O italiano Dante Alighieri escreveu no início do século XIV o poema épico e teológico “A divina comédia”, que narra a jornada espiritual do próprio autor pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, que seriam os três reinos para onde poderiam ir as almas após a morte. E a estrutura dos nove círculos do Inferno imaginadas por Alighieri, uma das bases do segundo livro do escritor Anderson Pires, “Edifício Dante” (Editora Penalux). O autor participa, neste sábado (3), de uma tarde de autógrafos, a partir das 16h, na Autoria Casa de Cultura, no Granbery. Durante o evento haverá leitura de trechos do livro e, depois das 19h, música ao vivo.
Para seu novo romance, Anderson imaginou histórias protagonizadas por personagens – sejam eles moradores ou funcionários – que não sabem que cada um dos andares do edifício tem conexão com um dos nove círculos do inferno dantesco, e que nas fundações do prédio reside um mal ancestral. Em um mergulho no horror e terror psicológico, o escritor ainda se vale de influências de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, da HQ “Sandman”, de Neil Gaiman, da graphic novel “O edifício”, de Will Eisner, para contar a história do casal de amantes ameaçados pela máfia; do funcionário que se vê no dilema de baixar a cabeça para o síndico e ou manter-se junto aos colegas de trabalho; o músico que fez um pacto com o diabo em troca do sucesso; o cartunista assombrado pelo passado; e a mulher obcecada pela beleza, entre outros personagens.
Anderson Pires conta que “Edifício Dante” foi escrito em dois momentos distintos, sendo a primeira parte entre junho e setembro de 2020, no auge da pandemia e do isolamento social, com o objetivo inicial de publicar um e-book com uma versão incompleta e crua do romance para testar a recepção do público. “Quando a ideia original se cristalizou, fiquei apreensivo se não considerariam o livro pretensioso, essa coisa de misturar horror social e o ‘Inferno’ de Dante. A recepção ao e-book foi boa, muito leitores me perguntavam quando lançaria a versão física.”
Com esse estímulo, ele escreveu entre fevereiro e agosto de 2021 a parte final – “Tessalônica” –, que Anderson diz ser a parte mais pesada por tratar de violência contra crianças e fanatismo religioso. “Ao mesmo tempo, havia muita discussão em torno do podcast sobre o ‘Caso Evandro’. Todo o processo de composição, durante a pandemia, me deixava inseguro se era isso mesmo que as pessoas iriam querer ler após um período de verdadeiro horror em todos os sentidos, se não queriam uma literatura mais leve. Mas, a julgar pelo constante interesse pela nova literatura brasileira de suspense, não sei. A gente faz o que sabe.”
Composição intertextual
Anderson acrescenta que os nomes de todos os personagens – à exceção do capítulo “Kill Othelo” – são referências diretas aos personagens que aparecem na parte da “A divina comédia” dedicada ao Inferno. Ele cita, por exemplo, o protagonista do capítulo “Qual juízo separa o bem e o mal”, o juiz Gabrieli da Gubbio, nome do juiz que condenou Dante Alighieri ao exílio. Outro capítulo, “Beatriz”, é uma referência à musa de Dante.
“No meu romance, Beatriz é uma jovem preta, recém-doutora em Literatura Renascentista, que é perseguida por um stalker assassino durante um congresso sobre ‘A divina comédia’. Eu usei muito o método de composição intertextual nesse novo romance. Uma influência não confessa neste livro é ‘A Liga Extraordinária’ do Alan Moore e Kevin O’Neil (que morreu recentemente, aos 69 anos), (devido ao) modo como Moore se apropria de personagens clássicos da literatura inglesa do final do século XIX e os insere em um novo contexto narrativo”, diz.
Se o “Inferno” descrito por Dante Alighieri é uma das inspirações para o “Edifício Dante”, o romancista explica como “O edifício” do mestre dos quadrinhos Will Eisner também entrou como parte das fundações de seu novo livro. “Eu admiro muito as HQs do Will Eisner, o seu profundo humanismo, e este romance gráfico, em especial, sempre me encantou, (com) a fusão do sobrenatural – afinal, os personagens são fantasmas – e realismo. E Eisner não faz isso para chocar o leitor, pelo contrário, o propósito é nos emocionar com personagens tão humanos e trágicos. Então, o que há dessa HQ no meu romance é o foco em narrar as histórias dos personagens que moram no Edifício Dante, mas sem o tom esperançoso do Eisner (talvez um dia), substituindo as lágrimas por sangue.”
