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Juiz-forano colore muros e telas em cidade da Austrália

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Painel que o assinado por Bula Temporária (Davidson) e Sophletta (Sophie) para o Wall to Wall Festival 2019, maior evento do gênero na Austrália. (Foto: Arquivo pessoal)

O cachorro com cobertor, pintado num muro da Avenida Dr. Paulo Japiassu Coelho, no Cascatinha, perdeu a cor. O painel na esquina da Avenida Dr. José Procópio Teixeira com a Rua Renato Dias, no Bom Pastor, também desbotou. A pintura no mural da Avenida Brasil na altura do Bairro Ladeira se desgastou. O crocodilo no paredão de esquina da Escola Pró-Música, na Rua São Mateus, de maneira semelhante sofreu a ação do tempo. Restaram vestígios dos trabalhos que Davidson Lopes e sua marca Bula Temporária deixaram em Juiz de Fora. Há mais de dois anos, o artista colore a pequena Tongala, no estado de Victória, na Austrália, para onde se mudou com a australiana e também artista Sophie Wilson.

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“Quando cheguei, fomos muito bem-recebidos pela família da Sophie. Moramos com a mãe dela até hoje. Eu pensava que tinha árvore de dinheiro na Austrália, que seria fácil arrumar um trabalho, mas não foi nada disso. Chorei bastante, fiquei muito deprimido, senti muita solidão. A barreira da língua foi uma realidade. Tive que aprender dando murro em ponta de faca”, narra ele, que chegou a estudar numa escola do governo nos meses iniciais. “Aqui também tem um monte de problemas sociais. A Austrália também foi colonizada, houve um monte de mortes, e isso tem efeitos, principalmente com a comunidade aborígene, que ainda é marginal. Os reis chegaram, invadiram, roubaram tudo, exploraram, escravizaram, igualzinho ao Brasil.”

Trabalho do casal na lateral de uma loja em Shepparton. (Foto: Arquivo pessoal)

Se em Juiz de Fora Davidson atuava fazendo arte urbana e trilhas sonoras para audiovisual, na Austrália identificou duas demandas maiores de trabalho: atendimento ao público ou serviço braçal, ambas as ofertas distantes da paisagem dele. Foi então que conseguiu um emprego na linha de produção de uma lavanderia. “Era tipo um cross fit intensivo”, brinca. Nesse período integrou um programa do governo australiano, de incentivo à entrada no mercado de trabalho, tornou-se aprendiz numa indústria e começou a estudar Fitter and Tuner (torneiro mecânico e engenheiro mecânico) em Shepparton, cidade próxima da sua. Hoje já terminou seu primeiro ano como aprendiz. “Estou feliz”, diz ele, aos 37 anos. “Recomeçar deixa a vida mais fresca.”

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A vida tem sido bem corrida, admite Sophie. “Quando eu voltei para a Austrália, comecei a fazer um curso técnico de enfermagem, que completei ano passado. Atualmente, estou estudando na faculdade para completar meus estudos, e trabalhando em dois empregos de enfermagem. Ainda estou fazendo trabalho voluntário, dando aulas de inglês para um grupo de imigrantes e refugiados. Os projetos de arte faço entre isso tudo”, aponta a artista de 28 anos, autora de trabalhos com padrões que se harmonizam com as criaturas fantásticas de Davidson. “A gente já faz várias projetos aqui na Austrália. Todos os projetos de arte foram com autorização. O primeiro muro que a gente pintou foi na escola fundamental de Tongala. Eu estudei naquela escola na infância, então, foi muito lindo voltar lá e pintar com as crianças da escola”, conta ela, que pintou uma mandala ao lado de uma espécie de cobra desenhada por Davidson.

