Crimes bizarros, grotescos, chocantes, revoltantes (e outros adjetivos mais) provocam no ser humano não apenas curiosidade, como também fascínio, horror, medo, até mesmo um prazer mórbido e sádico. E que podem ser explorados de diversas formas – tanto para o bem quanto para o mal – pela imprensa, música, cinema, teatro, televisão. Daí a cobertura extensa de alguns crimes, ou filmes e séries inspirados em fatos reais, dando ao povo o que o povo quer: fotos do criminoso, das vítimas, sangue, cenas de crime, dramatizações em programas de TV por assinatura que dão vergonha de assistir.
Mas, acredite, pode ser diferente, bem diferente. Esta é a proposta do canal “Boo e outras coisas”, produzido por uma turma do audiovisual juiz-forano e que estreou em julho no YouTube. Com temporadas curtas e temáticas, de quatro episódios semanais (toda quinta-feira tem programa novo), o “Boo e outras coisas” conta histórias reais de crimes bizarros, porém sem se valer de recursos batidos como as tais dramatizações ou fotos das vítimas. No máximo, a fotografia do responsável pelos assassinatos.
O programa da Submerso Produções se define, aliás, como “fofo e assustador”, e é o que dá para perceber nos vídeos e no visual da página do “Boo e outras coisas”, também presente no Instagram e no Facebook. Tudo começou com a vontade da apresentadora – e roteirista, diretora, produtora – do programa, Mia Mozart, em ter um canal no YouTube. A ideia inicial, e que não foi para frente, era ter algo ligado à literatura, mas logo viu que havia outro assunto de seu interesse que renderia mais.
“Eu tenho muita curiosidade em conhecer as histórias desses crimes, os psicopatas, saber o que passa na cabeça deles, e assistia a muitos vídeos sobre o tema, além de ouvir podcasts. Como o canal de literatura não deu certo, comecei a pensar em como isso poderia funcionar”, explica. No início do ano, ela conversou com Anna Onofre (produtora, cenógrafa e figurinista do canal) e levaram a primeira ideia para o jornalista Tadeu Carneiro, que se tornaria o editor e colorista do projeto. Pouco tempo depois, Victor Sobral e Cibele Sales toparam participar; ele como responsável pelas redes sociais e revisão de roteiro, e ela como roteirista, produtora e apresentadora – é a voz em off nos episódios que conversa com Mia Mozart. “Eu já tinha interesse no assunto, e quando descobri que ela também gostava passamos a trocar canais no YouTube sobre o tema”, relembra Cibele. O sexteto é completado pelo câmera Filipe Pontes.
Equipe formada, eles começaram a afinar o perfil do programa, desde o desenvolvimento do roteiro aos crimes que seriam destacados, incluindo preocupação com figurinos, cenários, parte visual, pesquisa. “Toda decisão tem que ser de comum acordo entre todos”, afirma Mia Mozart. “Quando vamos decidir o tema, um personagem, eu posso pensar uma coisa, a Cibele outra, a Anna também, e o Victor não acha sensato (risos).”
“Eu, Mia e Filipe fizemos cinema e temos a produtora, e queríamos trazer um pouco do cinema para o canal, mudando cenário, formato”, destaca Anna Onofre, falando a respeito da preparação dos episódios. Entre as preocupações, não apelar para o sensacionalismo – por isso a decisão de não mostrar as vítimas, pois muitas podem ainda estar vivas – e, principalmente, não fazer juízo de valor ou ofender alguém. Depois de um piloto, viram a necessidade que Mia tivesse um interlocutor, e aí Cibele passou a ser “a voz” que interage com a apresentadora.
Outro fator importante foi criar uma atmosfera que evitasse o visual apelativo de muitos programas policiais ou das séries inspiradas nesses fatos reais. Por isso, a preocupação em cenários que não remetam diretamente ao tema, toda uma identidade visual que mostrasse que o objetivo era tratar essas histórias com leveza.
