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Trabalho da série “Cine-grafias da subjetividade: A fotografia mitifica o outro”, de Diego Zanotti

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Trabalho da série “Recado”, de Rizza

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No primeiro item da ficha catalográfica está “fotografia contemporânea”. Já o segundo assunto aponta para “arte – criação”. A ordem, no entanto, parece invertida em “Terra incógnita” (Funalfa Edições, 104 páginas). O livro recém-lançado reúne fotografias mas fala, principalmente, sobre fazer artístico. Iniciada há mais de cinco anos, a obra com acabamento primoroso elenca dez artistas que, passado o tempo, já não atuam (em sua maioria) com a fotografia e sequer continuam residindo em Juiz de Fora. Contudo, não se trata de trabalho datado. Sua atualidade e expressividade estão, justamente, na sensibilidade de um olhar para percursos locais que, em determinado momento, recorrem às câmeras.

“Entre acasos bem-vindos, a cidade de Juiz de Fora tratou de conectar navegantes: artistas que trazem para esta terra o frescor de outras tantas. Ensejos se legitimam no contrassenso do pertencimento a um campo específico de pensamento. Afinidades, aqui, estão em constante curso. Nesses espaços flutuantes, a autonomia das poéticas não recorre a um apego ao solo originário, ela se descobre nas virtudes da deriva e na vida compreendida como um deriva, que é, em si, o próprio destino”, reflete a crítica de arte Ana Emília da Costa Silva, em prefácio da obra.

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“A terra incógnita”, segundo a crítica, “é um lugar no contingente do imaginário coletivo”. O impulso, portanto, era mergulho. “As chamadas ‘terras incógnitas’ ou ‘ignotas’ eram tidas como as extensões de terra não mapeadas, que aparecem como possibilidade real nos mapas do século XIII. Esses mapas são bem interessantes, diferentes das abstrações geográficas universalistas que conhecemos. O plano geográfico ou o desenho desses mapas agrega condicionantes climáticos, condições de caminhada, situações vividas e imaginadas, seres míticos, situados nos relatos dos viajantes que passavam pelas terras exploradas”, explica Ana Emília.

“Desenhamos juntos essa publicação, que por sinal, levou um certo tempo para ser concluída, mas como toda produção madura e digna de um conteúdo apurado respeita seus estágios”, conta a crítica. E essa terra foi descoberta no processo do livro? “Acho que ela foi imaginada, desenhada, cartografada, mas não encarada como identidade”, responde ela, convidada pela curadora do trabalho, Nica Pinheiro, assim como a artista Júlia Milward, responsável pelo projeto gráfico arejado da empreitada. “Esses encontros permitiram uma unidade ao livro”, defende Nica, para logo completar: “Esse trabalho mostra um pouco da quantidade e qualidade da produção fotográfica da cidade. Na época em que começou a ser feito estava sendo feito o JF Foto 11 (primeira edição do festival local de fotografia). Agora, depois de cinco anos, vemos que essa produção aumentou bastante e valorizou a expressão.”

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Processos de criação

A ligação não finalizada ou o telefonema inundado. “Recado”, série de fotografias assinadas por Rizza, perpassa a delicadeza de uma cena simples – uma mulher e um telefone sob a água – para atingir a sofisticação de um discurso que não se encerra na narrativa, na ficção, mas explora a própria força das urgências comunicacionais. Brincando entre os contrastes e as sensorialidades, as imagens de Rizza revelam o frescor de uma produção despretensiosamente refinada. “Retrato o belo, nesse caso imagético, a mascarar as frustrações que se confundem no plano aquático, que, por sua vez, afligem o plano aéreo. Sinto a dor e não a beleza. É uma dicotomia das cidades: o que é, e o que parece ser”, discute Rizza, da pintura ao cinema, uma fotógrafa.

Como Rizza, “Terra incógnita” diz. Muito. Claudia Meireles narra as angústias da urbe focalizando calos de pés desnudos pelas ruas. Daniel Candian conta das noites, do vinil, das luzes, em seu “Bit à hit”. Como um viajante, Daniel Sotto-Maior se deslumbra com uma Turquia de muitas belezas triviais. Diego Zanotti, por sua vez, observa Santiago de Cuba distante num mesmo ponto que permite muitas vistas. Filipe Mathias recria uma Branca de Neve soturna e barroca, como num eloquente ensaio de moda. Nica Pinheiro em sua “Rugosidades” observa com ternura o caos de intimidades e as ruínas de estranhos espaços públicos. Com intervenções e apropriações, Stephan Rangel localiza num outro lugar a paisagem da cidade. Enquanto isso, Tonil Braz faz troça com um globo, feito na China e vulgarizado pelo cotidiano.

Um dos nomes mais expressivos da cena atual da cidade, Letícia Vitral apoia-se no termo giallorama – que pode dizer da cor amarela ou do estilo cinematográfico italiano sobre mistérios – para registrar uma Juiz de Fora igualmente amarelada e misteriosa. “Acredito que todo o mundo à nossa volta seja alguma forma de projeção. A própria percepção da realidade em si é uma projeção pessoal, uma ficção que cada um cria conforme suas próprias experiências. Consequentemente as representações dessa realidade/ficção são também projeções”, observa Letícia. “O que me interessa é trabalhar justamente os diferentes níveis de memória que podem ser encontrados em uma imagem fotográfica: a memória do fotógrafo, que guia a produção da imagem; a memória do espectador, que interpreta a imagem; e a memória do que é fotografado, com toda a história e relações que carrega.”

Cartografia aberta

Longe de se desejar definitivo, “Terra incógnita” se desenha como um mapa aberto, pronto a receber novas localizações. Os dez artistas são, na verdade, o ponto de partida para uma fotografia autoral juiz-forana sem pontos de chegadas. E nesse contexto, a obra olha para o presente mas também flerta com o passado. Ao longo das páginas, enumeram-se fotografias antigas, recolhidas pelo blog Maria do Resguardo e reordenadas pelo olhar sensível de Júlia Milward, artista com passagem pela cidade e com crescente interesse do mercado de arte nacional. “Achei que era importante reunir os trabalhos dos artistas de uma forma que fosse além do colocar junto, que pudesse apresentar um fragmento da poética de cada um. Coloquei também imagens antigas da cidade de Juiz de Fora, feitas por fotógrafos locais, homenageando os trabalhos anteriores realizados”, confirma Júlia.

Segundo a curadora Nica Pinheiro, sua pergunta inicial era “quem eram os jovens fotógrafos de Juiz de Fora e como se davam seus processos de criação?”. Respondeu durante o processo e resolveu inscrevê-los na memória, dando-lhes voz e o peso da posteridade. Como discute o trabalho de Letícia Vitral, apontando como a memória possibilita o molde do presente, “Terra incógnita” faz pensar o hoje e os futuros presentes de uma expressão muito mais complexa que o clique, que é criação e é arte ou, se optar pela ficha catalográfica: “arte – criação”.

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