“Dom Casmurro” e “Sandman” entram no mesmo elevador, e…
E como o “Dom Casmurro” de Machado de Assis veio a servir de referência e influência para uma das histórias? “Machado de Assis é o mestre supremo da escrita intertextual. Nisso ele é muito moderno, pós-moderno, contemporâneo, sei lá! Um romance como ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, com suas mil referências à Bíblia, aos fabulistas franceses do século XVII, à literatura inglesa do século XVIII, e ‘Dom Casmurro’ é a versão de Machado para o ‘Othelo’ de Shakespeare. E há algumas versões de ‘Dom Casmurro’, como a de Fernando Sabino, ou o romance ‘Capitu’, de Domício Proença Filho” lista.
“Acho esses exercícios de reescrita inspiradores, porém falta algo neles que havia em Machado: a subversão do texto original. E quando cheguei ao capítulo sete do romance, cuja referência era o sétimo círculo do inferno, que trata dos violentos contra o próximo, pensei: por que não fazer aqui, já que tenho a oportunidade, a minha subversão de ‘Dom Casmurro’?”, prossegue. “Daí ‘Kill Othelo’, minha versão ‘trasher’ do clássico machadiano. Eu já tinha perdido o pudor àquela altura da composição do romance, e iria tratar a relação entre Capitu e Bentinho pela perspectiva do abuso psicológico.
A referência a “Sandman” ocorre no final do capítulo “Beatriz”. “A rigor, é um capítulo sem muita ação, aliás é uma discussão teoricamente fundamentada sobre ‘A divina comédia’, e eu queria que a minha Beatriz fosse uma mina fodona na área da pesquisa acadêmica. Porém, como o capítulo todo se passa em um congresso (há coisa mais chata para quem não é do meio?), eu introduzi um personagem icônico do ‘Sandman’ (mas não vou dizer qual) como um elemento de tensão ao final.”
Embora defina seu novo livro como “um romance para quem gosta de ler literatura”, Anderson Pires defende que ele também é um romance de suspense. “É claro que, ao final, os haters podem me acusar de ser um plagiador, mas até aí Machado de Assis também foi acusado de plagiador, pelo crítico Sílvio Romero, e, como o próprio Machado respondeu: ‘como muitos pratos estrangeiros, mas tudo com o meu molho especial’. Mas, na real, a súmula das súmulas, nós vivemos em uma cultura extremamente intertextual; veja; por exemplo; o cinema de Jordan Peele, e se há alguma pretensão de originalidade. Não está mais em quem inventou a roda, mas em quem faz a roda girar mais rápido.
Com referências tão díspares, o escritor confessa que, ao chegar ao final do livro, ficou surpreso com a quantidade de referências e se isso poderia afastar o público. “Por isso foi muito bom ter publicado uma versão e-book antes, com uma parte da obra. Não houve nenhuma rejeição, pois todas as referências não se sobrepõem à narrativa”, diz. “Qualquer um pode ler mesmo sem conhecer nenhuma das citações, as histórias são originais e se passam na nossa realidade contemporânea, com todos os nossos horrores – racismo, violência contra as mulheres e crianças, intolerância religiosa, desemprego, gente nas ruas pedindo comida e pessoas em seus apartamentos fazendo as contas no final do mês, na esperança do pesadelo passar. Porém, olhando agora que a obra está pronta, eu comparo o método de composição do meu segundo romance à produção do segundo disco dos Beastie Boys, “Paul’s Boutique” (de 1989), que, na época do seu lançamento, bateu o recorde no uso de samples.
Microcosmo das relações sociais
“Edifício Dante” apresenta personagens em posições sociais diferentes, vivendo situações particulares e com sentimentos e visões do mundo, da vida, que dependem do contexto em que foram criados e cresceram, num microcosmo que o leitor pode ver como a representação de diversas facetas da sociedade. Anderson comenta o que o levou a reunir nesse prédio um pedaço considerável de nossa sociedade. “O primeiro capítulo do livro – ‘A greve’ – tem como protagonista o zelador do prédio, Celestino. O nome é uma referência a um personagem histórico do ‘Inferno’ de Dante, o papa Celestino V, que foi o primeiro papa a renunciar – o que foi considerado um ato de covardia, um pecado diante do exercício da gloriosa missão ao qual fora eleito. Pois bem, Celestino era o nome do porteiro do prédio de um amigo meu em Copacabana. E por aí comecei a pensar como o ‘Edifício…’ funcionaria como – concordo contigo – um ‘microcosmo’ das relações sociais em nossa sociedade, do conflito entre moradores ricos e funcionários assalariados, a exploração do trabalho dos mais pobres e a ostentação da classe média alta, dos pecados que essa classe esconde sob o manto da moralidade e a revolta da classe subalterna”, pontua. “Por isso, classifico o romance como ‘horror social’, um termo bem apropriado para tratar da nossa realidade, pela perspectiva do suspense sobrenatural, nos últimos anos de 2018 até agora.”