Primeiras temporadas
Os quatro episódios da primeira temporada de “Boo e outras coisas” tiveram como tema a violência contra a mulher e contam crimes cometidos por figuras como Rodney Alcala, BTK (Dennis Lynn Rader), Jake Patterson e Ted Bundy – que teve sua história regatada recentemente no cinema. A segunda temporada lida com crimes ligados à maternidade forçada, e já teve episódios dedicados a Barbora Skrlová e Casey Anthony, “a mãe mais odiada da América”. Cada temporada terá, ainda, um quinto e último episódio em que a equipe contextualiza o tema. “É interessante ter essas temporadas temáticas para não ficar confuso tratar de histórias tão diferentes, e isso nos permite ainda fazer essa reflexão”, pontua Victor Sobral. “Não achamos legal só ‘jogar’ o crime para chocar, sem ter essa possibilidade de refletir”, concorda Anna Onofre. “No ‘Boo…’ temos a oportunidade de mostrar o outro lado do crime, o que pode ter motivado o assassino. Procuramos saber a respeito do passado dele”, acrescenta Cibele Sales.
Para produzir os episódios, o trabalho é pesado, gasta-se praticamente um mês inteiro por temporada. Depois de definir o tema e quais criminosos serão apresentados, é preciso pesquisar sobre eles, em até quatro fontes diferentes – e isso inclui filmes, documentários, vídeos de outros youtubers, noticiários, artigos, teses e o que mais aparecer. Se alguma informação for conflitante e não puder ser averiguada, ela é excluída. “É um trabalho do demônio (risos)”, afirma Mia Mozart. Além disso, vem a gravação: são dois episódios por vez, num processo que chega a durar quatro horas e termina em dois programas com cerca de meia hora de duração depois de todo o processo de edição, ajustes de som, cor, luz, lettering etc.
Com nove programas já exibidos, o “Boo e outras coisas” ainda é um canal pequeno, a própria equipe reconhece, mas que já começa a atingir um nicho engajado no tema, com alguns vídeos passando da marca de mil visualizações – o de Ted Bundy, por exemplo, já foi assistido quase três mil vezes. “Teve uma menina de São Paulo que entrou em contato com a gente querendo vir até aqui para participar”, conta Anna. Um dos motivos, aponta, Mia Mozart, é que eles se preocupam com a repercussão nas redes sociais, procurando responder a todas as postagens e comentários – sejam elogiosos ou críticos, ou ainda apresentando sugestões.
Realidades diferentes
As duas primeiras temporadas de “Boo e outras coisas” foram dedicadas a criminosos estrangeiros, em especial dos Estados Unidos, onde a realidade do judiciário e do sistema carcerário são diferentes da do Brasil. E isso tem reflexos na própria equipe no decorrer da produção: acostumada com o caráter punitivo da justiça e – principalmente – das prisões locais, que não se preocupam com a recuperação dos criminosos, Mia Mozart comenta como é complicado contar histórias com desfechos inesperados, em que as penas podem ser desproporcionalmente menores à gravidade do crime, numa ótica local. “No início a gente ficava com vontade de punir as pessoas (risos), mas quando conhecemos a história do crime, do seu autor, há um outro entendimento. E também não estamos aqui para julgar, emitir opinião, mesmo quando ficamos revoltados. Entendi que o meu ‘achismo’, quando é público, pode provocar um efeito dominó. Queremos que as pessoas não sejam influenciadas quando refletirem sobre o crime, o assassino, sobre a punição. O programa procura entender qual foi o nó que deu na cabeça dessas pessoas.”
Com o programa sendo afinado semana a semana, agora chegou a vez de encarar a nossa realidade. Sem dar muitos detalhes, a equipe adianta que a terceira temporada será dedicada a crimes ocorridos no Brasil, não necessariamente de criminosos mais conhecidos – como o caso do episódio dedicado a Jake Patterson. Pode ser, por exemplo, o cara que matou a esposa, namorada, por ciúmes, machismo. E eles já têm outras temporadas bem pensadas na cachola, pois o plano é investir por longo tempo no canal. É um trabalho de formiguinha, que inclui planos para chegar a outras mídias – um objetivo futuro é o podcast, em que toda a equipe participaria comentando o processo de produção, dando opiniões. Até mesmo filmes de ficção estão no horizonte de ideias do “Boo e outras coisas”, que em breve já vai realizar um sorteio de produtos com a marca do canal.
“Temos planos para várias temporadas, queremos alcançar as pessoas por todas as mídias”, planeja Anna. “Tudo que é comprado para o programa é um investimento de longo prazo. Por isso vamos devagar, mas sempre pensando na qualidade.”