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Entrevista | Ronaldo Cagiano Escritor

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Multi: Ronaldo Cagiano, premiado com o terceiro lugar na categoria contos do Jabuti de 2016, acaba de lançar romance em parceria com a esposa e inédito de poesias. (Foto Divulgação)

Existe a primeira leitura. A segunda. A terceira. E existe, também, a compreensão. Ler Ronaldo Cagiano exige voltas e mais voltas, para leituras que transcendem as palavras. Há subtextos por todos os cantos. Diferente do que é possível prever, não se trata de complexidade. A sensibilidade da vivência, da palavra e do cotidiano e um conhecimento literário bastante amplo criam textos múltiplos, ainda que os caminhos, em sua maioria, indiquem um mal-estar próprio dos que não se deixam confortáveis diante do “sentimento do mundo”. Filho de Cataguases acolhido por Brasília e, mais tarde, São Paulo, Cagiano cruzou o Atlântico. O desconforto no Brasil era grande demais. Como é demasiada sua produção.

Autor de mais de uma dúzia de títulos, Cagiano, cuja estreia na literatura se deu em 1989, com “Palavra engajada”, chega em 2017 fazendo sua estreia no romance. “Diolindas” (Editora Penalux), escrito em parceria com a esposa, a também cataguasense Eltânia André, e os poemas de “Observatório do caos” (Editora Patuá), chegaram juntos às prateleiras, denunciando uma diversidade tão rica quanto rara. Enquanto a ficção trata de conflitos geracionais, os versos refletem sobre os conflitos dos seres e das cidades. Ambos, portanto, se baseiam no enfrentamento, condição, segundo o escritor, inerente ao ímpeto da escrita.

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Terceiro lugar na categoria contos e crônicas da última edição do Prêmio Jabuti (“Amora”, de Natalia Borges Polesso, e “As mentiras que as mulheres contam”, de Veríssimo, ficaram em primeiro e segundo lugares, respectivamente), Cagiano faz de suas narrativas polifônicas tratados de um inconformismo político, social e literário, configurando, assim, uma das mais prestigiadas vozes da literatura contemporânea brasileira. “Minha literatura reflete esse nosso ‘deslugar’ num mundo de coisificação e etiqueta, em que há pouco espaço para o otimismo e muito para a descrença e desilusão”, diz o escritor, em entrevista à Tribuna, por e-mail, de Lisboa. Abordando o mercado editorial nacional ao cenário político, Cagiano desenha o território pantanoso onde inscreve sua literatura exigente de múltiplas leituras.
Tribuna – Há Cataguases, Minas, em seu trabalho. Qual o lugar da cidade natal em sua literatura?

Ronaldo Cagiano – Vivi em Cataguases até os 18 anos, quando me mudei para Brasília. Minha literatura, na poesia e na ficção, está profundamente impregnada de minha experiência com a cidade, onde se deu minha formação como ser e minha iniciação como leitor. Lá situam-se minhas raízes afetivas, geográficas, históricas, psicológicas e culturais. É um lugar permanente, porque dela recolho referenciais que vão reverberar sempre no meu trabalho. Eu diria que a cidade da infância será eterna fonte de minhas impressões literárias (“É o menino em nós/ ou fora de nós/ recolhendo o mito”, como afirma Drummond), ainda que a maior parte de minha vida eu já tenha passado fora, 28 anos em Brasília e dez em São Paulo, pois como sinaliza ainda Italo Calvino: “De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas”.

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Sua produção também tem muito de São Paulo e Brasília. De que forma essas cidades influenciaram e influenciam sua escrita?

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Se Cataguases deu-me os primeiros passos, Brasília deu-me régua e compasso, como ensina a música de Gilberto Gil. Esses quase 30 anos em Brasília foram fundamentais e profícuos na minha relação com o mundo e com a literatura, no meu processo de aprimoramento e mergulho tanto crítico e reflexivo, como leitor e principalmente na condição de escritor, pois alcançaram minha fase de amadurecimento em todos os sentidos. Foram anos em que vivi intensamente não apenas a realidade social e humana da capital da República, mas os anos de efervescência política numa época de escalonamento de valores e de metamorfoses tão fortes, cujas experiências refletiram em minha escrita. Da mesma forma, os últimos dez anos em São Paulo em que a grande metrópole propiciou-me um outro olhar ainda mais crítico sobre o mundo, inclusive o literário (com suas idiossincrasias e diatribes), assimilei outras situações e percepções, que espelharam minha escritura.

 

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É recorrente em seus contos o uso de epígrafes e citações a outros escritores. A que se deve a prática?

Esse recurso que utilizo com frequência traduz-se num diálogo temático com o que estou escrevendo, como uma homenagem a autores de que gosto e que leio com frequência.

