Ainda que o contexto de sua origem reflita sobre outros aspectos, a canção “O bêbado e a equilibrista” também parece falar ao presente. Em específico, responde ao drama de uma classe artística paralisada há quase dez meses por conta da pandemia: “A esperança/ dança na corda bamba de sombrinha/ e em cada passo dessa linha/ pode se machucar/ Azar/ A esperança equilibrista/ sabe que o show de todo artista/ tem que continuar”. Entre os mais diferentes sujeitos do fazer cultural em Juiz de Fora e no Brasil impera a sensação de trafegar pela corda bamba enquanto resistem num cenário de muitas perguntas e quase nenhuma resposta. Autor da canção feita em parceria com João Bosco e eternizada na voz de Elis Regina, Aldir Blanc dá nome à lei que em 2020 surgiu na ânsia de salvar um setor, mas, chegado 2021, sua extinção no último dia do ano que se encerrou revolve novas incertezas.
Histórica, a Lei Aldir Blanc repassou para Juiz de Fora cerca de R$ 3,5 milhões, verba inédita na cidade para distribuição entre a classe artística. Discutida longamente durante sua tramitação na Câmara dos Deputados, a lei foi aprovada pelo Legislativo federal e sancionada no último dia de junho. Sua regulamentação demorou, no entanto, e só foi publicada pela Secretaria Especial de Cultura na segunda quinzena de agosto, especificando prazos curtos para a execução dos valores pelos estados e municípios.
“Conseguimos mobilizar a equipe como não via há muito tempo. Foi muito emocionante ver isso. Viramos noite, trabalhamos intensamente, com reuniões constantes para que tudo pudesse ser executado”, recorda-se a então diretora geral da Funalfa, Tamires Fortuna, cargo ocupado por Giane Elisa Sales de Almeida desde o último dia 1º, quando tomou posse a nova gestão da Prefeitura. Segundo Tamires, que acompanhou passo a passo da lei na cidade, a equipe reduzida e em trabalho remoto fez plantões por e-mail, telefone, presencial, além de adotar o WhatsApp. Para driblar fraudes, a análise foi feita em período recorde. “Não tinha muito tempo para descanso”, brinca a ex-diretora.
“O esforço foi homérico, mas temos a plena consciência de que é necessário muito mais. O que me chamou atenção foi ver que o país precisa avançar e muito na estruturação das leis de fomento”, aponta o então gerente de Fomento à Cultura da Funalfa, Henrique Araújo, chamando atenção para o fato de o complexo modelo de gestão proposto pelo Sistema Nacional de Cultura ainda não ter sido implementado em toda a sua potência, mesmo após dez anos da instituição do Plano Nacional de Cultura, prorrogado por mais dois anos pelo presidente Bolsonaro em dezembro.
“Conseguimos mobilizar a equipe como não via há muito tempo. Foi muito emocionante ver isso. Viramos noite, trabalhamos intensamente, com reuniões constantes para que tudo pudesse ser executado”
Tamires Fortuna, ex-diretora geral da Funalfa e uma das responsáveis pela execução da Lei Aldir Blanc em Juiz de Fora
‘A Lei é muito pontual’
Produtora radicada há alguns anos no Rio de Janeiro, Heloísa Marinho costuma responder por uma média de 20 projetos do cantor e compositor Pedro Luís ao longo de um ano. Em 2020, foi remunerada em apenas três lives. “Minha vida mudou muito”, diz ela, que dos dias corridos entre músicos viu a rotina ganhar vazio e silêncio. “O que fiz foi negociar algumas despesas fixas e baixá-las. Segui trabalhando para projetos que aconteceram no ambiente digital e me inscrevi em muitos editais”, conta ela. Um dos editais em que se inscreveu como técnica de bastidor foi o da Lei Aldir Blanc em Juiz de Fora, onde está vivendo nos últimos meses. Heloisa conhece o vasto universo representado pelos 1.800 inscritos e integra o grupo de cerca de 620 contemplados, dentre micro e pequenas empresas, artistas, espaços culturais e técnicos, tendo recebido R$ 3 mil.
