Site icon Tribuna de Minas

ASMR: Para relaxar, ou não, o cérebro e o corpo

ASMR
PUBLICIDADE

Por mais que passemos horas e horas e horas e horas diárias em redes sociais, canais do YouTube, portais de notícias ou jogando, entre outras distrações, sempre vai existir uma bolha, por maior que seja, que vai nos surpreender quando descobertas. É o caso, por exemplo, dos vídeos ASMR, com milhares de seguidores e visualizações todos os dias no YouTube e em redes sociais como Instagram, TikTok e Twitch.
Quando recebi a pauta, a sigla não me era exatamente familiar, mas tampouco era algo na linha “isso é de comer?”. Missão dada, fomos procurar saber do que se trata, e é o seguinte: ASMR é a sigla em inglês para Resposta Sensorial Meridiana Autônoma, como tem sido definido o chamado “orgasmo cerebral” ou “formigamento cerebral”, em que sons específicos são capazes de provocar formigamento ou arrepios no couro cabeludo e até mesmo pelo corpo, provocando relaxamento, conforto e sonolência.
E que sons seriam esses? Olha, podem ser de qualquer tipo: apenas no YouTube, por exemplo, canais dedicados à ASMR têm youtubers apenas sussurrando ou com o som de mastigação de tapiocas (!) ou qualquer outro tipo de comida, ou ainda manipulando frascos de remédios, cortando cabelo, usando secador de cabelos, estourando plástico bolha, tirando cravos (!!!!), fazendo limpeza de pele, passando um pincel no microfone – com ou sem a voz sussurrada, nesses casos.
É um universo que tem se profissionalizado de forma impressionante, com os criadores de conteúdo utilizando microfones profissionais para ter a melhor qualidade de captação sonora. No Brasil, por exemplo, a youtuber Sweet Carol tem cerca der 2,42 milhões de inscritos em seu canal, cujos vídeos batem facilmente as centenas de milhares de visualizações – um dos mais antigos já bateu a impressionante casa dos 12 milhões de views. Até mesmo a cantora Billie Eilish tem suas canções consideradas como ASMR.

O canal do YouTube “Sweet Carol”, alcunha da youtuber Mariane Rossi, tem 4,2 milhões de inscritos que gostam de ouvi-la comendo miojo ou espremendo espinhas (Foto: Facebook/Reprodução)

ASMR: caso de amor, estranhamento ou irritação

Ao pesquisar os vídeos ASMR, a expectativa era de que se tratassem de uma variação moderninha dos chamados ruídos brancos (estática de televisão, aspirador de pó, liquidificador) ou dos sons da natureza (chuva, correnteza, animais) que estão em qualquer plataforma de streaming musical – ou daqueles vídeos que reproduzem ambientes como cafeterias, em que costuma ter uma trilha sonora baseada em jazz.
Definitivamente, trata-se de um universo totalmente diferente, e, como tudo nessa vida – e na internet em particular – há quem ame, odeie, ache estranho e bizarro (alguns cravariam um “ridículo”), considere os vídeos irritantes ou que não fazem o menor sentido. A certeza é que os vídeos ASMR vieram para ficar, nem que seja até o momento em que uma nova moda surgir.
Morando atualmente em São Paulo, a ilustradora Ila Fox descobriu a ASMR em uma reportagem publicada na internet em 2014 que tratava sobre o tal “orgasmo mental”. “A matéria incluía um link para um canal, o Gentle Whispering. Assisti tanto que só de me lembrar de algum vídeo já me dá sono. Acho que condicionei meu cérebro (risos)”, conta a artista, que utiliza os vídeos para dormir ou apenas para desacelerar ao fim do dia. “Às vezes, quando sinto que estou muito agitada, eu coloco um (vídeo) ASMR para relaxar enquanto fico pintando.”
Sobre o que mais a atraiu nesse tipo de produção audiovisual, ela destaca a criatividade dos produtores de conteúdo. “Eles inventam verdadeiras estórias, com cenário e tudo, para ajudar na imersão. Sempre recomendo para quem está com dificuldade para dormir, mas parece que algumas pessoas têm um efeito contrário, se irritam com os sons.”
Quanto aos tipos de vídeos preferidos, Ila Fox explica que “é de fases”; atualmente, ela gosta de assistir a vídeos de pessoas organizando estojos ou coisas de papelaria. “Aquele barulhinho de zíper, plástico e lápis é muito gostosinho. Gosto do canal da Sweet Carol, mas também assisto a outros”, conta. “O que eu fazia antes de descobrir a ASMR era assistir a vídeos de cabeleireiros ou maquiadores, sem qualquer intenção de fazer o que estavam ensinando, apenas para sentir aquele arrepiozinho bom e dar sono.”

