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A arte reflete o caos e o caos reflete arte

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Ruas desertas. Supermercados vazios. Ausências de combustível e negociações. Ao que o Brasil experimentou na últimas duas semanas muitos adjetivaram como sendo o caos, como uma tradução de eventos que tanto a literatura quanto o cinema, principalmente, representaram e continuam a representar, conformando a filosofia distópica, termo criado pelo britânico Tomás Morus, em 1516, referindo-se ao inverso da utopia. Presentes em produções recentes – sucessos de público, como a série britânica “Black mirror” ou a nacional “3%”, que acaba de estrear sua segunda temporada no Netflix -, os cenários catastróficos não saem de cena. Literalmente. Para a pesquisadora Carolina Dantas de Figueiredo, professora do departamento de comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pensar a distopia contribui para a reflexão do real.

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“Desde que a ideia de utopia surge, na idade moderna, ela sempre aparece em momentos de crise. As mais clássicas, ‘1984’ (de George Orwell) e ‘Admirável mundo novo’ (de Aldous Huxley), surgem na reflexão da Segundo Guerra Mundial, num momento em que o mundo estava na iminência da distopia, na beira do abismo. Elas aparecem para que haja a discussão, porque quando nos confrontamos com a ideia do distópico na arte, pensamos se, realmente, é esse o caminho que os sujeitos querem para si e para o mundo”, analisa Carolina, apontando para a popularidade da série juvenil “Jogos vorazes” e para o recém-saído de cartaz dos cinemas “Jogador Nº 1”, filme de Steven Spielberg. “Tem muitas distopias sendo produzidas, seja com caráter político, ambiental ou de gênero, no cinema, na literatura e mesmo nos games. E se tem muita gente trazendo esse tema, é hora de pensarmos sobre o que está acontecendo em nossa sociedade, sobre o que tem de ameaça distópica ao nosso redor. A distopia na arte vem para gerar incômodo, mal-estar e, principalmente, respostas.”

Autor de “A metrópole replicante” (Editora UFJF), o professor do departamento de cinema e fotografia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Alfredo Suppia aponta para o potencial de previsibilidade contido em clássicos como os filmes “Metrópolis” (1927), do austríaco Fritz Lang, e “Blade Runner” (1982), de Ridley Scott. “O universo de ‘Blade Runner’ está nas ruas de São Paulo e Rio, talvez mais presente nas grandes metrópoles de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento do que no mundo mais desenvolvido. Por ser um país de contrastes, como o Brasil, os EUA continuam assombrados pelo fantasma do universo de Blade Runner. A sequência do filme, ‘Blade Runner 2049’, comprova essa longevidade das ideias de P. K. Dick e do filme de Ridley Scott. As ruas continuam sujas e abarrotadas. As diferenças de classe só se acentuaram. A catástrofe ambiental continua escalando. A realidade é cada vez mais esfacelada, substituída por múltiplas formas de simulacro. O trabalho escravo perdura. As megacorporações avançam dominando o planeta”, avalia.

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Passado e presente: cenas do filme “Blade Runner” (no alto), de 1982, e da série “The handmaid’s tale” (ao lado), de 2017

Opressão por toda parte

Onipresentes nas salas de exibições e nas prateleiras das livrarias, obras distópicas despontam como oráculo de tempos críticos, como o resgate de “O conto da aia”, livro escrito pela canadense Margaret Atwood em 1985, considerado um presságio da Era Trump. Décimo título de ficção mais vendido no Brasil, o romance inspirou a série homônima do serviço por streaming Hulu e narra um futuro no qual as pessoas vivem sob um regime de governo totalitarista, num Estado teocrático, onde as mulheres são as preferenciais vítimas de opressão. Nessa corrente, foi reeditado no país o precursor “Nós”, do russo Ievguêni Zamiátin, considerado por especialistas como “a distopia original”, por apresentar uma sociedade na qual o Estado, certo de fazer o bem, exterminou o livre-arbítrio, a individualidade, a imaginação, a liberdade de expressão e o direito à própria vida, com pessoas mecanizadas, como o engenheiro D-503, que começa a revolucionar seu mundo quando desconfia da própria felicidade.

A liberdade, segundo a pesquisadora Carolina Dantas de Figueiredo, funciona como um dado extremamente positivo para sociedades utópicas. “Todas as utopias que tive oportunidade de ler e estudar são plenas de liberdade individual, os sujeitos são livres para fazerem o que quiserem. Principalmente no momento atual do Brasil, em que se discute liberdades individuais, temos a sensação de que é possível fazer tudo e que esse tudo pode afetar o outro negativamente. Justamente aí que entra o sentido de utopia, pois utópica é aquela sociedade que tende à perfeição, em que os sujeitos são dotados de uma grande garantia de direitos, de um nível de consciência bastante avançado, de educação avançada ou sem educação formal, mas com sensação geral de paz e desenvolvimento espiritual, e as pessoas são capazes de exercer a liberdade sem afetar o outro negativamente”, discute, para logo explicar que o inverso faz sentido nas sociedades distópicas. “Todos nós somos sujeitos a algum nível de cerceamento de liberdade, menores ou maiores, seja na vida familiar, ou na escola, ou na profissão. E isso não é distopia. Níveis muito radicais de ausência de liberdade são distópicos, configuram regimes necessariamente opressores, colocando o sujeito em condições catastróficas para si e, como reflexo, para a sociedade.”

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Em sua segunda temporada no Netflix, série brasileira “3%” cria mundo pós-apocalíptico onde reinam a escassez e o caos.