“A Lei Aldir Blanc é muito pontual. Tenho muito medo de que as instâncias de governo achem que já foi resolvido. Se isso acontecer acho que podemos quebrar o mercado de produção cultural”, comenta a produtora, avaliando reflexos preocupantes no cenário musical. “Para os roadies a situação é ainda mais complexa, porque é o cara que viaja com os artistas e trabalha nas passagens de som e shows. Na nossa cadeia produtiva são os mais impactados. Os técnicos de som, muitos deles estão se dedicando a projetos de gravação, trabalhando agora e pensando num retorno para daqui algum tempo. Muita gente da luz passou a se dedicar a projetos que envolvem o audiovisual, num esquema de ganhar muito menos do que se ganhava. Já vi situações como a de uma amiga, iluminadora incrível, que migrou para a área dos alimentos. É muito preocupante para o mercado de Juiz de Fora que a gente perca técnicos, porque ainda temos poucos técnicos para o tamanho e número das produções”, afirma.
“A Lei Aldir Blanc é muito pontual. Tenho muito medo de que as instâncias de governo achem que já foi resolvido. Se isso acontecer acho que podemos quebrar o mercado de produção cultural”
Heloisa Marinho, produtora
‘A produção de filmes caiu’
Produtora do principal festival de cinema da região, o Primeiro Plano, Marília Lima acredita que a crise já se instalou no audiovisual nacional e também no local. “O impacto foi imenso e atingiu toda a cadeia ligada ao cinema, aqueles que realizam, que distribuem e que exibem. A relação do público com o cinema me parece que também mudou. Não sei como as salas de cinema vão se recuperar, pois é preciso ainda criar um ambiente seguro para receber o público. Assim como diversas medidas de segurança precisam ser tomadas para com as equipes dos filmes. Parece-me, então, que o ambiente é de muita incerteza e com poucas medidas sendo tomadas para o setor do cinema em específico, pois, mesmo com as leis emergenciais, há todo um clima de insegurança para a realização de filmes”, pontua ela, que integra o comitê de fiscalização da Lei Aldir Blanc em Juiz de Fora representando a classe.
De acordo com Marília, a aprovação de projetos audiovisuais na Aldir Blanc em Minas Gerais pode criar um cenário menos desolador no próximo ano, com uma média de filmes produzidos em Juiz de Fora semelhante aos anos anteriores. “O setor local tenta sobreviver com os trabalhos audiovisuais remotos que surgiram durante o isolamento. Porém a produção de filmes caiu, principalmente as realizações universitárias que dependem dos equipamentos da universidade”, lamenta ela, professora do Instituto de Artes e Design da UFJF.
Para Henrique Araújo, dificilmente aqueles que assumiam o trabalho cultural como atividade secundária retornarão à cena. “O trabalho que é necessário neste momento é a formação de técnicos, pensando a médio e longo prazos. Neste momento catastrófico, não acredito que tenha um setor mais ou menos impactado. Foi uma bala de canhão e todos tomaram o mesmo golpe”, analisa, ressaltando que o orçamento da lei, oriundo do Fundo Nacional de Cultura, reúne repasses de gestões anteriores, e nas diretrizes do Governo federal atualmente não consta a possibilidade de novos repasses, o que inviabiliza a sequência do mecanismo. Segundo Henrique, as cidades que não aderiram destinarão a verba para seus estados, que instrumentalizarão nova distribuição. Nesse sentido, o produtor e ex-gerente da Funalfa defende que haja uma articulação precisa entre estados e municípios, para garantir que os valores restantes cheguem à classe local.
“O impacto foi imenso e atingiu toda a cadeia ligada ao cinema, aqueles que realizam, que distribuem e que exibem. A relação do público com o cinema me parece que também mudou. Não sei como as salas de cinema vão se recuperar, pois é preciso ainda criar um ambiente seguro para receber o público”
Marília Lima, produtora e pesquisadora, integrante do Comitê de Fiscalização da Lei Aldir Blanc em Juiz de Fora
‘Foi para os que conseguiram sobreviver’
Quais as suas perspectivas? “Já fiz tantos planos nesses dez meses, e todo dia uma coisa muda. Não sei o que será o futuro. Só vivo o dia de hoje”, responde a atriz, produtora e pesquisadora Carú Rezende, entre o realismo e o desalento. O ano que passou era de muitos projetos, pouco a pouco frustrados pela crise sanitária e econômica. Coordenadora do espaço OAndarDeBaixo, ao lado do marido, o diretor e dramaturgo Hussan Fadel, e do amigo, o ator e produtor Vinicius Cristóvão, Carú buscou alternativas para não fechar as portas. Após se inscrever em diferentes editais, foi contemplada com o auxílio emergencial para os artistas, previsto pela Lei Aldir Blanc, com o prêmio da mesma lei em Juiz de Fora, e sua companhia, o Corpo Coletivo, teve um projeto aprovado pelo Governo estadual, além de ter recebido R$ 15 mil da Aldir Blanc para a manutenção do centro cultural.