PUBLICIDADE

‘Cosquinhas no cérebro’

Do Rio de Janeiro, a jornalista Ana Cláudia Araújo descobriu por acaso, há cerca de cinco anos, que a ASMR era sua praia. “Eu comentei com uma amiga que alguns sons faziam cosquinhas no meu cérebro, causando arrepio e relaxamento. Aí ela me disse que existia um nome para isso, ASMR, e que existiam vídeos na internet. Foi quando conheci o termo para algo que sempre tive”, relembra. “Sempre me vi arrepiada com esses pequenos ruídos do dia a dia, como alguém folheando livro perto de mim, digitação ritmada, pessoas escrevendo ou qualquer outra situação que me causasse esses estímulos.”
O horário preferido por Ana para assistir aos vídeos é à noite, quando tudo está silencioso. “Mesmo se estiver sem sono, assisto e logo durmo. Mas sou bem chata quanto ao tipo de estímulo. Muitos desses vídeos feitos com sons de mastigação, fala baixa, com ruídos ‘propositais’, do tipo ‘olha aqui o ruído que estou fazendo’, quase não me estimulam. Gosto mais daqueles em que as pessoas filmam uma ação sem parecer que tem a intenção de provocar ruídos, como massagem, automaquiagem, de limpeza de pele. Mas tudo com som ambiente, nada de música de relaxamento, (senão) estraga.”
A jornalista diz, ainda, que os vídeos em si não a atraíam, e sim a possibilidade de ter algo para fazer “cócegas” no cérebro. “Para isso, não precisam ser de alta produção, com o melhor microfone sensível e nem melhor edição, basta entregar estímulos sensoriais. Mas já troquei figurinhas com colegas que têm o mesmo estímulo que eu, e quando vejo alguém com mesma sensibilidade sensorial informo que tem como assistir vídeos na internet com esses estímulos. Tem muita gente que não conhece o termo ASMR, e, por isso, não sabe nem buscar por algo similar na internet.”
Quanto às preferências de conteúdo, Ana Cláudia conta que seguia um perfil no Instagram em que uma mulher apresentava e experimenta novos produtos em vídeos curtos com som ambiente e sons de embalagem, mas que desapareceu da rede social. “Sigo outro no Facebook, o ASMRTHECew, e um dos vídeos em que ela aparece digitando e mascando chiclete até virou meme. Mas também sigo uma página que não tem propósito nenhum de ASMR. É um perfil de vídeos que mostra unhas sendo desencravadas. Mas a especialista faz os vídeos com som ambiente, bem silencioso e apenas com os barulhos dos instrumentos. Isso, junto com a sensação gostosa de desencravar uma unha, relaxa muito.
Minha filha ama assistir comigo. Ela também adora esses estímulos.”

PUBLICIDADE

Ruído branco para fazer bebês dormirem

Antes da ASMR – ou de assim ser conhecida -, muito já se falava sobre o ruído branco ou dos sons da natureza, que já costumavam ser utilizados para concentração, relaxamento e/ou para dormir. Como muitas mães e pais sabem, costumam ser uma maravilha para colocar bebês de poucos meses para dormir.
Em Juiz de Fora, Marcelle de Paula Cerqueira tem duas filhas – Luiza, de dois anos, e Julia, de apenas seis meses -, e a dobradinha ruído branco/sons da natureza tem sido de grande valia. “Faço parte de um grupo no WhatsApp chamado ‘Papo de mãe’, criado despretensiosamente por mulheres que teriam filhos mais ou menos na mesma época e que foi crescendo. Foi ali, durante minhas pesquisas, que descobri o ruído branco, e comecei a fazer experiências.”
Geralmente, o ruído branco é utilizado quando o recém-nascido tem problemas com o horário para dormir ou dificuldades como as cólicas. Marcelle conta que Luiza não tinha esses problemas, mas que resolveram experimentar mesmo assim – e com sucesso. “Começamos a usar para que ela tivesse a rotina do sono, entendesse que era o momento de dormir. Começávamos essa rotina com o banho, o pijama, e, em seguida, o ruído branco. Não acreditava, no início, que esses barulhos de secador de cabelo, liquidificador, aspirador de pó, fossem fazer diferença, mas funcionaram super bem, pois a levavam para um momento familiar e aconchegante.”

PUBLICIDADE

‘Como relaxa?’

Segundo Marcelle, o ruído branco funcionou durante cerca de um ano, quando a curva acelerada de aprendizado fez com que o recurso deixasse de funcionar. Foi o momento de mudar a fase final da rotina, com ruídos ligados à água (chuva, correnteza) substituindo o ruído branco. “A Luiza gosta muito de água, e dessa forma ela continua acalmando. Com a Júlia o ruído branco ainda funciona, é só colocar que ela fica mais molinha, fecha os olhos e entende que está na hora de dormir. Confesso que funciona até comigo (risos), pois fico relaxada e me dá um sono absurdo. Acho que também fiquei condicionada a dormir.”
Sobre a ASMR, Marcelle é mais uma a fazer parte do grupo que achava, no início, que seria a mesma coisa que ruído branco – o que mudou após pesquisar sobre como fazer para ajudar no processo de sono da filha mais velha. Ao descobrir como separar um do outro, ela é taxativa em dizer que a ASMR não é seu negócio. “Tentei assistir, mas não consigo relaxar, muito pelo contrário: assisti a alguns vídeos de pessoas cortando cabelo, abrindo pacotes, sussurrando, e me perguntei: ‘como é que alguém relaxa com isso, como alguém consegue dormir?'”.