 

Clarice, Machado, Kafka são algumas dessas referências. Quem, de fato, lhe serve como norte?

Creio que os livros e autores que lemos são referenciais e influências permanentes, e até mesmo inconscientes, verdadeiros totens no nosso processo criativo. Subsistem não apenas como paradigmas de escritura, mas também como fonte inesgotável de linguagem e tratamento de temas, conflitos, dramas e dilemas que percorrem a natureza e a existência humana de forma ancestral e que cada um soube tratar com suas peculiaridades estilísticas e estéticas. Sem dúvida, nos oferecem um norte, como, por exemplo, um Graciliano Ramos e um Tchecov que, para mim, são exemplos fundamentais de como se deve escrever, são autores paradigmáticos de uma narrativa bem estruturada, em que nada falta ou sobra, em que a palavra é usada para comunicar e não para enfeitar.

 

Você parece ter um trânsito livre na cena literária brasileira, inclusive contribuindo para veículos especializados de prestígio. Como se enxerga nessa cena? De que forma dialoga com seus pares?

Desde cedo tive uma relação epistolar com leitores e colegas de escrita, esse sistema de vasos comunicantes que permite ao autor um feedback sobre seu trabalho, além de entrar em contato com outras experiências criativas no campo não apenas da literatura, mas da arte em geral. Esse intercâmbio possibilitou-me o acesso a uma literatura de qualidade, mas que muitas vezes não é alcançada pela crítica ou pela grande mídia. Essa ponte com autores e obras levou-me também a colaborar em jornais e revistas, escrevendo artigos e resenhas sobre livros que me agradaram. Aliás, essa atividade teve origem ainda na minha adolescência, quando iniciei colaborações semanais num jornal da municipalidade e, ao mudar-me para Brasília, dei sequência a essa atividade, que se tornou também prazerosa ao longo dos anos.

 

Você recebeu o Jabuti por “Eles não moram mais aqui”. De que maneira esse livro se inscreve em sua produção?

Esse livro tem uma carga afetiva especial, porque, apesar de serem textos ficcionais, muitas histórias aproveitam cenários, instantes, vivências ou recortes do campo pessoal, como crises, movimentos de ruptura e tensões. A vida que se vive é sempre material. Já as circunstâncias estão tatuadas na alma, no pensamento e na consciência e aparecem, de certo modo, no que escrevemos. É um livro híbrido, reúne contos premiados ao lado de inéditos e de outros publicados em jornais, suplementos e revistas do Brasil e do exterior. Há uma temática variada, do lírico ao social, do psicológico ao político. E a esse prazer estético junta-se a alegria de ter sido premiado num certame importante que, tradicionalmente, é vencido por autores de grandes editoras e cujo funil é rigoroso.

 

Há uma crítica frequente acerca do restrito mercado dos contos e da poesia. O mercado, ou a falta dele, te angustia de alguma forma?

Essa é uma velha desculpa do mercado, mais ávido pelo lucro do que verdadeiramente pelos gêneros ou pela qualidade dos autores. A crise é também pela falta de leitores, esse é um país que não alimenta uma política efetiva e permanente, de Estado, de incentivo à leitura, à formação de leitores e à criação de bibliotecas. Esse é um processo que começa em casa, passa pela escola, pela educação, pelo sistema didático. Discordo da choradeira dos editores quanto à prevalência de um gênero sobre o outro. Sempre haverá leitores para poesia, novela, conto, crônica, teatro etc. se houver uma educação para a leitura. Essa hierarquização é tola, mas tendenciosa. No Brasil, abrem-se mais igrejas evangélicas e vagas em penitenciárias que acervos em bibliotecas. Esse é o sintoma de um país em decadência. E o mercado editorial é caudatário dessa realidade, está mais interessado no que dá lucro e visibilidade. Por isso vemos tanta mediocridade incensada e muito talento na gaveta ou nos arquivos de computador. Não temos mais editores como Ênio Silveira e José Olympio, que tinham uma relação humana, e não financeira, com a literatura. Hoje são homens com olhos nas planilhas e nos lucros, rendidos e vendidos aos mercados, cafetões das feiras literárias, que são, desgraçadamente, açougues fashions das grandes editoras, num mercado monopolizado e hegemônico, cada vez mais negligente e descarado. Hoje a subliteratura e a literatura de entretenimento tomaram o espaço das grandes obras. Autores de proveta nascidos na internet, os youtubers, por exemplo, que não têm histórico sequer de leitura, vendem milhões. A esses dou o nome de escrotores, porque têm tietes e não leitores, fazem a alegria dos executivos das editoras, que estão nadando de braçadas nesse fenômeno, sintoma do nivelamento por baixo e do descompromisso criminoso com a verdadeira arte.