Pintura feita para um escritório da cidade de Bendigo, na Austrália. (Foto: Arquivo pessoal)

‘Arte aqui ainda tem que ser bonita’

Pouco a pouco as cores de Davidson que vão deixando Juiz de Fora ganham sentido no país do outro lado do Pacífico. O grafite, no entanto, não é tão popularizado na Austrália quanto no Brasil. “As cidades grandes, como Melbourne e Sydney, sempre tiveram a cultura de grafite, mas só nos últimos anos é que está começando a crescer o grafite nas regiões rurais, onde moro”, pontua Sophie Wilson. “No meu estado de Victoria tem uma trilha de Silo Art. Existem várias artistas incríveis que pintaram esses silos gigantescos (um estrutura cilíndrico para armazenar grãos) espalhados pelo estado. Tem mapas para você poder fazer um road trip pela região rural e ver essas pinturas. É bem legal”, acrescenta ela.

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Com sprays, pincéis e tintas, o casal colore, nas horas de folga, muros, restaurantes, salas e outros espaços em branco. Há alguns meses desenhou dois pinguins nas paredes externas de uma casa. Também usam a folha como suporte. “Participamos de três exibições de arte em galeria. Eu até fiz uma pintura de caixão para uma mulher em fase terminal. Também pintei a capa do livro de uma mulher médium que morou nas ilhas Solomons durante um tempo. Tive a oportunidade de dar dois workshops de tinta aquarela para um grupo de mulheres refugiadas, e estou planejando fazer mais outro no futuro. Estou gostando muito de pintar quadros em casa. O Davidson trabalhou na galeria de arte aborígine também e foi bom ele ter o contato com essa cultura”, avalia Sophie.

“Não tenho ferramenta favorita. Minha ferramenta é o que tenho. Se eu tenho uma câmera, vou fazer foto ou vídeo. Se tenho uma caneta Bic, vou fazer com aquilo. Se tenho um spray, vou usar. Se não tenho, faço com o que tiver. Minha arte sempre foi muito intuitiva, espiritual e aberta. A partir do momento em que cheguei na Austrália, tive que por tudo de lado. Foi um choque muito grande. Tive que me reinventar”, conta o juiz-forano, referindo-se à falta de espaço para pintar e também a pouca familiaridade com a comunidade artística de sua região. “Arte aqui ainda tem que ser bonita, não é para mexer com a energia”, diz o morador da zona rural, numa cidade ao norte de Victoria, estado que fica no extremo Sul do continente.

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Quadros assinados por Davidson integraram exposição na Austrália. (Foto: Arquivo pessoal)

‘Nossa vida não é baseada em eventos’

O casal em ação nas ruas de sua região. (Foto: Arquivo pessoal)

Como toda arte urbana, a expressão de Davidson está sujeita à ação do tempo e do homem. É efêmera por princípio. E ele sabe disso. “Não tenho apego com a minha arte. Ela toda é de graça. Disponibilizo minhas artes digitais na internet e se as pessoas quiserem usar, remixar, fazer outra, é livre. A arte quem me deu foi o universo. Ganhei de graça e passo de graça. Não me preocupo para onde ela vai. Se está apagando, é bom porque mais artistas poderão pintar por cima. A arte de rua tem isso de nunca ficar presa, estagnada. Como ser humano, a gente é muito possessivo. Isso começa com nosso corpo, a gente não quer morrer”, reflete o artista, que na Austrália costuma passear de carro conhecendo a natureza exuberante. “Aqui a gasolina é barata e facilita ir para os lugares. Pinto quando aparece oportunidade. Faço mais música e, também, um projeto com sessões de arte no meio do mato. Convido alguns músicos locais para fazerem performances de uma música e a responderem uma pergunta no meio do mato, para resgatar a conexão da arte com a natureza”, conta ele, cujo único plano é não ter tantos planos. “Nosso projeto para o futuro é continuar tendo uma vida simples”, comenta ele, falando por si e por Sophie. “A gente se ama todo dia, a gente se casa todo dia. Nossa vida não é baseada em eventos, apesar de eles acontecerem em nossa jornada.”

Conheça alguns grafites recentes da cidade

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Restaurante Universitário Central (Rua Santo Antônio s/nº - Centro) Releitura da pintura "Operários", de Tarsila do Amaral, com militantes sociais, pesquisadores, intelectuais e artistas, de Coletivo Rumino (Foto: Fernando Priamo)

 

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