Há alguns anos, a animação brasileira vem ganhando mais espaço nas TVs nacionais e reconhecimento no exterior. Esse movimento acontece por meio de premiação, participação em festivais independentes e também exibição comercial no cinema e na TV por streaming, com ampla circulação de séries de desenhos. A indicação do brasileiro “Menino e o mundo”, de Alê Abreu, ao Oscar 2016 é um símbolo desse alcance de uma geração que, lá atrás, com pouco recurso, começou a experimentar cinema de animação no país.
Aos cineastas de Juiz de Fora, a boa notícia é que eventos como o MAX – Minas Gerais Audiovisual Expo, que aconteceu na semana passada em Belo Horizonte, focado na indústria audiovisual, mostram que há interesse em incentivar a coprodução e o financiamento dos que estão fora do eixo Rio-SP, bem como pequenos negócios do audiovisual brasileiro. A animação estava presente na programação, que levou nomes como Otto Guerra, do Otto Desenhos Animados, e Mayra Lucas, uma das sócias da produtora Glaz, responsável pelas séries “Historietas assombradas” e “Irmão do Jorél”. Cobrindo um dos dias do evento, a Tribuna conversou com os dois sobre o mercado de animação e os desafios no processo de produção.
Prevendo lançar em 2018 o longa “Cidade dos Piratas”, baseado na vida e obra de Laerte, Otto Guerra faz uma colagem de recursos, pega a narrativa original dos quadrinhos e mescla com imagens de documentário, depoimentos. Otto e Laerte aparecem falando um com o outro, abrindo a possibilidade de inserção de outras narrativas. Otto chamou essa construção de cinema marginal, uma vez que se inspirou em filmes do final dos anos 1960, Glauber Rocha e o Cinema Novo. “O cinema marginal tem uma característica interessantíssima que é de retalhos, não tem um texto fechado. As frases ditas são soltas e contundentes.”
Essa escolha de fazer uma mistura de conteúdos com propostas estéticas diferentes é muito utilizada na animação. Além de ser uma saída, muitas vezes, mais econômica, já que a produção de uma animação é muito custosa e leva tempo. Um animador juiz-forano que tem pesquisado e realizado trabalhos nesse sentido é o Leo Ribeiro. Recentemente, lançou o curta-metragem de animação “Sviaz”, uma adaptação livre de um texto do poeta russo Daniil Kharms. A paisagem é aquecida pelas nuances amarelas do bonde de Santa Teresa, que transporta a história pelos trilhos até chegar em cenas deste tradicional bairro do Rio de Janeiro, onde vive atualmente. Ali encontra-se a colaboração de oito animadores, cada um com um estilo completamente diferente do outro, o fio condutor é a narrativa. E em 2016, por exemplo, a Coala Filmes lançou a “Série Angeli The Killer”, fazendo colagem de vários animadores convidados.
Qualidade x distribuição
A animação é uma arte antiga, beirando o rudimentar. Os traços das pegadas nas cavernas, como disse Otto, já eram desenhos animados. Foi possível percorrer milênios com técnicas sendo aperfeiçoadas e experimentos testados. É uma produção que está em um nível elevado e em constante movimento e evolução. O Brasil, mais do que nunca, está pareado ao que ocorre em qualquer outro lugar do mundo em se tratando de técnica e qualidade. Já a distribuição, é uma súplica. Em sua palestra no MAX, sobre adaptação de HQs para o cinema, Otto afirmou que a mídia para divulgar o filme, às vezes, sai mais caro do que a produção. “A gente tem que se considerar terráqueos e não brasileiros, e exportar nossos filmes para cá. Esse é o caminho. Se não tem como distribuir, minha preocupação é que o fomento acabe”, afirmou.
A força das produções brasileiras feitas, muitas vezes, na guerrilha, está por trás da ascensão e da valorização de nossos produtos que estão conquistando o mundo. “Quando a gente chegou, era tudo mato”, brinca Mayra Lucas, uma das sócias da produtora Glaz. Começaram lançando curtas, junto ao movimento do Anima Mundi. “A revolução se deu quando surgiu a lei obrigatória de passar conteúdo brasileiro na TV, e aí o canal tinha que comprar. Isso transformou o mercado de animação no Brasil, e hoje temos séries exportadas para o mundo inteiro”.
Mayra acredita que esse movimento de pessoas produzindo e criando em diversos formatos artísticos está construindo “uma cultura popular nossa, que não vem de cima para baixo”. E na animação, chegamos a um nível superelevado. Ela compara “Lino” – dirigido por Rafael Ribas e que será lançado na próxima quinta-feira (7) – a qualquer filme da Pixar.
“A animação é um trabalho muito complexo, artesanal. Mesmo que seja um 3D muito desenvolvido, é um trabalho de artesão. E eu acho que essa paciência do brasileiro, de sempre continuar, por mais dificuldade que tenha, é um diferencial”, completa Mayra.