PUBLICIDADE

Nem tudo é ASMR

Para a academia, sons e sonoridades – assim como qualquer coisa que exista ou foi inventada pela humanidade – pode virar tema de pesquisa. No caso do professor de produção fonográfica no IFRS Alvorada, Marcelo Bergamin Conter – também doutor em comunicação pela UFRGS e coordenador do SIMC – Grupo de Pesquisa Sonoridades, Imagem, Materialidades da Comunicação e Cultura -, essa área de estudos passou a chamar sua atenção a partir de 2010, época em que iniciou o mestrado na UFRGS.
“Fiz um estudo de vídeos musicais para o YouTube e depois migrei para pesquisas relacionadas à produção de música lo-fi, amadora e independente. Mas no ano passado iniciei o projeto ‘Semioses afetivas da música ambiente contemporânea’, pelo qual retornei ao YouTube como um objeto de estudo. Durante a pandemia houve um pico de buscas por lo-fi hip-hop, que é um gênero que não tem muito a ver com o lo-fi que eu pesquisava, mas fez com que alguns jornalistas me solicitassem explicações sobre o fenômeno.”
Como é óbvio de se notar, Marcelo não estuda o fenômeno ASMR, mas sua área de pesquisas envolve questões que apresentam convergências se pensarmos que o lo-fi hip-hop e os vídeos ASMR são utilizados com fins parecidos. “Criei uma inquietação com o modo como vinha se explicando o que é o lo-fi hip-hop, gênero musical instrumental sem dinâmicas, com batidas lentas de hip hop, acordes de jazz e textura sonora de baixa fidelidade (daí o lo-fi), que tem sido empregado para as pessoas aumentarem o foco e serem mais produtivas. Mas essa prática de escuta difere do modo como estávamos acostumados a curtir música: ao invés de ouvir na hora do descanso e fruir esteticamente, passamos a ouvir para produzir mais”, analisa.
“Pior: parece que passamos a ouvir música para mascarar situações de burnout, de ansiedade, de precarização do trabalho. O lo-fi hip-hop aparece assim como um narcótico sonoro, algo para neutralizar nossas emoções. É claro que eu não estou ‘demonizando’ o gênero, muito pelo contrário: o que quero evidenciar com a pesquisa é esse contexto que estamos vivendo de pressão, de exigências e de contradições que são típicas do capitalismo tardio: ouvir música para produzir mais.”

ASMR: termo guarda-chuva

Sobre a ASMR, Marcelo diz que, como toda febre cultural, ela começou como algo muito específico e agora é um termo guarda-chuva. “Antes você tinha que ter um microfone especial para produzir sons binaurais para criar ASMR, e seu ouvinte precisava ouvir com headphones. Hoje qualquer coisa que se insinue ‘ambiental’ ou que queira criar uma ‘cena’ sonora coloca o termo ASMR como palavra-chave”, pontua. “Há vídeos no YouTube com dez horas de som de secador de cabelo ou de sons de biblioteca, que são consumidos pelos mesmos propósitos que o lo-fi hip-hop, de aumentar o foco e a produtividade, mas nada tem de ASMR no sentido técnico.”
Sobre a característica mais marcante da ASMR, o pesquisador diz gostar da ideia de colocar o espectador dentro de um “ponto de escuta” em primeira pessoa. “É como se ouvíssemos com as orelhas de terceiros. Tem um vídeo clássico, que já tem mais de uma década, que simula um corte de cabelo. Se você ouve de fones de ouvido, dá mesmo a sensação que estão raspando uma tesoura na sua nuca!”
Conforme já citado acima, é normal a confusão entre ASMR, ruído branco e sons da natureza. Seriam os vídeos ASMR, então, uma evolução em relação ao que havia antes? Para Marcelo, só podemos falar em “evolução” se compreendermos o termo no sentido de adaptação. “Não é uma versão 2.0, mais perfeita, da natureza. Inclusive, separar natureza e cultura gera uma série de problemas epistemológicos que não cabe discutir agora, mas se as pessoas estão buscando esses materiais para relaxar pode ser porque está cada vez mais difícil poder ter acessos a espaços tranquilos e repletos de plantas, animais, água corrente, vento, nas megametrópoles em que vivemos. Esses vídeos são, portanto, expressão da nossa situação cultural presente.”

Exit mobile version