De acordo com o pesquisador Alfredo Suppia, a modernidade, e também a pós-modernidade, se alimentaram das ideias utópicas. “Também é verdadeiro afirmar que, muito cedo, essa voragem utópica revelou-se potencialmente negativa. Dentre alguns famosos utopistas, os mais argutos já foram capazes de prever o quanto a fé cega no progresso da modernização poderia levar a realidades pesadelares. Atualmente, acho que a distopia continua cumprindo essa função: a de um exercício intelectual voltado à reflexão sobre futuras catástrofes. Se funcionou e continua funcionando no teatro e na literatura, no cinema a distopia ganha alcance suplementar, por talvez atingir, de forma mais rápida e potente, um maior número de pessoas”, explica, apontando para a capacidade de ampliar discursos que a arte possui, possibilitando referências diversas, perceptíveis ou não no cotidiano, bem como espelhamentos, conscientes ou não, do dia a dia para a tela grande.

“A influência é mútua e ambivalente, ou seja, dá-se nos dois sentidos. Por vivermos numa sociedade do espetáculo, altamente midiática e cercada de telas por todos os lados, o cinema pauta muito da nossa vida – até mesmo daqueles que não costumam ir ao cinema. Este está em nossas casas, mas também em detalhes da vida cotidiana. Quem vai a um barzinho inspirado no filme ‘Casablanca’, por exemplo, está sendo pautado, em alguma medida, pela cultura cinematográfica, mesmo que não o saiba. As novelas de televisão são muito pautadas pelo cinema, e nisso reside outra influência. Nossa maneira atual de ver o mundo é influenciada, em maior ou menor grau, pelo cinema, arte de grande impacto ao longo de todo o século anterior. E, neste caso, nossa maneira de encarar o presente e o futuro é influenciada também, em maior ou menor grau, por filmes como ‘Metropolis’ e ‘Blade Runner'”, reflete o professor da Unicamp, que durante cinco anos pertenceu ao quadro docente do Instituto de Artes e Design da UFJF.

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Para Suppia, a refilmagem de “Blade Runner” intitulada “Blade Runner 2049” atesta e atualiza essa influência ao trazer para a contemporaneidade, para cenários palpáveis, o que Ridley Scott parecia prever em 1982. “Sem dúvida, uma infinidade de filmes recentes ou contemporâneos paga tributo ao universo narrativo e plástico de ‘Blade Runner’. Refiro-me a filmes como ‘O quinto elemento’, de Luc Besson; ‘Matrix’, das irmãs Wachowski; e séries como ‘Altered carbon’, da Netflix, entre incontáveis exemplos. Até o presente momento, creio que ‘Metropolis’, em certa medida, mas sobretudo ‘Blade Runner’, continuarão influenciando produções audiovisuais contemporâneas, atuando como modelos de narrativa futurista, design de produção e atmosfera”, aponta.

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Febre distópica: Mercado editorial lança reedições de clássicos literários

Chamado constante à superação

Cada novo passo da humanidade, defende Carolina Dantas de Figueiredo, anuncia novas complexidades. “A capacidade de negociação ininterrupta vai mover as múltiplas tramas sociais. Nesse momento de radicalização dos afetos, de discurso de ódio, de dualidade do grupo A versus o grupo B, pensamos as coisas de maneira muito simplista, quando, na verdade, as sociedades, os sujeitos e os processos políticos são muito mais complexos”, pontua, atualizando-se com o cenário social, político e econômico atual: “O exemplo recente da paralisação dos caminhoneiros nos mostra a dimensão da necessidade de negociar em diferentes níveis e também como estamos articulados. Para um caminhoneiro, para um país inteiro. Para a produção de um determinado produto, para todo o país. E, então, percebemos que está todo mundo conectado. Não temos como separar as coisas em nossa sociedade como se pensava antigamente, com a lógica da tese, síntese e antítese, como se cada elemento tivesse clareza. Estamos no meio de uma confusão, e por isso também somos confusos, e não somos capazes de analisar o presente com clareza. A forma de escapar disso é partindo para a reflexão, para a negociação, para a arte e para a pausa.”

Segundo a pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco, a arte carrega consigo a marca de manter-se distante das datações próprias da era tecnológica e sua fluidez. “A literatura é sempre contemporânea. A cada momento que abro um livro, olho para um quadro, escuto um disco, assisto uma série, aquilo é novo, porque vou ressignificar. A gente nunca se banha num mesmo rio, a filosofia vai dizer. As literaturas distópica e utópica, em particular, é feita para ser permanente. As discussões que elas trazem não são sobre o presente. Quando Tomás Morus escreve ‘Utopia’, não estava dizendo apenas daquele momento. Ele não fala sobre o Reino Unido no século XVI. Aquilo é uma metáfora para discutir o ser humano, que não muda em suas questões fundamentais. Se pensarmos a humanidade nos últimos 10.000 anos, muitas das questões fundamentais permanecem, como a liberdade, os direitos, o totalitarismo. As tensões são sempre presentes, mas a cada momento têm nuances novas. ‘1984’, ‘Admirável mundo novo’ e ‘Farenheit 451’, livros que analiso em minha pesquisa, quase não tratam de questões de gênero. Já ‘O conto da aia’, da década de 1980, traz a questão de gênero como fundamental. Se pegarmos distopias mais contemporâneas, veremos questões digitais. A cada nova negociação, a cada tensão social, a cada episteme, problemas que sempre existiram aparecerão para serem rediscutidos e, com sorte, superados”, discute. E conclui: “Que bom que não temos que discutir a escravidão da forma que as distopias antigas discutiam! E espero que as distopias do presente sirvam para que tenhamos um futuro um pouco mais utópico e, por isso, mais leve.”

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