 

As questões humanas, o que Sérgio Tavares chama de “naufrágio humano”, dão o tom de “Eles não moram mais aqui”. Há algum otimismo nesse universo retratado?

O mundo (individual e coletivo) está mergulhado no caos e na insularidade, imerso num deserto psicológico, numa pobreza de ideais e na utopia. Perdemos os referenciais humanos, éticos e até estéticos e vivemos um tempo de profundo desconforto e mal-estar em que o deus mercado rege tudo. O afeto, a desumanização e a fugacidade das relações e sentimentos são algo patente. Esse é o abismo em que estamos, o fundo do poço da civilização. Penso que minha literatura reflete esse nosso ‘deslugar’ num mundo de coisificação e etiqueta, em que há pouco espaço para o otimismo e muito para a descrença e desilusão. E isso vai da religião (hoje tão mercantilizada, com seus pastores eletrônicos como estelionatários espirituais) à arte (banalizada e mediocrizada).

 

Como crítico você é um leitor voraz, atento à nova poesia argentina e também aos seus contemporâneos romancistas brasileiros. Qual a leitura mais urgente?

Procuro ler o que realmente tem valor, não importando se publicado por uma pequena ou por uma grande editora. Meu termômetro é o texto e não o contexto. É o que diz o livro e não o mercado ou certa parte da crítica e da mídia que faz o pregão ou enfia goela abaixo do leitor o lixo literário com status de literatura. Por isso destaco o papel das pequenas editoras (Patuá, Penalux, LetraSelvagem, Reformatório, Dobra, Jovens Escribas etc) e de seus editores (Eduardo Lacerda, Wilson Gorj e Tonho França, Nicodemos Sena, Marcelo Nocelli, Carlos Fialho…). São verdadeiros quixotes remando na contramão dessa corrente. Merecem aplauso porque ajudam a desequilibrar essa balança de um sistema literário cartorial e mafioso em que mais valem as relações que o talento, em que chegam a ser desumanos a arrogância, o silêncio, a negligência e a indiferença de editores quando solicitados a avaliar uma obra enviada, sem que haja interferência de alguma indicação. Aqueles, sim, estão interessados em dar espaço a autores sem acesso às grandes casas, garimpando o que há de bom e que está escondido ou sufocado pelas circunstâncias desse mercado editorial. Minha preferência é pela narrativa ou poesia que têm tutano, sustentação estética, força, pulsão, que provoque um soco no estômago e não o conformismo, não importando que seja um autor de Amparo (SP), de Arceburgo (MG), de Teerã ou da Cracóvia, de Córdoba ou da periferia de São Paulo. O autor e a obra precisam me comunicar uma verdade e uma realidade, assim como fizeram Samuel Rawet, Maura Lopes Cançado, Ricardo Guilherme Dicke, Rosario Fusco, Bruno Schulz, Herberto Helder, Joaquim Cardozo, Raúl Brandão, Fernando Namora, Miguel Torga e tantos outros, daqui e de outras latitudes, tão esquecidos pela crítica e/ou completamente desconhecidos dos leitores.

 

O próximo livro, que será publicado pela Patuá, é uma volta, não é mesmo?

“Observatório do caos” é uma volta à poesia, uma reunião de poemas escritos nos últimos anos que, no mesmo diapasão de minha escrita ficcional, percorre temas já abordados em meus contos, como a passagem do tempo, a morte, o ser perdido no seu tempo e no seu mundo, questões sociais e políticas, enfim, uma imersão crítica no “mondo cane” e outras circunstâncias.

 

De que maneira a vida como funcionário público interferiu no escritor?

A vida prática e ordinária sempre é necessária para se ter tranquilidade, por força da estabilidade financeira e material, para ler e escrever. Principalmente num país em que não se pode depender da venda das poucas tiragens para (sobre)viver. Escrevo por necessidade e por prazer, e essa retaguarda do emprego fixo sempre foi necessária para manter em dia esse prazer e sonho. Trabalhei durante 37 anos, 35 só como funcionário público. E o ambiente de trabalho também constituiu-se em cenário a partir do qual questionava a realidade.

 

E como Portugal entrou em seus dias?

Era um sonho antigo morar fora e, para concretizá-lo, aliei a aposentadoria com o momento sinistro em que vive o país e atravessei o Atlântico. São desestimulantes esses fatores: violência política e social, de insegurança e de inviabilidade de sonhos. Um Brasil que tornou-se um lugar inóspito e irrespirável que, dia a dia, vai descendo a ladeira da barbárie com a perda de direitos conquistados, com a onda crescente de vulgarização do discurso político, do conservadorismo, da intolerância e do preconceito, enfim, vão jogando no lixo os marcos civilizatórios que conquistamos nos últimos anos. Essas razões nos moveram a buscar um porto seguro, onde podemos, com tranquilidade e paz, ler mais e escreviver.

 

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