“Até outubro fizemos milhões de ações na internet para sustentar OAndarDeBaixo. Conseguimos uma negociação com a proprietária, que ajudou muito. Quando o recurso saiu, conseguiram pagar várias dívidas”, conta ela. “Em relação à nossa vida, é algo efêmero. Para quem está o ano inteiro sem receber nada, serve para tapar buraco, porque é como se recebêssemos R$ 300 por mês. Fica uma incerteza muito grande. É um recurso que tem fim”, preocupa-se, reivindicando políticas públicas continuadas para o setor e efetivo investimento. “Recurso para a cultura não teve, nem na Funalfa, nem no Governo federal. A Funalfa fez uma gestão desse dinheiro muito transparente, discutindo, ouvindo, fazendo mudanças, mas o recurso é de um fundo. O dinheiro para a cultura de Juiz de Fora não veio”, lamenta, e conclui: “Foi um recurso para aqueles que conseguiram sobreviver, simbolicamente e fisicamente.”
“Recurso para a cultura não teve, nem na Funalfa, nem no Governo federal. A Funalfa fez uma gestão desse dinheiro muito transparente, discutindo, ouvindo, fazendo mudanças, mas o recurso é de um fundo. O dinheiro para a cultura de Juiz de Fora não veio”
Carú Rezende, atriz e produtora, coordenador do espaço O Andar de Baixo
As lições da Lei Aldir Blanc
Tamires Fortuna, diretora geral da Funalfa durante a execução da Lei Aldir Blanc concorda com a urgência de políticas que fomentem o futuro e impeçam que artistas, técnicos e gestores abandonem a atividade na arte e na cultura. De acordo com ela, o Cadastro Municipal de Cultura possui atualmente três mil inscritos, o que por si só demonstra a potência do setor local. “A Aldir não atingiu essas pessoas, então, é necessário que exista outra política pública para que elas tenham sua continuidade de ação cultural garantida.”
Extinta no último dia 31, ainda que projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados defendam sua manutenção durante a pandemia, a Aldir Blanc deixa lições, tanto da relevância da participação popular quanto da complexidade burocrática de mecanismos públicos que exigem tempo e discussão. “Foi tanto edital em tão pouco tempo que não conseguimos contemplar as especificidades de cada tipo de trabalhador, cada um com sua história, sua demanda. Grande parte dos esforços que vi os gestores fazendo me fez perceber que o tempo foi um vilão para a Lei Aldir Blanc”, aponta Carú Rezende.
“O isolamento compulsório nos afastou um dos outros, mas o ambiente virtual permitiu conectar diferentes áreas artísticas que presencialmente não se encontravam”, observa Marilia Lima. “Essa conexão que permite o diálogo e o fortalecimento da classe é fundamental para ampliar o debate de futuras leis de incentivo que vão atender os diversos setores da cultura”, acrescenta a integrante do comitê de fiscalização da lei, destacando a importância de união entre a classe artística e o fortalecimento de entidades de representação como o Conselho Municipal de Cultura.
“É preciso ter plano para a cultura”, sugere Henrique Araújo, indicando a importância de um pensamento sobre o fomento que envolva recursos públicos e privados, prevendo a manutenção de espaços e a garantia de acesso a eles por artistas e plateias. Heloisa Marinho concorda. Para ela, o próximo ano depende dessas alianças. Experiente, a produtora arrisca traçar um 2021 de percurso à abertura, ainda sem grandes shows e eventos. “É um bom momento para pensarmos numa distribuição mais adequada de renda e cultura”, aponta. “A esperança equilibrista/ sabe que o show de todo artista/ tem que continuar”, escreveu Aldir Blanc.
“Neste momento catastrófico, não acredito que tenha um setor mais ou menos impactado. Foi uma bala de canhão e todos tomaram o mesmo golpe”
Henrique Araújo, produtor e ex-gerente de fomento da Funalfa, um dos responsáveis pela execução da Lei Aldir Blanc em Juiz de Fora