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Leia a crítica do filme exibido nesta terça no Primeiro Plano

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Marcos (Leo Pyrata) e Ana (Kelly Crifer) retomam personagens de curta-metragem no drama dirigido por Gabriel Martins e Maurílio Martins (Foto: Divulgação)

 

“No coração do mundo”, filme que encerra o segundo dia de exibições do Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades, é não apenas um dos melhores filmes nacionais de 2019, é também prova de que se pode criar ótimas histórias a partir do nosso cotidiano, com personagens de rápida e fácil identificação, microcosmo de um Brasil que costuma ser ignorado por elites, políticos e governantes e economistas que só pensam a realidade a partir de números. A produção tem direção da dupla Gabriel Martins e Maurílio Martins, da produtora Filmes de Plástico, e amplia o universo do curta “Contagem”, de 2010, cujos protagonistas retornam para o longa.
A história se passa na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, mas poderia ser ambientada em qualquer grande cidade brasileira, seja Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Salvador, São Paulo – basta conhecer a realidade de cada localidade, algo que Maurílio e Gabriel, criados na terra, conseguem mostrar nas quase duas horas de duração do filme. São pessoas de origem humilde, sem oportunidades na vida, que precisam lidar com as adversidades para sobreviver enquanto sonham com uma vida melhor – mesmo que, para isso, muitas vezes tenham que recorrer ao crime, visto como derradeira (Única? Mais fácil?) oportunidade para alguns.
O fio condutor da história, no qual orbitam os demais personagens, é Marcos (Leo Pyrata). Ao mesmo tempo em que busca ganhar algum dinheiro com “bicos”, como a parceria fotográfica com Selma (Grace Passô), ele tenta a sorte com pequenos delitos. Se mostra força ao mandar Beto (Renato Novaes) “sumir” depois de matar um morador por acidente, ele aparece fraco, vacilante, quando é cobrado pela mãe, Dona Fia (Gláucia Vandeveld), que consegue o sustento vendendo de porta em porta o detergente que fabrica em casa; ou com a amiga Brenda Lee (MC Carol), que já viveu as agruras da prisão e sabe que essa vida não tem futuro. Com a namorada, a cobradora de ônibus Ana (Kelly Crifer, que protagonizou “Contagem” com Pyrata), ele tem seus momentos de “canalha sedutor”. Ela, por sua vez, sonha em arrumar um emprego melhor, mas se vê presa à vida que leva por precisar cuidar do pai idoso (Eid Ribeiro), que sofre de demência. Por tudo isso, acaba suscetível à possibilidade de ganho fácil – e criminoso.
Outras figuras são importantes para a história, e, ao orbitarem a figura de Marcos, terminam por compor a teia que liga todos os acontecimentos. Dona Sônia (Rute Jeremias), apesar de pouco aparecer, é importante para a trama – é a mãe do jovem assassinado por Beto logo no início do longa. Ana declarava seu amor a Marco com um daqueles carros de som que fizeram sucesso nos anos 90; Miro (Robert Frank), irmão de Beto, trabalha em um armarinho, e, apesar de preso a uma rotina pouco gratificante, prefere o que tem a se “perder” como o irresponsável caçula; Rose (Bárbara Colen, de “Bacurau”) tem um caso com Miro, é dona de um salão de beleza e planeja fazer dupla jornada como motorista de Uber, e por isso compra o carro de Selma.

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Selma, aliás, é a segunda peça mais importante da história. Cansada de viver em Contagem com trabalhos informais, planeja ir para um lugar melhor com a filha. Não há um endereço definido, mas algo que ela chama de “o coração do mundo”. “É onde a gente quer pisar, é onde vai o desejo da gente. É o próximo lugar”, diz ela em certo momento do longa. Porém, sem grandes perspectivas e querendo agora o que julga ser seu de direito, é seduzida pela possibilidade de ganho fácil quando recebe a dica de um “trabalho perfeito” (e criminoso). Para isso, ela recruta Marcos e Ana – que, assim como Selma, acredita numa tacada de sorte.
“No coração do mundo” tem vários méritos. Entre eles estão o ótimo roteiro, a montagem, a edição e a direção segura da dupla de realizadores, que foge da armadilha do “teatro filmado” de muitos longas nacionais. Com diálogos inspirados e cenas longas, sem cortes desnecessários, eles dão todo o espaço para o ótimo elenco brilhar. A trilha sonora é excelente, e a fotografia de Leonardo Feliciano transforma Contagem em uma cidade viva, com “personalidade” própria.
Voltando ao roteiro: a história tem um desenvolvimento orgânico e momentos impactantes, com um início surpreendente e um terceiro ato que em nada deve aos thrillers de suspense e violência. Gabriel Martins e Maurílio Martins se aproveitam do elenco para dar ao público um retrato de uma comunidade com que muitos espectadores poderão se identificar. São pessoas que não tiveram oportunidades na vida, ou não souberam aproveitá-las, que buscam apenas as pequenas realizações pessoais, a felicidade, o direito a uma existência digna, o reconhecimento. E que por isso mesmo, dependendo da personalidade de cada um, de suas frustrações, podem ver no crime a única opção do futuro que desejam. Por mais que se despreze Marcos, por exemplo, jamais caberia a ele a repugnante frase “bandido bom é bandido morto”, repetido até mesmo por quem pode ser a próxima vítima.
Por esses e outros fatores, “No coração do mundo” é filme essencial para quem gostaria de entender o outro, o elemento ignorado pela sociedade e, por extensão, a si próprio.

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No coração do mundo

Exibição do longa metragem (120 min), às 21h, no Cinemais Alameda
Classificação: 16 anos

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