da Penalux publicarem “Malditos”, eu recebi muito “não” das editoras, que consideravam o enredo do romance fantasioso demais. E agora não parece tanto. Na real, esse já é um tema clássico na literatura brasileira, analisar a corrupção política e moral sob o ponto de vista da ganância e da busca violenta por poder. Então, quando a realidade brasileira começa a se aproximar desse imaginário ficcional é sinal que nossos piores pesadelos começam a se realizar.
“Quando a realidade brasileira começa a se aproximar desse imaginário ficcional é sinal que nossos piores pesadelos começam a se realizar”
Você também retrata questões relativas ao patriarcado. De que maneira elas dialogam com os dias de hoje? Houve preocupação sua em dosar esse contato com a realidade de forma a não se limitar a uma narrativa documental?
Foi o Luiz Fernando Medeiros que colocou essa questão. Enquanto eu escrevia o romance, em nenhum momento pensava que estava tratando de “questões relativas ao patriarcado”. Não conscientemente. Aí o Luiz Fernando afirma que o romance “tece o necrológico do patriarcalismo”. E ele diz isso em função das personagens femininas, que considera não emancipadas ou empoderadas. Mas não diria que elas são submissas, o que há nelas é um sentimento de angústia, pois não se sentem amadas nem pelos homens e nem pelo mundo que as cerca. Nesse sentido, os personagens masculinos podem representar as formas de violência social e simbólica associadas hoje à ideia de patriarcalismo, como a atitude autoritária e a exploração dos sentimentos femininos. Não que esse fosse o meu propósito. Muitos escritores hoje adotam uma atitude crítica de negação ao “macho alfa branco” e às formas patriarcais de nossa sociedade, as identificando com a opressão às mulheres e, por extensão, a outros grupos marginalizados, os negros e os gays, assim estão mais próximos tanto do prêmio Jabuti quanto de uma carta papal de canonização. Eu não estou entre esses escritores. Muito menos tenho as costas quentes, pelo contrário, eu tenho as costas marcadas pelas facadas que tomei.
O livro traz muitos diálogos, o que dá outro ritmo à narrativa. Qual o valor do ritmo, sempre uma questão muito fundamental para a poesia, nessa sua prosa longa?
Minha principal influência na escrita de “Malditos” foi o romance “O casamento” de Nelson Rodrigues. É uma obra-prima. A composição de “Malditos” deve muito a esse romance, ao modo como o Nelson fechava cada capítulo com um gancho para o capítulo posterior, de forma que você não consegue largar o livro. O narrador impessoal e implacável. Os diálogos são fundamentais para revelar o caráter psicológico dos personagens. Eu não gosto desses romances em que há um narrador que já diz ao leitor como o personagem é. Essa é uma lição que aprendemos com Aristóteles: o caráter dos personagens se revela pelas ações que praticam e sem diálogos não há ação, e sem ação não há narrativa. A não ser que você seja um Samuel Beckett.
“Essa é uma lição que aprendemos com Aristóteles: o caráter dos personagens se revela pelas ações que praticam e sem diálogos não há ação, e sem ação não há narrativa. A não ser que você seja um Samuel Beckett”
O Luiz Fernando Medeiros, na orelha do livro, cita o Rubem Fonseca como referência para essa leitura. Em qual medida ele é uma influência nessa sua escrita?
Além do Nelson Rodrigues, outra influência foi Machado de Assis. Há uma revelação em relação à real identidade de um personagem que somente os machadianos irão sacar. Além disso, também peguei de Machado a ideia de usar os títulos dos capítulos como extensão referencial da narrativa, por isso usei a numeração romana. Mas entendo a referência ao Rubem Fonseca, porque “Malditos” tem uma estrutura de romance policial e, nesse campo, Rubem Fonseca é uma referência incontornável, é como o joelho de porco na feijoada.
O rock é uma presença no livro. Qual a potência dessa referência no seu trabalho de escrita?
Há uma série de mistérios no romance, e uma das chaves de decifração está ligada à música e à mítica de Robert Johnson, que foi uma das primeiras figuras lendárias do blues do Delta do Mississipi. O primeiro integrante do famigerado “clube dos 27”, isto é, o time de músicos brilhantes que morreram aos 27 anos – Jimi Hendrix, Kurt Cobain, Amy Winehouse. No meu trabalho de escrita, a música, o rock em particular, é uma referência constante para ampliar o sentido narrativo, é um elemento a mais na composição, como por exemplo quando o casal Orlando e Eva é descrito como dois “perfeitos estranhos”, em referência à música “Perfect strangers” do Deep Purple.
Como foi o desafio de escrever um romance? Como desenvolveu o livro, devagar, com disciplina? O resultado correspondeu ao projeto inicial?
Foi um desafio enorme e fico feliz por tê-lo concluído, não desisti diante das inúmeras recusas para publicá-lo. Eu desenvolvi o livro bem devagar e a cada não recebido por uma editora encarei como um motivo para ir aprimorando o enredo. Em nenhum momento achava que estava indo por um caminho errado, embora os obstáculos fossem muitos, principalmente porque o gênero de horror é muito subestimado em nossa literatura. E esse sempre foi o projeto inicial: compor uma narrativa de horror com os elementos tradicionais da narrativa brasileira, isto é, o realismo policial. E, se possível, colocar um pouco mais de distorção. O resultado final ainda me agrada e eu espero que agrade também aos leitores.
“E esse sempre foi o projeto inicial: compor uma narrativa de horror com os elementos tradicionais da narrativa brasileira, isto é, o realismo policial. E, se possível, colocar um pouco mais de distorção”