Juiz de Fora in motion
Cena 1 Botequim animado
Leo Ribeiro, após o “Sviaz”, está com o projeto de um novo filme, possivelmente chamado de “Copo sujo”. Nessa mesma linguagem que foge à uniformidade estética, ele aposta no experimentalismo do filme coletivo. “Toda animação é coletiva, no sentido de que tem uma equipe trabalhando em cima daquele filme, mas o objetivo aqui é outro, não é o de uma linha de montagem que vai atender a indústria cultural. É uma coletividade que não tem a ambição de obter lucro, a finalidade é ver o que o vai surgir em matéria estética a partir daquele experimento”, afirma Leo.
Ao todo, 17 animadores devem fazer parte do filme que se passa em um bar, com uma câmera ao alto, simulando uma câmera de vigilância. Um plano aberto, estático e tudo acontecendo ao mesmo tempo. O caráter de evento, de algo que só acontece daquela forma, naquele intervalo de tempo, inesperadamente, estará estampado no filme. Cada um dos convidados deverá criar um ciclo de animação com uma deixa para o encaixe da próxima camada.
“O botequim é um lugar democrático. No ‘Copo sujo’, eu quero replicar como as coisas acontecem no bar, tudo ao acaso. Não tem script, esses ciclos vão se sobrepondo”, conta Leo Ribeiro. Um ciclo de animação é um movimento que começa e termina em um mesmo ponto. Leo vai ficar no papel de organizar essa cena, encaixando todos os ciclos naquele contexto do bar, como uma fotografia em movimento.
“Faz referência a um curta de animação polonês chamado ‘Tango’ (1981). O diretor (Zbigniew Rybczynski) animou camadas de película com pessoas fazendo ciclos, e estes se interagem. Com essa premissa, eu tive vontade de homenagear esse polonês.”
Além disso, cada animador está livre não somente no traço, mas para usar qualquer técnica: computação gráfica 2D e 3D, 2D cut out, animação vetorial, bem como as técnicas tradicionais, com boneco, massinha, stop motion e quadro a quadro. Com personagens de universos diferentes colocados em um mesmo espaço-tempo, porque o bar é exatamente esse espaço, onde qualquer um pode entrar. “Isso é muito possível, porque, com as tecnologias digitais de hoje, é muito fácil fazer uma mistura de técnicas. Antigamente seria impossível”, afirma Leo, que, além de animador, é jurado há três anos do festival Anima Mundi.
Cena 2 O pequeno Murilo Mendes
O diretor de animação Henrique Kopke está em fase de produção do curta de animação “Encontrando Nijinsky”, baseado em um trecho do livro autobiográfico de Murilo Mendes, “A idade do serrote”. O projeto está sendo viabilizado pela Lei Murilo Mendes e busca livremente pinçar aspectos sensíveis dessa narrativa, que por si só já é levada pela expressão do corpo e da dança de um bailarino russo.
O menino, que no texto é o próprio Murilo Mendes, tenta fugir de seu internato em Niterói a fim de presenciar uma apresentação de Vaslav Nijinsky, que aconteceu há exatos 100 anos no Rio de Janeiro. O curta de animação tem 12 minutos e está sendo feito em colaboração com o estúdio Inhamis, que também é um núcleo de produção de animações em Juiz de Fora.
A paisagem de Niterói no início do século XX é reproduzida de forma livre. Além disso, uma das cenas é de Murilo, próximo a uma grande janela de seu colégio, talvez pequenas referências desta animação contem sobre o próprio personagem-autor, um aficionado por janelas, como bem demonstrou o cronista Rubem Braga.
Henrique Kopke ganhou o prêmio Anima Mundi Web pelo voto de Júri Popular em 2010, com a animação “Dingbats”, e também o prêmio de melhor vídeo de humor no Festival do Minuto em 2009, com a animação “Crianças”.
Cena 3 Medea experimental
Alessandro Corrêa morava em Juiz de Fora quando se formou em cinema e começou a trabalhar com animação. Em 2002, integrou a equipe do filme “Lobo-guará”, de Leo Ribeiro, e, após fazer mestrado em animação brasileira na Unicamp, passou a lecionar em São Paulo nos cursos de design de games e design de animação na Universidade Anhembi Morumbi. Não dá para separar sua produção audiovisual do seu campo de pesquisa, Sua dissertação, inclusive, veio acompanhada de “Medea”, curta animado com estética inspirada em cartas de tarô.
Alessandro produz curtas por conta própria para experimentar linguagens e ideias, ao contrário de Leo Ribeiro, busca o anticoletivo. É um trabalho que faz como estudo, em que tudo é aproveitado. No entanto, a convite de Leo, Medea é uma das personagens que entrarão para “Copo sujo”, como uma história paralela vivida por ela que não está na narrativa contada em seu curta. Essa entrada e saída de personagens em outros contextos é comum em HQs e animações, principalmente quando todos são criados em um mesmo universo, com histórias separadas, mas que se cruzam em alguns pontos.
“Esse boom da animação tem muito a ver com a Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA). É a forma que os animadores encontraram para se organizar e defender a animação brasileira. Antigamente já existia muita animação, mas era um processo demorado e com equipamentos analógicos muito grandes que demandavam muito tempo e dinheiro. Hoje eu vejo um momento com mais pluralidade e quantidade de produção”, defende Alessandro.